"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 30 de junho de 2015

Oração para pedir paz e sabedoria (Prece sioux)

Acampamento sioux, Jules Tavernier

Ó Grande Espírito de nossos antepassados,
A ti levanto o meu cachimbo!
Levanto-o também aos seus mensageiros,
Os quatro ventos, e à nossa mãe-terra,
Que sustenta nossos filhos.
Dá-nos a sabedoria para ensinar nossas crianças
A amar, a respeitar os outros,
Para que sejam boas com elas,
E para que cresçam com a paz na mente.
Ensina-nos a dividir todas as boas coisas
Que tu enviaste para nós nesta terra...


(Texto de autor desconhecido. Este povo - sioux - vivia na região central das planícies dos Estados Unidos e resistiu bravamente ao avanço europeu, autodenominando-se Dakota, que significa "povo".)

GUARANI, Emerson; PREZIA, BENEDITO, (orgs.). A criação do mundo e outras belas histórias indígenas. São Paulo: Formato Editorial, 2011, p. 50.

sábado, 27 de junho de 2015

A palavra "século", uma conquista em matéria de temporalidade histórica

Horário de verão, Rupert Bunny

"A palavra latina saeculum era aplicada pelos Romanos a períodos de duração variável, ligada muitas vezes à ideia de uma geração humana. Os cristãos, embora conservassem a palavra na sua antiga acepção, conferiram-lhe também o sentido derivado de vida humana, vida terrena, em oposição ao além. Mas, no século XVI, certos historiadores e eruditos tiveram a ideia de dividir os tempos em porções de cem anos. A unidade era bastante longa, a cifra 100 simples, a palavra conservava o prestígio do termo latino, e no entanto levou algum tempo a impor-se. O primeiro século em que verdadeiramente se aplicaram o conceito e a palavra foi o século XVIII: a partir daí, esta cômoda noção abstrata ia impor a sua tirania à história."

LE GOFF, Jacques. "Calendário". In: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1984, v. 1: Memória/História, p. 286.

terça-feira, 23 de junho de 2015

A vida na corte do reino de Daomé no século XVIII

Gezo, rei do Daomé, Frederick E. Forbes

Diversos mercadores europeus que realizaram negócios nos portos da Guiné deixaram relatos detalhados de suas experiências pessoais e dos povos com que mantiveram contatos. O comerciante inglês de escravos, Robert Norris, descreveu em detalhes a magnitude da corte do rei Tegbessu, sucessor de Agadjá, e os sinais de obediência demonstrados por seus súditos, durante a visita ao Daomé em 1772:

"Preparei-me para a visita ao rei, mandando desembrulhar uma bela liteira e um órgão portátil que mandara vir de Juda (Uidá): enviei esses dois presentes ao palácio do rei [...].

[...] Ao chegar diante do rei, expliquei-lhe a maneira de utilizar a liteira, que disse ser mais cômoda que aquela espécie de padiola de que ele se servia habitualmente. Nessa altura, ele mandou chamar uma dúzia de servidores encarregados de o transportar, que se aproximaram caminhando de quatro; em obediência aos desejos do rei, entrei na liteira, ensinei-lhes como deviam proceder e eles foram experimentando, um a um. Nesta altura, o rei manifestou a vontade de passear também na liteira e deu várias voltas à corte, em meio aos gritos e aclamações dos ministros e de sua esposa. O coche era muito elegante: tinha assentos de marroquim vermelho e era forrado de seda branca. Ele ficou encantado e divertia-se muito a abrir e fechar as cortinas, que lhes pareceram uma invenção muito engenhosa; finalmente, no meio de uma grande euforia, mandou eunucos para substituir os homens que transportavam a padiola; a porta que dava para os seus aposentos foi aberta e ele mandou que o levassem até junto das suas mulheres, para que elas vissem o belo presente que acabou de receber.

[...] O rei sentou-se em meio aos gritos e aclamação do povo, debaixo da tenda, numa cadeira de braços muito bonita, coberta de veludo carmesim, e enfeitada com esculturas e dourados.

Vi desfilar uma guarda de cento e vinte homens armados de grandes mosquetes e marchando aos pares; seguiam-lhe quinze filhas do rei, muito belas, acompanhadas de cinquenta escravos; depois delas, vinham, em ordem regular, umas atrás das outras, setecentas e trinta das suas esposas, transportando provisões e licores para um festim que iria realizar-se na praça do mercado. Eram seguidas de uma escolta de oitenta mulheres armadas, batendo em tambores. Nessa altura, foi posta uma mesa onde almocei enquanto a procissão continuava a passar. Vi aparecer seis batalhões de setenta mulheres cada um, à cabeça dos quais marchava, abrigada por um guarda-sol, uma favorita: impediram-me de vê-la tapando-a com o guarda-sol e com uma espécie de grandes escudos de couro, cobertos de seda vermelha e azul. Todas aquelas mulheres divertiam o rei com suas canções e danças, à medida que passavam. Nunca esperei ver tamanha variedade e tão grande profusão de tecidos de seda, de pulseiras de prata, de joias e corais, de colares valiosos e de ricos enfeites." Fonte: NORRIS, Robert. Memoirs of the Reign of Bossa-Abadce; with an Account of a Journey to Abomey in 1772. Apud COQUERY-VIDROVICH, Catherine. A descoberta da África. Lisboa: Edições 70, 2004, p. 148. (Lugar da História)

MACEDO, José Rivair. História da África. São Paulo: Contexto, 2013. p. 75-76.

sábado, 20 de junho de 2015

As epopeias homéricas como fonte histórica

O amor de Helena e Páris, Jacques-Louis David

A Ilíada e a Odisseia eram uma evocação de acontecimentos ocorridos na Idade do Bronze, no mundo micênico. A questão de saber a que época histórica se poderá ligar o testemunho de Homero e em que medida serve como fonte histórica continua sendo um debate. [...] De acordo com Vidal-Naquer e Michel Austin, para além das coincidências entre as fontes, há leis que regulam oposições e classificações que serão encontradas ao longo de toda a civilização grega, sobretudo as que definem o lugar dos homens com relação aos não humanos e aos deuses. Se há tais distinções, não podemos presumir, a partir de Homero, a existência de um rei divinizado como o ánax micênico. Agamenon, nas epopeias, estaria, assim, mais próximo de um basileus.

Assim, a Ítaca de Homero - com seus basileus, sua assembleia, seus nobres turbulentos e seu demos silencioso em segundo plano - prolonga e esclarece certos aspectos da realeza micênica. Neste confronto entre a narrativa histórica e as descobertas arqueológicas, os estudiosos puderam perceber um novo sentido para o conceito de basileus ou temenos. Certamente os reinos e os reis da Ilíada e da Odisseia não se referem a uma sociedade palaciana centralizada. Os heróis, que na Ilíada - um canto de guerra - vivem com autonomia, aparecem na Odisseia - um canto de paz - referidos ao oikós, e não a um palácio dirigido por um poder supremo centralizado. O oikós seria a unidade econômica e humana sobre a qual reinariam o basileus homérico, ou seja, chefes guerreiros e nobres.

Estabelecidas as diferenças entre o rei micênico e o homérico, podemos seguir com a questão da época das trevas ou "Idade do Ferro", que se inicia com a queda do poder micênico e a expansão dos dórios no Peloponeso, Creta e Rodes. Aqui, diferentemente do período micênico, que confundia o mundo humano com o divino na pessoa do rei, encontramos uma delimitação mais rigorosa dos diferentes planos do real, ou seja, os homens identificam um passado separado, diferente e distante do tempo presente; começam a incinerar os mortos ao invés de embalsamá-los, o que significa uma separação entre o mundo dos vivos e dos mortos. Sem a presença do rei divino micênico novas distâncias são colocadas entre o mundo dos homens e o dos deuses.

A percepção da diferença entre passado e presente, a separação entre o mundo dos vivos e o dos mortos e as distâncias entre homens e deuses são novidades que se inscrevem em realidades sociais também novas. Tais novidades só terão sentido se pudermos referi-las ao tipo de organização do mundo micênico redefinido após as descobertas arqueológicas.

EYLER, Flávia Maria Schlee. História antiga: Grécia e Roma. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2014. p. 35-36. (Série História Geral).

terça-feira, 16 de junho de 2015

Templo de Abu Simbel

Abu Simbel, Hubert Sattler

No longo reinado do faraó Ramsés II, a política exterior do Egito voltou-se para a Síria e a Palestina. Casado com uma princesa hitita, o soberano transferiu a capital de Tebas para Pi-Ramsés (ou Tânis), no local da antiga Avaris. Entre os construtores da cidade são citados os "filhos de Israel", o que permite identificar Ramsés II como o faraó do "Êxodo". 

Nessa época, o Egito teve intensa atividade artística, como demonstram os numerosos monumentos em Abu Simbel, Tebas e Abidos. Na fachada do templo de Abu Simbel, foram esculpidas na rocha quatro estátuas colossais do faraó. Sua planta foi feita de modo que o sol iluminasse o amplo salão interno. Em 1964, o templo foi desmontado pedra por pedra e reconstruído em lugar mais alto, a fim de não ser inundado pelas águas da represa de Assuã.

HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 12.

sábado, 13 de junho de 2015

O legado dos lídios

Creso na fogueira, Myson. [Lado A de uma ânfora Ática de figura vermelha, ca. 500-490 a,C.]

[...] Os lídios beneficiaram-se de um patrimônio cultural acumulado durante milênios pelas civilizações mais antigas do Oriente Próximo e que fora, por assim dizer, depositado aos poucos através da tradicional rota milenar que ligava Babilônia, Ptéria e Sardes.

A penetração dos gregos no reino lídio, atraídos certamente pela magia do ouro abundante, fez com que os mesmos aproveitasse, também o legado cultural. “Tomaram eles mais do que os tesouros: a Lídia, bem próxima de suas cidades da Ásia, foi certamente, um dos caminhos, e indubitavelmente o principal, pelo qual entraram em contato com o Oriente. Técnicas artesanais e artísticas, ideias e práticas religiosas, temas míticos, observações científicas: bem pesada foi a soma de seus empréstimos. Isto porque o acaso não é suficiente para explicar o avanço que a Jônia, associada e praticamente submetida a Sardes, tomou, então, sobre as outras províncias do mundo grego: nenhuma encontrava tão grandes facilidades para tirar proveito das experiências do próximo”.

“Os gregos extraíram de um terreno inesgotável toda espécie de noções que renovaram mais ou menos sua religião, seu comércio, sua indústria, sua arte e que lhes permitiram transformar a tradição em ciência [...]”.

“Sem este intermediário não se vê como os cálculos dos astrólogos e as cartas dos geógrafos babilônicos teriam sido transmitidos à Escola de Mileto. Foi na Lídia, enfim, que os gregos observaram, pela primeira vez, o despotismo das monarquias bárbaras: espetáculo instrutivo, que ofereceu modelos aos tiranos, mas que fez também sentir aos cidadãos sua superioridade de homens livres”.

Uma contribuição dos lídios à civilização foi a cunhagem de moedas. Tal cunhagem foi uma necessidade imposta pela intensidade do intercâmbio comercial. O numismata francês Lenormant, estudando a origem da moeda, chegou à conclusão de que a cunhagem de moeda foi feita isoladamente na Lídia e em Argos.

Creso teria sido o primeiro soberano do mundo mediterrâneo a cunhar ouro. Suas moedas possuíam a forma ovóide e apresentavam numa das faces, em meio corpo, um leão e um touro olhando-se de frente. Chamavam-se creseidas da Lídia.


GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 319-320.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Lugar da história na sociedade africana

Homem mucubai, Angola

O ser humano é um animal histórico. Os africanos não fogem a essa definição. A consciência histórica que os africanos possuem de sua própria história e da história em geral está marcada por seu singular desenvolvimento. O tempo africano é, às vezes, mítico e social, mas os africanos também têm consciência de serem os agentes de sua própria história. O tempo africano é um tempo realmente histórico. Por um lado, o mito, em geral, domina o pensamento dos africanos na sua concepção do desenrolar da vida dos povos. Sob a forma de “costumes” vindos de tempos imemoriais, o mito governava a História, encarregando-se, também, de justificá-la. Nesse contexto, aparecem duas características do pensamento histórico: sua intemporalidade e sua dimensão essencialmente social. O tempo é o ritmo respiratório da coletividade que engloba e integra a eternidade em todos os sentidos. As gerações passadas não estão perdidas para o tempo presente. À sua maneira, elas permanecem sempre contemporâneas e tão influentes quanto o eram durante a época em que viviam. Assim sendo, a causalidade atua em todas as direções: o passado sobre o presente e o presente sobre o futuro, não apenas pela interpretação dos fatos e o peso dos acontecimentos passados, mas por uma irrupção direta que pode se exercer em todos os sentidos. Nesse tempo “suspenso”, a ação do presente é possível mesmo sobre o que é considerado passado, mas que permanece, de fato, contemporâneo.

Esse enfoque mítico está na origem da história de todos os povos. Toda história é originalmente uma história sagrada. Do mesmo modo, esse enfoque acompanha o desenvolvimento histórico, reaparecendo de tempos em tempos sob formas maravilhosas ou monstruosas.

Pode-se pensar que essa visão do processo histórico seria estática e estéril, já que, ao colocar a perfeição do arquétipo na origem dos tempos, parece indicar como ideal para o conjunto das gerações a repetição estereotipada dos gestos do ancestral. Porém, não podemos nos ater unicamente a esse enfoque do pensamento histórico entre os africanos.

No período pré-colonial, numerosas sociedades africanas elementares, quase fechadas, dão a impressão de que seus membros só tinham consciência de estar fazendo história numa escala e numa medida bastante limitadas. Em compensação, nas sociedades fortemente estruturadas, a concepção africana de chefe dá a este último um espaço exorbitante na história dos povos dos quais ele literalmente encarna o projeto coletivo. Assim, não é de se admirar que a tradição relembre toda a história original dos Malinke no “Elogio a Sundiata”. O mesmo acontece com Sonni Ali entre os Songhai da curva do Níger. Isso não significa um condicionamento “ideológico” que destrói o espírito crítico. Por outro lado, a história mais recente da África pré-colonial demonstra que a posição dedicada aos líderes africanos nas representações mentais das pessoas provavelmente não é superestimada. A ideia de um líder que atua como motor da história quase nunca se reduz a um esquema simplista, creditando a um só homem todo o desenvolvimento humano. Geralmente trata-se de um grupo dinâmico, celebrado como tal, onde os companheiros dos chefes frequentemente entram para a história como heróis.

A mesma observação vale para as mulheres, que ocupam na consciência histórica africana uma posição sem dúvida mais importante que em qualquer outro lugar. Nas sociedades de regime matrilinear isto é facilmente compreensível. As mulheres são vistas como protagonistas na evolução histórica dos povos. Filhas, irmãs, esposas e mães de reis ocupavam posições que lhes permitiam influir nos acontecimentos. Essa ideia permanece viva até hoje na África. Pela sua participação no trabalho da terra, no artesanato e no comércio, pela sua ascendência sobre os filhos, por sua vitalidade cultural, as mulheres africanas sempre foram consideradas personagens eminentes da história dos povos. A mulher é a vida e a promessa de expansão da vida. É através dela que os diferentes clãs consagram suas alianças.

Por outro lado, tudo se passa como se na África a frágil envergadura das sociedades tivesse tornado a história uma questão que diz respeito a todos. Este sentimento de fazer a história mesmo na escala microcósmica da aldeia, assim como a sensação de ser somente uma molécula na corrente histórica criada pelo rei, visto como demiurgo, são muito importantes porque constituem em si mesmos fatos históricos e contribuem para criar a história.

O próprio caráter social da concepção africana da história lhe dá uma dimensão histórica incontestável, porque a história é a vida crescente do grupo. Desse ponto de vista, para o africano o tempo é dinâmico. Nem na concepção tradicional, nem na visão islâmica que influenciará a África, o homem é prisioneiro de um processo estático ou de um retorno cíclico. O tempo permanece um elemento vívido e social, porém, não se trata de um elemento neutro e indiferente, já que é o lugar onde o homem pode lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. Tal é a dimensão principal do “animismo” africano em que o tempo é o campo fechado no qual se confrontam ou negociam as forças que habitam o mundo. Existe assim no africano uma vontade constante de invocar o passado que não significa o imobilismo e não contradiz a lei geral da cumulação das forças e do progresso.

O poder na África negra se expressa em geral por uma palavra que significa “a força”. Essa sinonímia assinala a importância que os povos africanos outorgam à força e mesmo à violência no desenrolar da história. Trata-se da energia vital que reúne uma polivalência de forças, que vão da integridade física à sorte e à integridade moral. O valor ético é considerado como uma condição sine qua non do exercício benéfico do poder. Esta visão do mundo em que os valores e exigências éticas são parte integrante da própria organização do mundo pode parecer mítica, mas ela exercia uma influência objetiva sobre o comportamento dos homens. Nesse sentido, se a história é justificação do passado, ela é também exortação do futuro.

A consciência do tempo passado era muito viva entre os africanos. No entanto, esse tempo, que tem um grande peso sobre o presente, não anula o seu dinamismo. A concepção do tempo tal como a detectamos nas sociedades africanas é a marca de um estágio no desenvolvimento econômico e social. O essencial é que a ideia de desenvolvimento a partir das origens esteja presente. Mesmo sob a forma de contos e de lendas, trata-se de um esforço para racionalizar o desenvolvimento social. Às vezes, têm-se verificado esforços ainda mais positivos no sentido de iniciar o cálculo do tempo histórico relacionado com o espaço ou a vida biológica e, mais frequentemente, relacionado aos fenômenos cósmicos, climáticos e sociais. Mas o passo decisivo nesse campo só será dado pela utilização da escrita, que ao menos permitiu estabelecer pontos de referência que organizam o curso do fluxo histórico. A introdução das religiões monoteístas baseadas num determinado processo histórico contribuiu para fornecer uma outra representação do passado coletivo.

Mas a grande reviravolta na concepção africana do tempo se opera sobretudo pela entrada desse continente no universo do lucro e da acumulação monetária. Só agora o sentido do tempo individual e coletivo se transforma pela assimilação dos esquemas mentais em vigor nos países que influenciam os africanos econômica e culturalmente. Descobrem então que, em geral, é o dinheiro que faz a história. O homem africano, tão próximo de sua história que tinha a impressão de forjá-la ele próprio em suas microssociedades, enfrenta agora, ao mesmo tempo, o risco de uma gigantesca alienação e a oportunidade de ser coautor do progresso global.


SILVÉRIO, Valter Roberto. Síntese da coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013. p. 29-32.

sábado, 6 de junho de 2015

Fundación de los días

Calendario romano

Cuando Irak era Sumeria, el tiempo tuvo semanas, las semanas tuvieron días y los días tuvieron nombres.

Los sacerdotes dibujaron los primeros mapas celestes e bautizaron los astros, las constelaciones y los días.

Hemos heredado sus nombres, que fueron pasando, de lengua en lengua, del sumerio al babilonio al griego, del griego al latin, y así.

Ellos habían llamado dioses a las siete estrellas que se movían en el cielo, y dioses seguimos llamando, miles de años después, a los siete días que se mueven en el tiempo. Los días de la semana siguen respondiendo, con ligeras variantes, a sus nombres originales: Luna, Marte, Mercúrio, Júpiter, Venus, Saturno, Sol. Lunes, martes, miércoles, jueves…


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 10.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Independência de Cuba

José Martí, Herman Norman

Os últimos bastiões do poder espanhol na América eram Cuba e Porto Rico. Em Cuba, aconteceu uma primeira, longa e difícil tentativa de libertação em 1868. Durante dez anos, os cubanos lutaram, sem êxito, para ficar livres da Espanha. Havia uma questão central na ilha: a permanência do trabalho escravo. O auge da escravidão aconteceu no século XIX, ligado ao desenvolvimento da produção açucareira. Nessa primeira tentativa de independência, os grandes fazendeiros acabaram por não apoiar essa causa, devido à ameaça espanhola de libertar os escravos. Mas a liberação deles chegou na década de 1880, a despeito das tentativas dos proprietários para seu adiamento.

Por outro lado, em Porto Rico, o movimento pela independência nunca alcançou o mesmo vigor que o cubano. Em 1868, Porto Rico tentou, em vão, libertar-se da Espanha. Aquela ilha, localizada na entrada do mar do Caribe, desempenhava o papel de fortaleza, com uma poderosa guarnição militar espanhola. Além disso, Porto Rico jamais alcançara o crescimento econômico de Cuba, não contando com uma influente classe de proprietários.

Depois de sua participação, ainda muito jovem, na Primeira Guerra de Independência, entre 1868-1878, José Martí viveu no exílio no México e Estados Unidos. Neste último país, dedicou-se a organizar um Partido Revolucionário e uma expedição militar para desembarcar em Cuba e reiniciar a luta pela independência.

Assim, em 1895, começava a segunda grande guerra pela independência. Uma corrente liderada por José Martí propunha a independência plena de Cuba em relação à Espanha e já advertia para o perigo de uma possível ingerência norte-americana nos negócios da ilha. Martí morreu logo depois de iniciada a luta armada, ganhando a aura de herói.

No começo de 1898, os Estados Unidos declararam guerra à Espanha depois de um incidente no porto de Havana, quando um navio norte-americano, o Maine, explodiu e afundou. A Espanha foi acusada - ainda que nunca tivesse sido provado - por tal ato. Em poucos meses, as forças norte-americanas entraram em Havana, conquistando a vitória sobre a Espanha e a "independência" de Cuba.

Pelo Tratado de Paris, assinado no final de 1898, a Espanha cedeu aos Estados Unidos a ilha de Porto Rico, no Caribe, e as Filipinas e a ilha de Guam, no Pacífico. Cuba ficou independente, mas se transformou em protetorado dos Estados Unidos. Um bom exemplo desse status foi o acréscimo à Constituição cubana de uma emenda proposta pelo senador norte-americano Orville H. Platt - daí ser conhecida como Emenda Platt - votada e aprovada pelo Congresso cubano em 1901 que, no parágrafo terceiro, consagrava o direito legal de intervenção (armada se necessário) dos Estados Unidos nos assuntos internos de Cuba. Em 1903, também foi assinado um Tratado de Arrendamento de Bases Navais e Militares pelo qual foram cedidos aos Estados Unidos 117 km² da costa da ilha, a hoje tão conhecida Base Naval de Guantánamo.

PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 97-98.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A herança medieval no Brasil

Bumba meu boi, Portinari

Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-história enquanto a Europa estava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luis Weckmann detectou com pertinência a existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.

Os dois elementos culturais que enquadram a consciência de nacionalidade são de origem medieval. O nome de nosso país vem da "ilha afortunada" O'Brazil, identificada nos séculos XIV-XV com as Canárias, antes de sê-lo com a América. A tradicional associação da terra descoberta por Cabral com a madeira tintorial aí encontrada (o pau-brasil) desconsidera que a própria madeira tirara seu nome da mítica ilha medieval. O idioma, obviamente, é aquele introduzido e imposto pelos colonizadores, idioma que, como todos os do mundo ocidental, nascera na Idade Média.

Na vida política, a duplicidade de um poder central teoricamente forte e a realidade dos poderes locais atuantes permanece. O ponto de partida, que deixou fundas raízes, foi o sistema de capitanias. Isto é, o sistema usado pelas comunas italianas medievais nas suas colônias do Oriente Médio e das ilhas mediterrâneas, mais especificamente por Gênova, que nos séculos XIV-XV mantinha estreitas relações com Portugal. As primeiras capitanias portuguesas, nas Ilhas Canárias, foram entregues em 1370 a um "capitão" genovês. O funcionamento do sistema foi o mesmo na Idade Média e nos séculos XVI-XVII: cada donatário tinha o usufruto das terras e nelas poderes regalianos como arrecadar impostos, aplicar justiça, convocar milícias. Intermediária privilegiada entre o poder monárquico e os colonos, a figura do donatário gerou no Brasil o personalismo típico das relações medievais, responsável pela fraqueza das instituições políticas brasileiras dos séculos seguintes.

Na vida social, por muito tempo, e ainda hoje em certas regiões, prevaleceu a família patriarcal, que dificulta a transformação do indivíduo em cidadão, dos interesses particulares em interesses gerais e, por consequência, a consolidação do Estado. O patriarca - termo correspondente linguística e funcionalmente ao senior ("o mais velho") feudal - constituía-se em suas amplas terras uma espécie de micro-Estado que produzia quase todo o necessário para a vida de sua população. O patriarca detinha ali poder de vida e morte sobre seus familiares. Dependentes das riquezas e da proteção fornecidas pelo patriarca, os demais habitantes daquela terra também estavam submetidos ao seu poder. Essa organização colonial e imperial transferiu-se para a República, por longo tempo dominada por aqueles aristocracias regionais. Mesmo a democratização recente do país não eliminou ainda o clientelismo e seu pressuposto, a prática do "dando é que se recebe".

No plano jurídico. as normas formalmente derivadas do Direito Romano não escondem a força de um direito consuetudinário informal, paralelo, de um conjunto de ilegalidades socialmente aceitas. Estas quase sempre são praticadas em detrimento do Estado, cotidianamente assaltado nas suas prerrogativas, muitas vezes por dentro, por parte de altos funcionários e dos próprios governantes. Como na época feudal, o Estado brasileiro não é uma "coisa pública" (res publica), é propriedade dos mais fortes e espertos. Ao longo de nossa história pouco se distinguiram as noções de público e privado, da mesma forma que ocorria na sociedade feudal, na qual tudo é privado e ao mesmo tempo tudo se torna público.

No plano econômico, a situação brasileira, fundamentalmente agrária até meados do século XX, denuncia o passado medieval transplantado pelos portugueses e prolongado pelo sistema colonial mercantilista e pelo neocolonialismo industrial. Da mesma forma que o sistema de valores medieval exaltava a aventura do cavaleiro andante, o destemor religioso do cruzado, o espírito de risco do mercador que partia para locais distantes, por muito se desprezou no Brasil o trabalho cotidiano e rotineiro. A ocupação do solo e a exploração das riquezas naturais deram-se, no Brasil "moderno" e "contemporâneo", de forma predatória semelhante à praticada na Europa "medieval". Associada ao caráter agrário da sociedade, a urbanização europeia fora fraca até o século XI, a brasileira até fins do século XIX.

No plano cultural, apesar da globalização neste início de milênio, alguns elementos medievais ainda são visíveis. Artur e Carlos Magno estão presentes com frequência na literatura nordestina de cordel, cujo espírito, temática, transmissão e recepção essencialmente orais prolongam a poesia europeia da Idade Média no Brasil do século XX. Mesmo certas criações eruditas do Nordeste, como os textos de Ariano Suassuna e as músicas de Elomar,, bebem fundamentalmente de fontes medievais. O calendário brasileiro atual tem 14 feriados oficiais, dos quais 11 são de origem medieval. Festas como o Carnaval, no Rio de Janeiro e no Nordeste, o Bumba meu boi, em São Luís do Maranhão, a Procissão de Círio, em Belém do Pará. têm inegáveis raízes medievais.

A religiosidade nacional, sincrética, exacerbada, informal, traz em si diversos traços medievais: as irmandades. o culto a santos não canonizados (caso de Padinho, o padre Cícero), a visão mágica de sacramentos (roubar hóstias consagradas para fazer amuletos foi comum na Europa medieval e no Brasil colonial), o sentimento messiânico-milenarista (como mostram o sebastianismo, Canudos, certos eventos políticos recentes), várias superstições (espelho quebrado, saliva cura e mata, pé direito etc.). O processo de formação do catolicismo brasileiro também lembra o fenômeno na Idade Média. Nesta ocorreu uma cristianização do paganismo e uma paganização do cristianismo, no Brasil uma cristianização do culto africano e uma africanização do cristianismo. A sensibilidade coletiva brasileira é de forte instabilidade emocional, oscilando do pessimismo mais negro ao otimismo mais eufórico, semelhante ao constatado por Marc Bloch na Europa feudal.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 168-170.