"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 28 de abril de 2017

A civilização neolítica

Imagem 1 - Estatueta feminina. Pré-cerâmica neolítica, com gesso, betume e incrustações de pedra. Ca. 9000-7000 a.C.

É que há nos invasores neolíticos um elemento de estabilidade: eles domesticaram animais e criam rebanhos.

Seus animais demoram-se nas terras boas, e voltam para a erva fresca de outra estação. O instinto do boi e do carneiro em busca de pasto e água leva atrás deles os homens; o movimento do rebanho alarga-lhes o domínio, mas torna lenta sua marcha: a captura da caça vai-se tornando menos indispensável. O clã se imobiliza e essa estabilidade relativa lhe permite melhorar seus utensílios. O homem se entrega a polir a pedra, a cinzelar os arpões, a cavar o solo para dele arrancar materiais.

Quando as pastagens se esgotam, é preciso partir: o gado dita a vida social. Esses nômades que vivem de seus animais só param quando a terra é bastante fértil para aliemntá-los sem sacrifício. Então o clã luta para nela se manter e pela posse das fontes indispensáveis aos rebanhos. O vencedor se tornará sedentário.

Depois de haver queimado a vegetação primitiva, ele semeia os grãos que viu germinar e espera a colheita. Coze tubérculos e planta árvores frutíferas. Cultiva os cereais, que ceifa, espiga por espiga, parte os grãos entre pedras chatas e os conserva em vasos de madeira, que produz em vime. Tece a lã e as fibras vegetais. Constrói cabanas de taipa e grupadas em acampamentos protegidos por paliçadas [...].

Imagem 2 - Estatueta masculina. Pré-cerâmica neolítica, com gesso, betume e incrustações de pedra. Ca. 9000-7000 a.C.

O clã se crê sob a proteção sagrada de um ser tutelar, senhor absoluto dos homens e dos bens e o poder divino desse animal faz dele a insígnia do clã, o totem, que dispõe de toda fonte de vida. Pela dança e pelo canto, o feiticeiro evoca suas energias sobrenaturais. O clã prossegue sua meditação do mistério. As planícies abertas liberam a imaginação humana e o céu ensina a noção da lei natural; as florestas concentram o espírito da observação. O culto dos mortos se desenvolve e também o da fertilidade. Para suas sepulturas, o clã levanta monumentos de pedra, dolmens, menires, ou cava abrigos artificiais; os costumes variam segundo os diversos focos de cultura neolítica.

Na mesma época coexistem já vários estágios de civilização e tais diferenças contribuem para acelerar as trocas entre os clãs, logo que o crescimento das forças produtivas lhes assegura um excedente de produção.

O objeto produzido torna-se objeto de troca: desde então, ele participa de relações sociais de uma natureza nova que sua função, por outro lado, vai modificar. É preciso primeiro produzir para depois trocar.

Imagem 3 - Cerâmica neolítica. Ca. 6200 a.C.

Os vencidos é que fornecerão o suplemento de trabalho que isso exige.

Outrora, abatiam-se os prisioneiros feitos nos combates pelo vencedor. Postos a serviço do clã vitorioso, seu trabalho contribuirá para enriquecê-lo. Não são as tarefas cada vez mais diversas? Com essa divisão constante do trabalho o encargo feminino passa a segundo plano.

A autoridade do dono dos rebanhos aumenta: ele submete a mulher e as noções de ligação de sangue cedem às de propriedade. Um duplo antagonismo dissolve a comunidade primitiva em proveito dos chefes de família e cinde a sociedade, ao mesmo tempo que a permuta regular de tribo para tribo cria diferenças de riqueza no interior do clã, onde desaparece o matriarcado.

Imagem 4 - Cerâmica do Neolítico. Ca. 6200 a.C.

À propriedade coletiva do clã tende a se sobrepor uma nova forma de propriedade: a desigualdade introduziu-se entre os homens. Depressa ela levará à propriedade individual que os chefes vigorosos reivindicarão, atribuindo-se mais prisioneiros e mais despojos.

[...] Com o crescimento numérico das populações humanas e de suas necessidades, a escravatura - essa domesticação de uma parte da humanidade pela outra - não deixará mais de se desenvolver.

[...]

Os detentores de escravos vão rapidamente beneficiar-se de uma situação privilegiada que procurarão estabilizar ajudando-se mutuamente para reforçar sua supremacia: uma classe dominante se constitui, saída diretamente das novas condições da produção.

[...]

No bem-estar em que melhoraram as condições de sua alimentação, os homens aperfeiçoaram suas técnicas. A tecelagem se torna hábil. Eles fabricam arcos e flechas, manobram suas pirogas a remo e - frágil símbolo dos sedentários - substituem os vasos de vime por uma louça de argila feita no tôrno, cozida e pintada com senso de simetria, em seus desenhos geométricos que reproduzem as fibras trançadas. [...]

Imagem 5 - A grande mãe do Neolítico. 

A reputação de seus trabalhos ganha o Mediterrâneo oriental, e encontra outras influências, que, do Golfo Pérsico, irradiam sobre o Oriente, o pé do planalto do Irã tardiamente liberto dos gelos. Também aí as inundações regulares dos rios asseguram abundantes colheitas aos nômades chegados da Ásia Central à Mesopotâmia. A cevada e o trigo aí nascem independentemente de cultivo. O solo argiloso permite construir casas de tijolos secos ao sol e de trançados de canas. [...]

Assim desabrocharam duas opulentas sociedades agrícolas, semelhantes pelos aperfeiçoamentos técnicos e pela qualidade humana: a tatuagem desapareceu no Egito e na Mesopotâmia, enquanto o resto da humanidade estava ainda na barbárie.

[...]

RIBARD, André. A prodigiosa história da humanidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1964. p. 10-3.

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