"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Homero, o modelador do espírito grego

Safo canta para Homero, Charles Nicolas Rafael Lafond 

Durante o século VIII a.C., logo após a Idade das Trevas, viveu o poeta Homero. Suas grandes epopéias, a Ilíada e a Odisséia, ajudaram a moldar o espírito e a religião dos gregos. Homero foi quem primeiro modelou a mentalidade e o caráter dos gregos. Séculos a fio, a juventude grega cresceu recitando os poemas homéricos e admirando seus heróis, que lutavam pela honra e enfrentavam o sofrimento e a morte com coragem.

Homero foi um gênio poético, capaz de desvendar, em poucos e brilhantes versos, os mais profundos pensamentos, sentimentos e conflitos humanos. Os personagens criados por ele, complexos em seus motivos e manifestando emoções humanas poderosas – como ira, vingança, culpa, remorso, compaixão e amor -, iriam intrigar e inspirar os escritores ocidentais até o século XX.


Estatueta de Homero. Terracota. Necrópole de Contrada Diana, Lipari. Século III a.C. 
Foto: Jastrow

A Ilíada narra, de forma poética, um pequeno episódio do último ano da guerra de Tróia, ocorrida séculos antes da época de Homero, durante o período micênico. O tema de Homero é a ira de Aquiles. Ao despojar “o rápido e excelente” Aquiles do seu justo prêmio (a jovem prisioneira Briseida), o rei Agamenon ofendeu seriamente a honra de Aquiles e violou o preceito solene de que aos heróis de guerra deviriam tratar-se com respeito. Com o orgulho ferido, Aquiles recusa-se a lutar ao lado de Agamenon na batalha contra Tróia. Aquiles intenta preservar sua honra demonstrando que os gregos não podem prescindir do seu valor e da sua bravura militar. Somente depois que muitos bravos homens são assassinados, entre eles seu dileto amigo Pátroclo, Aquiles deixa de lado sua rixa com Agamenon e entra no combate.

Homero utiliza um acontecimento particular, a disputa entre um Agamenon arrogante e um Aquiles vingativo, para demonstrar uma lei universal – que a “perversa arrogância” e a “ruinosa cólera” serão causa de muito sofrimento e morte. Homero demonstra que há uma lógica interna na existência humana. Para Homero, afirma o classicista britânico H. D. F. Kitto, “a toda ação corresponde uma conseqüência; uma ação mal avaliada acarreta maus resultados”. As ações das pessoas, e mesmo dos deuses, obedecem a certo padrão fixo; seus feitos estão subordinados aos desígnios do destino ou da necessidade. Com a visão de um poeta, Homero compreendeu aquilo que se tornaria uma atitude fundamental da mente grega: a existência de uma ordem universal para as coisas. Os gregos mais tarde a formulariam em termos filosóficos e científicos.


Apoteose de Homero, Jean Auguste Dominique Ingres

Em Homero encontramos também a origem do ideal grego de areté, excelência. O guerreiro homérico expressa um desejo ardente de afirmar-se, de demonstrar seu valor, de alcançar a glória que os poetas imortalizariam em seus cantos. No mundo aristocrático e guerreiro de Homero, a excelência era interpretada principalmente como bravura e habilidade na batalha. Vemos também na descrição de Homero o germe de uma concepção mais ampla da excelência humana: a que une o pensamento à ação. Um homem de real valor, diz o sábio Fênix ao renitente Aquiles, é “hábil no falar e destro nas ações”. Nessa passagem encontramos a primeira afirmação do ideal grego de educação – a formação de um homem que, afirma o classicista Werner Jaeger, “uniu a nobreza da ação à nobreza da mente”, que compreendeu “todas as potencialidades humanas”. Desse modo, encontram-se em Homero as origens do humanismo grego – a preocupação com o homem e suas realizações.

As obras de Homero são essencialmente uma expressão da imaginação poética e do pensamento mítico. No entanto, na sua visão da ordem eterna da natureza e na sua concepção do indivíduo em luta pela existência, estão os fundamentos da maneira de ver grega.

Embora Homero não tenha atribuído qualquer significação teológica a sua poesia, o tratamento que conferiu aos deuses teve importantes implicações religiosas para os gregos. Com o correr do tempo, suas epopéias formaram a base da religião olímpica, aceita em toda a Grécia. Afirmava-se que os principais deuses moravam no monte Olimpo, em cujo cume se situava o palácio de Zeus, a divindade mais importante. A vida cotidiana dos gregos estava impregnada de religião. Com o correr do tempo, porém, a religião tradicional seria desafiada e enfraquecida por um crescente espírito secular e racional.


PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 45-47.


NOTA: O texto "Homero, o modelador do espírito grego" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

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