Bumba meu boi, Portinari
Mesmo no Brasil, que vivia na Pré-história enquanto a Europa estava na chamada Idade Média, muitos elementos medievais continuam presentes. A colonização portuguesa introduziu práticas que, apesar de já então superadas na metrópole, foram aqui aplicadas com vigor, inaugurando o clima de arcaísmo que marca muitos séculos e muitos aspectos da história brasileira. Luis Weckmann detectou com pertinência a existência de uma herança medieval no Brasil, porém limitou sua presença apenas até o século XVII. E, na realidade, ela continua viva ainda hoje nos nossos traços essenciais.
Os dois elementos culturais que enquadram a consciência de nacionalidade são de origem medieval. O nome de nosso país vem da "ilha afortunada" O'Brazil, identificada nos séculos XIV-XV com as Canárias, antes de sê-lo com a América. A tradicional associação da terra descoberta por Cabral com a madeira tintorial aí encontrada (o pau-brasil) desconsidera que a própria madeira tirara seu nome da mítica ilha medieval. O idioma, obviamente, é aquele introduzido e imposto pelos colonizadores, idioma que, como todos os do mundo ocidental, nascera na Idade Média.
Na vida política, a duplicidade de um poder central teoricamente forte e a realidade dos poderes locais atuantes permanece. O ponto de partida, que deixou fundas raízes, foi o sistema de capitanias. Isto é, o sistema usado pelas comunas italianas medievais nas suas colônias do Oriente Médio e das ilhas mediterrâneas, mais especificamente por Gênova, que nos séculos XIV-XV mantinha estreitas relações com Portugal. As primeiras capitanias portuguesas, nas Ilhas Canárias, foram entregues em 1370 a um "capitão" genovês. O funcionamento do sistema foi o mesmo na Idade Média e nos séculos XVI-XVII: cada donatário tinha o usufruto das terras e nelas poderes regalianos como arrecadar impostos, aplicar justiça, convocar milícias. Intermediária privilegiada entre o poder monárquico e os colonos, a figura do donatário gerou no Brasil o personalismo típico das relações medievais, responsável pela fraqueza das instituições políticas brasileiras dos séculos seguintes.
Na vida social, por muito tempo, e ainda hoje em certas regiões, prevaleceu a família patriarcal, que dificulta a transformação do indivíduo em cidadão, dos interesses particulares em interesses gerais e, por consequência, a consolidação do Estado. O patriarca - termo correspondente linguística e funcionalmente ao senior ("o mais velho") feudal - constituía-se em suas amplas terras uma espécie de micro-Estado que produzia quase todo o necessário para a vida de sua população. O patriarca detinha ali poder de vida e morte sobre seus familiares. Dependentes das riquezas e da proteção fornecidas pelo patriarca, os demais habitantes daquela terra também estavam submetidos ao seu poder. Essa organização colonial e imperial transferiu-se para a República, por longo tempo dominada por aqueles aristocracias regionais. Mesmo a democratização recente do país não eliminou ainda o clientelismo e seu pressuposto, a prática do "dando é que se recebe".
No plano jurídico. as normas formalmente derivadas do Direito Romano não escondem a força de um direito consuetudinário informal, paralelo, de um conjunto de ilegalidades socialmente aceitas. Estas quase sempre são praticadas em detrimento do Estado, cotidianamente assaltado nas suas prerrogativas, muitas vezes por dentro, por parte de altos funcionários e dos próprios governantes. Como na época feudal, o Estado brasileiro não é uma "coisa pública" (res publica), é propriedade dos mais fortes e espertos. Ao longo de nossa história pouco se distinguiram as noções de público e privado, da mesma forma que ocorria na sociedade feudal, na qual tudo é privado e ao mesmo tempo tudo se torna público.
No plano econômico, a situação brasileira, fundamentalmente agrária até meados do século XX, denuncia o passado medieval transplantado pelos portugueses e prolongado pelo sistema colonial mercantilista e pelo neocolonialismo industrial. Da mesma forma que o sistema de valores medieval exaltava a aventura do cavaleiro andante, o destemor religioso do cruzado, o espírito de risco do mercador que partia para locais distantes, por muito se desprezou no Brasil o trabalho cotidiano e rotineiro. A ocupação do solo e a exploração das riquezas naturais deram-se, no Brasil "moderno" e "contemporâneo", de forma predatória semelhante à praticada na Europa "medieval". Associada ao caráter agrário da sociedade, a urbanização europeia fora fraca até o século XI, a brasileira até fins do século XIX.
No plano cultural, apesar da globalização neste início de milênio, alguns elementos medievais ainda são visíveis. Artur e Carlos Magno estão presentes com frequência na literatura nordestina de cordel, cujo espírito, temática, transmissão e recepção essencialmente orais prolongam a poesia europeia da Idade Média no Brasil do século XX. Mesmo certas criações eruditas do Nordeste, como os textos de Ariano Suassuna e as músicas de Elomar,, bebem fundamentalmente de fontes medievais. O calendário brasileiro atual tem 14 feriados oficiais, dos quais 11 são de origem medieval. Festas como o Carnaval, no Rio de Janeiro e no Nordeste, o Bumba meu boi, em São Luís do Maranhão, a Procissão de Círio, em Belém do Pará. têm inegáveis raízes medievais.
A religiosidade nacional, sincrética, exacerbada, informal, traz em si diversos traços medievais: as irmandades. o culto a santos não canonizados (caso de Padinho, o padre Cícero), a visão mágica de sacramentos (roubar hóstias consagradas para fazer amuletos foi comum na Europa medieval e no Brasil colonial), o sentimento messiânico-milenarista (como mostram o sebastianismo, Canudos, certos eventos políticos recentes), várias superstições (espelho quebrado, saliva cura e mata, pé direito etc.). O processo de formação do catolicismo brasileiro também lembra o fenômeno na Idade Média. Nesta ocorreu uma cristianização do paganismo e uma paganização do cristianismo, no Brasil uma cristianização do culto africano e uma africanização do cristianismo. A sensibilidade coletiva brasileira é de forte instabilidade emocional, oscilando do pessimismo mais negro ao otimismo mais eufórico, semelhante ao constatado por Marc Bloch na Europa feudal.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média, nascimento do ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2011. p. 168-170.