Billie Holiday, 1949.
Foto Carl van Vechten
Na tarde de 1º de dezembro de 1955, os 50 mil habitantes negros do bairro de Montgmery, no Alabama, Estados Unidos, estavam em polvorosa. A secretária da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que lutava pelo fim da segregação racial, Rosa Parks, tinha sido presa por ter utilizado um assento no ônibus, reservado por lei para brancos. Em 1954 o Supremo Tribunal dos Estados Unidos tinha declarado ilegal a discriminação racial nos colégios. Isso impulsionou a numerosa comunidade negra a empreender diversas lutas contra o racismo. O ápice desse processo se deu no dia do julgamento de Parks. Um boicote geral aos transportes foi marcado, contando com cerca de 90% de participação da comunidade negra local. Rosa Parks foi considerada culpada. O boicote foi ampliado. Nesse cenário, um jovem de 26 anos desponta como uma liderança capaz de aglutinar desejos, anseios por mudanças numa sociedade profundamente desigual. Seu nome era Martin Luther King, ou para alguns posteriormente, como o presidente Barack Obama, apenas o rei. Devido à forte atuação de Luther King, o boicote atingira seu objetivo, e em 13 de novembro de 1956 o Supremo Tribunal confirmava a decisão de um Tribunal Distrital transformando em inconstitucional a separação dos lugares dos ônibus de acordo com as raças. Essas vitórias judiciais vieram com duras e constantes lutas do movimento negro para se tornar reais, chegando ao ponto de o presidente D. Eisenhower ter de enviar tropas de paraquedistas para fazer cumprir o direito dos estudantes negros e brancos a uma educação comum. Foi nesse tumultuado contexto que a mais comovente cantora de jazz, Billie Holiday, narrou sua autobiografia.
Lançada nos Estados Unidos em 1956, a autobiografia, escrita com a colaboração do jornalista William Duft, da musa do jazz Billie Holiday, Lady Sings the Blues, foi fortemente influenciada pelo contexto das lutas raciais, da qual ela foi importante ativista. [...]
Com um estilo único e muito mais ligado ao jazz do que ao blues, a cantora americana Billie Holiday dava às músicas uma interpretação única que envolvia ao mesmo tempo uma técnica muito pessoal e uma dramatização vocal, transformando em belos sons músicas muitas vezes simples. Poucos foram os cantores ou cantoras que conseguiram influenciar músicos instrumentistas tão variados como os clarinetistas Artie Shaw e Tony Scott, o saxofonista Lester Young e os trompetistas Buck Clayton e Miles Davis, este último reconhecido como um dos principais músicos do século XX, além, é claro, de sua forte influência em cantores como Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Por não ter estudado música nem tampouco fazer leitura de partituras, talvez a única grande influência externa à obra de Holiday tenha sido o cinema, de onde tirou seu nome artístico em homenagem a atriz Billie Dove. Essa influência que o cinema exerceu no início desse modelo de canção não é perceptível apenas nas escolhas de Billie Holiday, podemos lembrar que Eunice Waymon adotou o nome Nina Simone em homenagem à atriz Simone Signoret.
Nascida no estado da Filadélfia em 1915, Eleanor Fagan, filha do músico Clarence Holiday e de Sarah Fagan, sua vida foi marcada por traumas e abandonos que a conduziram a um temperamento forte e, muitas vezes, impaciente e rude. Desde quando ainda era muito criança, seu pai saiu em excursão com sua banda e, a partir de então, ficou apenas com sua mãe, que ora a deixava com parentes, ora com vizinhos. Muito cedo começou a trabalhar como empregada e com 10 anos sofreu abusos sexuais de um vizinho, marcando para sempre sua vida. Aos 14 anos passou a morar definitivamente com sua mãe em Nova Iorque, onde começou a prostituir-se. Aos 15, então, começa seu contato mais próximo com a música. Desde cedo, quando trabalhava como empregada, Holiday pagava para escutar discos na casa de uma família. Seu dinheiro era gasto no aluguel de uma vitrola em que pudesse escutar seus discos prediletos, ou, em larga medida, os discos possíveis. Suas principais influências foram a popular cantora da década de 1920 Bessie Smith, conhecida como "A imperatriz do blues", e o trompetista Louis Armstrong, que, mesmo com estilos diferentes daqueles apresentados por Holiday ao longo da carreira, tiveram importância basilar em sua vida. Sua carreira teve início no Harlem, região com várias casas de música onde diariamente se apresentavam os mais variados músicos de jazz dos anos 1930. Depois de alguns anos cantando em casas noturnas, gravou seu primeiro LP com a banda do famoso clarinetista judeu Benny Goodman.
A partir de então sua carreira deslancha, chegando a gravar com as renomadas big bands de Artie Shaw e Count Basie. Seu sucesso passou a representar não só sua vitória pessoal, mas também a vitória do movimento negro contra o apartheid nos Estados Unidos, visto que ela foi a primeira negra a cantar com uma big band.
A música If my heart could talk fala de sonho, amor, e representa parte do que Billie Holiday sempre desejou. Ela teve relacionamentos com vários músicos, cineastas, artistas, e seu casamento foi um desastre, a conduzindo a um rude rompimento e uma profunda depressão. Na década de 1940, já estava presa ao mundo das drogas, sendo detida, processada, tendo shows cancelados e seu cabaret card cassado pela polícia, o que a proibia de cantar em bares que vendessem bebidas alcoólicas. O mundo das drogas, com uma constante pressão da mídia por conta de seus internamentos para tratamento, levou Holiday a um beco sem saída. O alcoolismo e a cocaína enfraqueceram sua já fragilizada saúde, levando Holiday a diversos problemas no fígado e coração. Com 44 anos, em 1959, o mundo perdia a voz mais singular do jazz, que morreu da forma como começou: simples, presa ao medo de não ser lembrada e amada. Holiday morreu com setenta centavos no banco e 750 dólares em notas grandes presos em sua meia. Junto com a cantora francesa Édith Piaf e com o pianista e cantor Ray Charles, foi uma das figuras mais polêmicas e discutidas de sua geração. Desde sua aparição no cinema em New Orleans, onde interpretava a empregada Endie, até suas canções de maior sucesso, como Strange fruit, que conta a história dos linchamentos sumários e das execuções públicas de negros nos Estados Unidos do século XX utilizando-se de metáforas extremamente singulares e chocantes, todos foram rodeados por muitas histórias de uma cantora que falou em forma de vida, uma vida contada e cantada. O compositor e ativista Josh White relembra o quanto Strange fruit era mais do que uma canção para Billie Holiday:
Ouvi o disco de Billie, e era algo tão forte que percebi que a canção [Strange Fruit] deveria ser usada para abrir os olhos das pessoas a certas coisas que não deveriam existir. Não queria lhe roubar nada. Amava sua interpretação da canção, mas queria apresentar Strange Fruit do meu jeito. Expliquei isso a Billie e acho que ela entendeu, depois veio frequentemente ao Café - em geral para o último espetáculo [...]. Por vezes arrastava-se e nem sequer entrava. Vinha de carro ao Village e sentava-se do lado de fora, ouvindo o rádio do carro, em companhia do seu grande boxer, Mister. Então começávamos a rodar de automóvel por todos os locais que ainda estavam abertos [...].
Falar de Billie Holiday, ou melhor, de Lady Day, como a chamava Lester Young, é ao mesmo tempo lembrar-se do quão popular foi o jazz e do quanto alguém conseguiu mergulhar em seu próprio tempo.
Mais do que uma singularidade complexa, Billie Holiday é, sem quaisquer dúvidas, uma das principais representantes da difusão do jazz e do blues nos Estados Unidos do início do século XX. Ultrapassando os núcleos de preconceitos raciais, Billie conseguiu atingir uma gama enorme de ouvintes ainda em vida e, a partir daí, demonstrar as fragilidades da sociedade americana. O famoso historiador inglês Eric Hobsbawn, em seu livro História Social do Jazz, estava correto quando afirmou que o jazz representou, em grande medida, uma forma de inserção social dos negros na preconceituosa sociedade norte-americana. O jazz em sua raiz é uma música popular tanto do mundo rural do sul quanto do urbano do norte. E, segundo o próprio Hobsbawn, algumas de suas caracterísitcas, mais no que concerne ao popular, foram mantidas por toda sua história: a importância da tradição oral na transmissão, a improvisação e velocidade de trocas e execução, dentre outros. Muitos desses aspectos podem até ser pouco reconhecidos no jazz contemporâneo, mas isso só comprova a tese de que é uma arte que não está morta, ao contrário, se mostra em constante desenvolvimento e dinamismo, ainda vinculada diretamente às percepções da sociedade nas quais está inserida.
SOUZA NETO, José Maria Gomes de [et alli]. Pequeno dicionário de grandes personagens históricos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. p. 383-87.
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