"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sábado, 5 de março de 2011

A conquista da América pelos europeus

"Tupi or not tupi, that's the question"
(Oswald de Andrade) 


Guerreiros comanches, Richard Luce 

Nos caminhos jazem dardos quebrados;
os cabelos estão espalhados.
Destelhadas estão as casas,
incandescentes estão seus muros.
Vermes abundam por ruas e praças,
 e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados.
Vermelhas estão as águas, como se alguém as tivesse tingido,
e se as bebíamos, eram água de salitre.
Golpeávamos os muros de adobe em nossa ansiedade
e nos restava por herança uma rede de buracos.
Nos escudos esteve nosso resguardo,
mas os escudos não detêm a desolação...
(Canto triste - Visão asteca da conquista)
LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Conquista da América Latina vista pelos índios. Petrópolis: Vozes, 1984. 

"Na noite da última Quinta-Feira Santa, um grupo de índios tukanos chegou-se à margem direita do rio Papuri, no povoado de Pato, para ouvir o índio Moisés relatar, em português e tukano, a cerimônia do lava-pés descrita na Bíblia. Bibiano Maia, um tukuno de 25 anos, ouviu atento à descrição da cena católica. Ao fim dela, tentou inutilmente, apesar da ajuda de seus irmãos, relembrar a narrativa ancestral sobre a origem de seu povo. Foi inútil: confundiu o nascimento do primeiro tukano com a aparição de "um branco armado de espingarda, junto à cachoeira de Ipanoré", e terminou melancolicamente a história, sem saber direito se ela se passara lá mesmo, na selva, ou "no Rio de Janeiro". (trecho de uma reportagem publicada pela revista Veja, em 19 de maio de 1976)

A situação confusa do índio Bibiano Maia, após ouvir o relato do índio Moisés, é idêntica à situação de muitos outros indígenas em vários pontos da América, desde a conquista desta parte do mundo pelos europeus. Quase todos que entraram em contato com "o homem branco" sofreram, e sofrem ainda hoje, um processo de desarticulação cultural, através do qual até mesmo os seus nomes próprios são substituídos pelos "nomes dos civilizados", como Moisés.

No trecho acima reproduzido, que outros traços de descaracterização da cultura indígena podem ser distinguidos?

As viagens de Colombo ao Novo Mundo foram seguidas pela Conquista espanhola em busca principalmente de metais preciosos. [...] 

Duzentos anos depois, na ilha [Espanhola, atual São Domingos] "muito grande, muito alta e com árvores muito verdes" onde chegara Colombo, os amistosos tainos que o receberam haviam sido dizimados, sua lavoura e artesanato simples destruídos, e a vegetação e a fauna devastadas para que surgissem em seu lugar plantações de algodão onde trabalhavam escravos.

A conquista estendeu-se ao istmo do Panamá, onde surgiram as cidades de Nombre de Diós (1509) e Panamá (1519) [...].

[...]

Utilizando seiscentos homens, armas de fogo e cavalos, e aproveitando-se das rivalidades entre os grupos indígenas, o fidalgo Fernão Cortez empreendeu, entre 1509 e 1522, a conquista do México, destruindo o Império Asteca. Imensas riquezas ofereciam-se aos espanhóis. Do México partiram expedições para o norte (sudoeste dos atuais Estados Unidos) e para o sul (atuais Guatemala, Salvador e Honduras), ampliando os limites da dominação espanhola.

Entre 1531 e 1536 a expedição de Francisco Pizarro e Diogo Almagro realizou a conquista do Peru, submetendo o poderoso Império Inca e fundando a cidade de Lima (1535). Expedições foram enviadas para a conquista dos atuais Equador, Bolívia e Chile, enquanto a expedição de Francisco Orellana descia o rio Amazonas alcançando o oceano Atlântico.

Na Bacia Platina, a conquista espanhola iniciou-se pela fundação de Santa Maria de Buenos Aires (1536) e de Assunção (1537) pelas expedições de Pedro de Mendoza e João de Aiolas, respectivamente. Todavia, nesta região como no norte do México e no Chile a colonização espanhola não conseguiu se implantar, pois o nomadismo das populações indígenas dificultava o controle pelos colonizadores. Ali, a dominação europeia foi acompanhada da extinção da população indígena, dando origem a uma América europeia, isto é, a uma região onde hoje são predominantes os traços culturais europeus.

O problema principal para os conquistadores do Novo Mundo era submeter a população indígena, utilizando-a como mão-de-obra. Nos impérios asteca e inca, os espanhóis encontraram uma população densa e numerosa, já habituada a produzir um excedente econômico e a pagar tributos. Os conquistadores espanhóis apenas substituíram os antigos senhores astecas e incas no controle que esses exerciam sobre as populações nativas. [...] Nessas regiões do alto Peru, da Bolívia, do México e da Guatemala atuais constituiu-se uma América indígena.

Nas terras baixas, situadas próximas aos Estados pré-colombianos, os espanhóis encontraram populações menos numerosas e dispersas, que viviam em aldeias mais ou menos estáveis, onde realizavam uma agricultura rudimentar e caçavam. os conquistadores foram obrigados a reunir em suas propriedades pequenos contingentes de nativos, utilizando-os em atividades produtivas. Nessas regiões a aculturação foi mais intensa, surgindo uma América mestiça, onde se combinam os traços culturais europeus e indígenas.

Desta forma, o processo de aculturação resultante do contato das culturas europeia e indígena não seguiu uma única direção, pois se em algumas regiões ocorreu uma progressiva passagem da cultura dos primeiros habitantes da América à cultura ocidental, em muitas outras existiu um processo inverso, pelo qual a cultura indígena integrou os elementos europeus sem perder suas características originais. [...]

O que ocorreu no até então poderoso Império Inca com a Conquista? O cultivo de frutos e legumes, como laranjas, figos, maçãs, nabos e a criação de aves introduzidos pelos espamhóis, expandiram-se rapidamente, mas o milho e a batata continuaram em todos os lugares como base da produção e da alimentação dos americanos, que ainda empregavam as mesmas técnicas do período anterior à conquista europeia.

Os indígenas também nem sempre aceitaram de bom grado a criação de gado espanhol, preferindo a criação de lhamas. A situação colonial, além disso, conduziu à difusão do consumo da coca, que no tempo do Inca era geralmente reservado aos sacerdotes e nobres nas cerimônias religiosas. Obrigados a trabalhos pesados, principalmente nas minas, os índios necessitavam de um estimulante, encontrando-o nesta planta andina.

A Conquista trouxe ainda uma acentuação das diferenças entre os curaca e os índios dos ayllu. Enquanto estes mantiveram o comportamento tradicional, usando as mesmas vestes e falando as línguas locais, os curaca usavam roupas europeias, aprenderam rapidamente a falar e escrever em espanhol, e adotaram os sinais de prestígio da cultura europeia, como o uso do cavalo, da espada e do arcabuz.

[...]

E como ocorreram os contatos entre os portugueses e os indígenas nas terras pertencentes ao Rei de Portugal desde a assinatura do Tratado de Tordesilhas?

Durante as três primeiras décadas do séclo XVI aqueles contatos foram quase sempre amistosos. [...]

[...]

O litoral brasileiro oferecia somente um produto que poderia ser comercializado na Europa, proporcionando lucros elevados: o pau-brasil.

[...]

As expedições exploradoras deram origem às primeiras feitorias para a extração do pau-brasil, realizada pelo trabalho dos nativos. Após derrubar as matas, cortando a madeira tintorial, os indígenas transportavam os toros para as feitorias litorâneas. Ali recebiam, em troca de seu trabalho, mercadorias de pequeno valor para os europeus, como pentes, facas, espelhos, machados ou vidrilhos. Esta relação entre o nativo e o europeu é chamada de escambo [...].

Para obter o trabalho do indígena sob a forma do escambo, os portugueses não precisavam interferir na organização social das tribos e aldeias [...] Na Europa difiundiu-se a imagem do "bom selvagem", e muitos europeus que viviam a época do Renascimento acreditavam mesmo que havia sido encontrado finalmente o Paraíso descrito por diferentes religiosos.

Os lucros proporcionados pelo comércio do pau-brasil atraíram exploradores e comerciantes de outros países europeus, sobretudo da França. [...] A solução emcontrada pela Coroa portuguesa foi o envio das expedições guarda-costas para combater os intrusos e os índios que com eles trocavam,

Surgiram, assim, os primeiros conflitos entre os portugueses e os nativos, que se aprofundaram quando os colonizadores deram início à atividade agrícola.

Com a colonização era preciso tanto ocupar as terras anteriormente habitadas pelos indígenas, quanto escravizá-los para o trabalho agrícola. Os nativos reagiram, sendo perseguidos, aprisionados, muitas vezes mortos, além de terem a sua imagem modificada: não mais o "bom selvagem", e sim o "nativo indolente" [...], que deveria ser escravizado para ser civilizado. [...]

O avanço da colonização pelo litoral no decorrer do século XVI, a ocupação do interior do território nos séculos seguintes, agravaram os conflitos. [...]

[...]

Teria sido violenta apenas a conquista realizada por espanhóis e portugueses? No território dos atuais Estados Unidos, os conquistadores ingleses também lutaram contra os nativos pela posse de suas terras, pois queriam erguer uma nova colônia - a  Nova Inglaterra. [...]

Por todas as partes as tribos indígenas se revoltaram contra o avanço do colonizador branco, mas quase sempre foram derrotadas, sendo dizimadas ou forçadas a migrar para locais mais distantes. O que acontecera nos séculos XVI, XVII e XVIII, repetia-se ainda mais uma vez no século XIX. A descoberta do ouro na Califórnia, em 1848, encheu as trilhas de Santa Fé e Oregon de carroções repletos de homens brancos. E onde estava o homem branco parecia que o índio não poderia estar junto. [...]

Os búfalos abriram as trilhas mais curtas, através das montanhas e pradarias (planícies) em busca de alimento e água. O índio seguiu o búfalo. O comerciante, o caçador e o pioneiro seguiram o índio. Os caminhos das diligências e as estradas de ferro seguiram o pioneiro. (...) As dificuldades maiores que os pioneiros enfrentavam foram criadas pelos índios. Temíveis cavaleiros, dominavam os campos de caça, percorridos pelas manadas de búfalos, dos quais dependia sua sobrevivência. Um índio a cavalo era capaz de varar o corpo de um búfalo com flechas atiradas em pleno galope. O pioneiro pode derrotar o índio, porque possuía uma técnica mais adiantada. O revólver Colt e a espingarda Winchester superaram a velocidade do arremesso das flechas. As embarcações a vapor afastaram o canoeiro indígena. O arame farpado que cercava os ranchos dos cowboys (vaqueiros), concentrava o gado e expulsava o índio. (...) MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. Brasil: uma história dinâmica. São Paulo: Nacional, 1974. v. 2.

[...]

Para erguer colônias, origem das nações americanas, os europeus travaram violentos combates entre si. Para construir um Novo Mundo, os colonizadores destruíram o Mundo que os indígenas haviam construído. Assim foi feita a América. MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977.

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