Entre a esperança e o medo, Sir Lawrence Alma-Tadema
A cidade mais povoada, a maior, a
mais rica é Atenas, complementada a 7 quilômetros de distância
por outra cidade da Ática, o Pireu. A própria Atenas tem seu cinturão de
muralhas; outra fortificação, que acaba por envolver toda a península de Acté,
protege o Pireu: enfim, os “longos muros”, as “pernas”, unem as duas aglomerações
e Atenas ao mar. Nenhuma outra cidade da época consagrou tantos esforços,
tantos cuidados e recursos à ligação íntima de seus centros vitais e à sua
defesa. Atenas conseguiu corrigir sua posição continental e transformar-se numa
ilha, associando sua esquadra e seu exército mais intimamente do que em
qualquer outra parte, a fim de garantir sua segurança: durante todo o período
clássico, capitulará apenas uma vez, cedendo ao bloqueio e à fome, após a
destruição de sua marinha. A própria grandeza dessa concepção defensiva
proporciona-lhe o que falta à maioria das cidades, isto é, espaço no interior
das muralhas, frequentemente acanhadas, devido à falta de dinheiro, a área
indispensável ao conforto da população. Mas Atenas não soube aproveitar-se
desse espaço.
Sem dúvida, não falta lugar no
Pireu. A cidade é recente, construída em meados do século V a.C., segundo os
princípios urbanísticos da época, à base de um plano geométrico. Costeia o único
porto comercial da Ática e um dos três portos de guerra aparelhados com
estaleiros e arsenais, em torno de Acté. Barracões, armazéns, escritórios de
alfândega e de câmbio, a Bolsa encontram-se nas imediações dos cais, onde
navios vindos de todos os portos do Mediterrâneo descarregam as mais variadas
mercadorias. Para trás estende-se a cidade propriamente dita. A maior parte de
sua população é constituída de estrangeiros de todas as nacionalidades, falando
todas as línguas. Aí os marinheiros procuram e encontram os prazeres sonhados
durante o isolamento e o perigo das travessias. Os habitantes vivem do porto,
do tráfico de viajantes e de mercadorias. Mas as pessoas de bom-tom nunca se
demoram aí por muito tempo: a multidão é muito cosmopolita; os assuntos de
conversa e as preocupações giram em demasia em torno do dinheiro e do comércio.
[...]
Não foi, portanto, na direção do
Pireu e do mar, ao abrigo das novas fortificações onde subsistem muitos
terrenos vagos, que a velha Atenas procurou estender-se. Seus subúrbios crescem
principalmente para o norte, como que atraídos pela vida do campo, à qual
tantos cidadãos permanecem presos por seu ideal, pelo parentesco e pelos
interesses de proprietários territoriais. A cidade sufoca no espartilho de suas
muralhas reconstruídas às pressas, imediatamente após as guerras médicas, antes
da expansão de sua atividade política, econômica e intelectual: não se
desenvolve, porém, no sentido em que sua verdadeira vocação parecia lançá-la.
Muito arcaica, não corresponde de
maneira alguma à nossa concepção de uma grande urbe, apesar do esplendor dos
monumentos da Acrópole e de alguns templos ou edifícios públicos construídos na
cidade baixa: ruas estreitas, nas quais é proibido edificar balcões salientes,
sem calçadas nem pavimentação ou esgotos, com um canal de escoamento feito de
telhas no meio da rua; apenas uma grande fonte, construída pelos tiranos do século
VI a.C., e numerosos poços, mas cujas águas deveriam ser bastante suspeitas;
poucas praças públicas, a principal sendo a ágora
ornamentada com plátanos. Ao seu redor encontra-se o mercado ou, antes, os
mercados, visto tratar-se de ruas ou de conjuntos de ruas especializadas:
bairro da alimentação, com subdivisões para cada categoria de produtos, desde a
carne de burro até o peixe salgado; bairro dos cavalos e dos escravos; bairros
da cerâmica, do vestuário e da sapataria [...].
Xenofonte fala de 10.000 casas no
começo do século IV a.C. É demais para um espaço restrito, e jardins existem
somente nos subúrbios, que se estendem além das portas da cidade, entre os túmulos
dispostos ao longo das estradas; mas a boa sociedade só consente em habitar a
cidade. Todas essas moradias, muito modestas, não têm, em geral, senão paredes
de barro batido, pelas quais os ladrões facilmente abrem passagem. As primeiras
residências com mais de um andar e erguidas com fins especulativos causam
sensação no século IV a.C. O piso dos cômodos, quase sempre minúsculos, é de
barro batido. Falta o mais rudimentar conforto. O problema das instalações
sanitárias foi resolvido simplesmente porque nunca preocupou a ninguém.
A única superioridade das
vivendas dos ricos reside nas suas maiores dimensões: os compartimentos, um
pouco mais espaçosos, distribuem-se em volta de um pátio orlado de algumas
colunas. O luxo surge apenas tardiamente, limitado às salas de recepção, cujo
teto recebe lambris e cujas paredes são ornamentadas com tapeçarias e pinturas.
[...] O mobiliário nunca é faustoso. [...]
Passatempo, John William Godward
Se uma casa atinge um mínimo de
abastança, estabelece-se uma separação entre os cômodos reservados à vida
estritamente familiar, domínio da mulher, e o andron ou setor dos homens.
Interior grego ou gineceu, Jean-León Gérôme
A mulher, que passa diretamente
da casa de seu pai para a de seu marido, não sai. “O caráter desse sexo”,
declara Péricles, a crermos em Tucídides, consiste em “obter, entre os homens,
o mínimo possível de celebridade, tanto no bem como no mal”. Os deveres
primordiais da esposa são: dirigir as questões internas da casa, zelar pelas
vestes, ocupar-se dos filhos, sendo que os do sexo masculino escapam à sua
autoridade ao atingir sete anos, e as meninas ficam-lhe submetidas até o
casamento. [...] Na epopéia homérica, o poeta não hesitava em colocar a mãe
Nausíaca na presidência dos banquetes em casa de Acínoo. Tal cena seria
inadmissível na Grécia clássica. Percebemos, apenas, nas tragédias de Eurípedes,
nas farsas de Aristófanes, em alguns debates filosóficos, que o progresso do
individualismo principia a apresentar o problema da personalidade e da libertação
da mulher. Mas trata-se de audácias ainda teóricas, cujos efeitos reais não se
farão sentir antes do período seguinte.
Toda a vida externa, incluindo a
compra de alimentos no mercado, depende do marido.
Sem dúvida, ele é legalmente o
senhor em seu lar, mas na medida em que a preocupação com sua tranqüilidade não
o faz ceder, como Sócrates, diante de uma esposa impertinente, de fala grossa. Pode
repudiar sua mulher, sem precisar invocar motivos ou pretextos, sob a única
condição de restituir-lhe o dote. Pode decidir “não criar” seus filhos, isto é,
abandoná-los, “expô-los” na via pública nos primeiros dias de seu nascimento,
prática seguida com grande freqüência, principalmente em relação às meninas,
por razões econômicas, num país pobre, em que um forte crescimento demográfico
seria uma catástrofe. A vida nestas moradas estreitas, em companhia de uma
mulher cujo espírito, por falta de educação e de contatos sociais, é, em geral,
inculto, não lhe proporciona grandes distrações. Passa, pois, boa parte do dia
fora de casa, nos lugares públicos, onde encontra as pessoas de seu
conhecimento, conversa, informa-se e estabelece amizades, por vezes mesmo relações
mais íntimas.
Cena de simpósio: um jovem
reclinado possui um aulos em uma mão e dá outro para uma dançarina. c. 490-480 A.C. Brogos
Não faltam, na verdade, as cortesãs
de todas as categorias. Algumas são ilustres, muito cultas. Tal é o caso da milésia
Aspásia, a cuja inteligência Sócrates rendeu homenagem e que Péricles fez
abertamente sua companheira, repudiando a esposa legítima [...].
Cena de pederastia: “erastes”
(amante) tocando a genitália do “eromenos” (amado). Ca. 540 a.C.
Foto: Haiduc
De mais a mais, o amor grego é
também uma realidade resultante da camaradagem guerreira, do espetáculo
quotidiano da nudez no ginásio, de um desejo – que não é totalmente impuro – de
proteger e educar, por parte do “erasto”, de admirar e ser iniciado por parte
do “erômeno”. Numa sociedade em que o ideal masculino é, graças aos lazeres, o
de desenvolver as virtualidades individuais, de colocar corpo e espírito num
equilíbrio harmonioso, de servir à pátria no conselho e no campo de batalha,
numa sociedade em que os costumes, separando os sexos tanto quanto o permitem a
necessidades materiais, levam os homens a frequentar apenas os homens e lhes dão
o orgulho dos privilégios decorrentes de sua virilidade, a moral não pode
coincidir com aquela que uma religião e costumes diferentes modelaram entre nós.
Cena de simpósio: mural da Tumba de Paestum
Os mais ricos prolongam essas
relações externas, oferecendo banquetes em suas casas para os quais convidam
seus amigos. No andron, onde se
encontra o mais luxuoso mobiliário da casam o anfitrião, que não é assistido
por sua mulher, manda servir aos seus companheiros de cenáculo político ou
intelectual, de esporte ou de deboches, acepipes refinados e vinhos escolhidos.
Reclinados sobre os leitos, servidos por escravos, distraídos por interlúdios
de todo gênero e, principalmente, pelas tocadoras de flauta, de lira ou de cítara,
cujo salário mínimo é fixado pela lei, os convivas conversam familiarmente até
tarde da noite, ao sabor de sua fantasia. Na sua maioria essas reuniões
vesperais degeneram, indubitavelmente, em repugnantes bebedeiras, das quais
muitos não saem em boas condições. Mas nada nos impede de dar crédito, senão à
autenticidade, pelo menos à verossimilhança eventual das narrativas de
Xenofonte e de Platão, que colocam, no quadro jovial de um “banquete”, elevados
debates sobre política, filosofia ou ciência, dos quais participa Sócrates, que
se mostra, aliás, notavelmente resistente à embriaguez.
AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine.
O Oriente e a Grécia Antiga: o homem no
Oriente Próximo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 199-204. (História Geral das Civilizações, v. 2)
NOTA: O texto "As cidades gregas e a vida privada" não representa,
necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de
refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.