"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 4 de março de 2011

A sociedade do Antigo Regime

 "L'etat c'est moi"
(Luís XIV, rei absolutista da França)

A duquesa britânica de Devonshire, Lady Georgiana Cavendish, Thomas Gaingsborough

Teriam realmente desaparecido da Europa a "peste, a fome e a guerra" que tinham caracterizado a época medieval? Por certo que não. A sociedade do Antigo Regime também tinha seus problemas. Uns visíveis e sentidos pelos que então nela viviam: as fomes periódicas, a subnutrição constante da maioria, as epidemias mortíferas, a carência de hospitais, os transportes lentos e inseguros, as guerras quase contínuas. Outros, muitas vezes, ignorados pelos contemporâneos, como a falta de higiene nos hábitos pessoais e nas condições de vida urbana e rural, o pouco valor atribuído à pessoa humana, em especial à dos humildes, a intolerância presunçosa e a superstição ignorante, a monotonia da existência e o contraste entre o trabalho extenuante, mal recompensado de muitos, e o lazer quase interminável de alguns.


A charrete, Louis Le Nain

A sociedade do Antigo Regime era uma sociedade de contrastes. De onde teria vindo a denominação sociedade do Antigo Regime?

O nome foi dado pelos que vieram depois e dela tentaram apagar até os últimos traços. O Antigo Regime era o regime da desigualdade, que se expressava nos privilégios. Eram esses privilégios que praticamente localizavam as pessoas na sociedade, em seus respectivos grupos sociais. Por isso costumamos dizer que a sociedade do Antigo Regime era uma sociedade de ordens ou de estamentos.

E o que eram essas ordens ou estamentos?

A noção de "ordem" indica que as pessoas estão distribuídas em grupos bem definidos por seus direitos e deveres, reconhecidos juridicamente. No Antigo Regime, somente o clero e a nobreza formavam ordens, enquanto os demais membros da sociedade eram, quando muito, "corpos" de natureza profissional ou administrativa.

O clero era a Primeira Ordem, porque seus membros desempenhavam tarefas diretamente ligadas à razão final da existência: a vida eterna da alma. A Segunda Ordem era constituída pela nobreza, pois como guerreiros e governantes seus membros deviam assegurar a defesa e a paz aos homens, sem o que ninguém poderia orar ou trabalhar.

Assim, enquanto os primeiros produziam a salvação e os segundos produziam a segurança, a ordem e a justiça, o restante da sociedade trabalhava para manter o corpo social.

E o que eram os "estamentos"?

Essa outra noção implica na ideia de "estar no mundo" ou de "estado", isto é, situação, tradições, perspectivas dos membros da sociedade. É uma noção que traduz, acima de tudo, uma visão estática da sociedade, significando pois que cada um deve ficar onde está por seu nascimento e formação. O importante não é a posse dos bens materiais, mas a origem e a função que se executa no interior do corpo social.

Deste modo, através das noções de "ordens" e "estamentos" a sociedade era vista como um todo organicamente relacionado, um corpo em sentido figurado, com cabeça, tronco e membros - os estamentos.

Nesta sociedade, eram muito limitadas as oportunidades de mobilidade vertical, isto é, eram restritas as chances que os indivíduos possuíam de passar de uma "ordem" ou de um "estamento" para outro, embora fosse livre a mobilidade horizontal.

[...]

A sociedade do Antigo Regime era uma sociedade ainda eminentemente agrária. Nela, o clero e a nobreza constituíam uma única classe: a aristocracia proprietária da imensa maioria das terras. No interior delas estavam compreendidas as terras do próprio príncipe. No outro extremo da sociedade situavam-se os agricultores, a grande massa camponesa que era mais de 90% da população. É importante distinguir entre eles uma pequena quantidade de proprietários rurais, com uma situação boa, e a maioria cujos rendimentos eram excessivamente baixos e viviam em condições precárias, quase miseráveis.

[...]

Enquanto isso, dois outros setores iam-se destacando nesta mesma sociedade: os "oficiais" ou servidores do príncipe e a burguesia.

Os "oficiais" constituíam a burocracia do Estado moderno absolutista, necessária à centralização do poder político nas mãos do soberano. A nobreza e a burguesia disputavam as posições no interior dessa burocracia: a burguesia estava interessada nos rendimentos seguros e nas possibilidades de ascensão pelo enobrecimento, enquanto a nobreza cobiçava as oportunidades de mando, as funções regiamente remuneradas, uma maneira de se reerguer de uma situação financeira muitas vezes difícil.

A burguesia era composta de várias camadas e setores, entre eles a burguesia mercantil e os mestres das oficinas artesanais, sendo que alguns já eram bastante prósperos para se tornarem donos de empresas manufatureiras. Muitos burgueses enriquecidos já agiam como banqueiros até mesmo dos príncipes e financiadores dos gastos suntuários da aristocracia.

Ao lado dos "oficiais" e dos burgueses, nas cidades vivia ainda a multidão de aprendizes e companheiros das oficinas artesanais, os empregados das lojas, e os inúmeros "marginais" dessa mesma sociedade: aqueles que não tinham ocupação ou emprego fixo, os mendigos, os estudantes e os ladrões.


Assim era a sociedade do Antigo Regime. [...]

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 76-84.

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