"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

domingo, 10 de agosto de 2014

Idade Média: O mundo do medo

A fome trazia consigo sérias consequências. A ingestão de alimentos deteriorados ou impróprios para o consumo provocava doenças que se agravavam pelo estado de subnutrição. Há relatos de populações que, esfaimadas, chegavam a comer terra. Existem também registros de atos de canibalismo, praticados em meio a pragas de ratos e gafanhotos que frequentemente assolavam os campos. Em tempos de crise, os rebanhos eram dizimados por doenças ou pela falta de alimentos. Desesperadas, as pessoas consumiam também as rações reservadas aos animais como, por exemplo, a aveia armazenada. E os poucos animais que restavam eram abatidos para suprir a carência de alimentos.

Além disso, as populações subalimentadas e sem a mínima resistência física ainda sofriam o flagelo das epidemias, muito comum em toda a Idade Média. Os surtos mais freqüentes eram de cólera, peste bubônica e ergotismo (doença provocada pela ingestão de centeio contaminado por fungos). A célebre Peste Negra – epidemia de peste bubônica iniciada em 1347 – dizimou cerca de um terço da população européia. Na Toscana, a mortalidade atingiu 80% da população e, certas regiões da Inglaterra, chegou a 60%.


Miniatura da Bíblia de Toggenburg, Suíça, 1411, sobre a "Peste Negra".

Ao relatar uma dessas crises, ocorrida entre os anos de 1032 e 1034, o cronista francês Raoul Glaber, monge de Cluny, escreveu: “A fome estendeu de tal forma sua destruição, que se podia acreditar no desaparecimento de quase todo o gênero humano. As condições climáticas se fizeram tão desfavoráveis, que não se encontrava tempo propício para nenhuma sementeira, e as inundações impediam a realização de colheitas. As chuvas incessantes embeberam a terra de tal modo que, durante três anos, não foi possível abrir sulcos capazes de receber sementes. E, no tempo da colheita, toda a superfície dos campos fora recoberta por ervas daninhas. Durante esse período, depois de consumirem pássaros e animais selvagens, os homens passaram a recolher, transtornados pela fome, toda espécie de carniça e de coisas terríveis de se dizer. Para escapar à morte, alguns recorreram às raízes da floresta e às ervas dos rios. Coisa raramente ouvida no curso das épocas, uma fome raivosa fez com que os homens devorassem carne humana. Viajantes incautos eram assaltados por homens mais robustos, que lhes utilizavam os membros, coziam-nos e os devoravam. Muitas pessoas que migravam a fim de fugir do flagelo, ao encontrar hospitalidade, eram assassinadas e serviam de alimentos aos que as haviam acolhido”.

Num mundo tão terrível, a expectativa de vida não ultrapassava os 30 anos de idade. Até mesmo as camadas mais altas sofriam as consequências dos precários recursos da medicina da época, pois as doenças fatais e a mortalidade infantil não poupavam as famílias aristocráticas. Mas, sem dúvida, era entre os camponeses que as deficiências de vida se faziam sentir mais fortemente.

São numerosos os relatos e as miniaturas da época que testemunham o deplorável estado de saúde dos homens da Idade Média. Tuberculoses e dermatoses, especialmente a lepra, eram flagelos constantes, aos quais se somavam deformações de todo tipo (cegueira, paralisia, defeitos físicos) dramaticamente representados na obra de pintores como Peter Bruegel, o Velho e Hieronimus Bosch.

Para todos esses males, receitava-se um só remédio: a expiação. Em épocas de epidemia, organizavam-se procissões, romarias e atos públicos de penitência. E para cada dor ou moléstia recorria-se a um padroeiro específico: Santo Agapito para dor de dente; São Brás para dor de garganta; São Firmino para o raquitismo; São Ciro para cólicas; São Cornélio para convulsões, e assim por diante.

O mundo medieval era o mundo do medo. Temiam-se as más colheitas, a fome, as doenças. E, segundo as crenças populares, só a religião poderia oferecer a segurança almejada, fazendo milagres inimagináveis, e até mesmo ressuscitando os mortos. Bastava invocar o santo do dia para que o pedreiro, por exemplo, se mantivesse miraculosamente sustentado no ar, quando lhe despencasse o andaime. E, embora houvesse a esperança de uma vida eterna destituída de surpresas e de morte, havia ainda o pavor da condenação ao inferno, que dava a essa outra vida o mesmo cunho de insegurança e tornava ainda mais penosa a vida terrena.


HISTÓRIA DAS CIVILIZAÇÕES. São Paulo: Abril Cultural, 1975. p. 180-182. Volume 2.

NOTA: O texto "Idade Média: O mundo do medo" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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