"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 1 de abril de 2015

A questão indígena na América 1: A política de extermínio na Patagônia

Epopeia do Chile, Pedro Subercaseaux

"Soldados do Exército Expedicionário ao Rio Negro [...]


Para o assombro de todos os nossos cidadãos, em pouco tempo fizestes desaparecer as numerosas tribos dos pampas, que se faziam crer invencíveis, pelo pavor que o deserto nos inspirava, e que eram como um legado fatal que as gerações  argentinas teriam ainda que transmitir umas às outras, por séculos.

[...]

Dentro de três meses estará tudo concluído. Mas a República não termina no rio Negro: mais além acampam numerosos enxames de selvagens, que são uma ameaça para o futuro e aos quais é necessário submeter às leis e usos da nação [...].

[...] Lá iremos, ainda que se ocultem nos vales mais profundos dos Andes ou se refugiem nos confins da Patagônia. (PASSETTI, Gabriel. Indígenas e criollos: política, guerra e traição nas lutas no sul da Argentina (1852-1885). São Paulo: Alameda, 2012. p. 262-263.)

Esse discurso, proferido pelo general Julio Argentino Roca (1843-1914) ao exército expedicionário argentino, em 28 de abril de 1879, revela a concepção que, no século XIX, os governos dos países da América tinham dos indígenas americanos, considerados um "legado fatal" do qual era preciso livrar as novas gerações.

Esses povos, por sua vez, eram muitos, estavam dispostos a se defender, conheciam bem o território, faziam negócios e estabeleciam alianças com os "brancos".

Como lidar com milhares de indígenas que atrapalhavam o crescimento econômico, o avanço das fronteiras e o branqueamento das populações, segundo as concepções das elites coloniais?

Os conflitos entre criollos e indígenas no território que viria a ser a Argentina se estenderam por mais de três séculos. O oeste e o sul do território eram habitados pelos pampas, ranqueles, pehuenches e tehuelches.

Desde o século XVIII, também viviam nas região os mapuches, que haviam partido do sul do atual Chile em razão do processo de conquista e ocupação militar empreendido pelo governo chileno. A política de expansão e controle executada no Chile recebeu o nome de pacificação da Araucanía e ocorreu entre 1861 e 1883. Expulsos da região onde viviam, os mapuches foram para o território argentino em busca das possibilidades de caçar gado selvagem (o cimarrón) e firmar negócios com os criollos.

Cornelio Saavedra, oficial chileno, em reunião com caciques mapuches durante a primera fase da Ocupacão da Araucanía, Manuel Olascoaga

No território argentino, ao ser gradativamente expulsos das regiões mais férteis dos pampas, os mapuches e vários e vários outros grupos indígenas passaram a sobreviver do gado roubado de estâncias e vendido em diversos mercados informais, em regiões mais distantes. As rotas de compra e venda de gado e outros artigos estendiam-se da costa do Pacífico à costa do Atlântico e eram conhecidas como rastrillados.

Por representar ameaça aos estancieiros, o governo argentino combateu os indígenas dessa região e construiu uma grande rede de fortes para proteger a província de Buenos Aires. Diante dessa situação, alguns grupos indígenas buscaram se aliar a criollos interessados em participar dos negócios feitos nas rastrilladas, ao passo que outros permaneceram em guerra com o governo até o final do século XIX.

Em 1833, durante o governo do caudilho Juan Manuel de Rosas (1793-1877), foram empreendidas expedições militares com o objetivo de mapear e dominar o território e exterminar os indígenas que viviam nos pampas úmidos (planícies férteis) e na Patagônia oriental.

Lê-se na legenda: “Expedição nos desertos do Sul contra os índios selvagens, no ano de 1833, executado com o maior acerto e sabedoria por seu chefe o grande Rosas”, Calixto Tagliabúe


Os integrantes das expedições de 1833 atacaram vários grupos indígenas e massacraram os habitantes de muitos tolderias*, mas não eliminaram todos os povos da região. Os resistentes firmaram alianças que resultaram na formação de duas grandes confederações, uma controlada pelos ranqueles e outra pelos mapuches, liderados por Juan Calfucurá (?-1873). Após longa luta, a primeira se rendeu e, depois de estabelecer um acordo com o governo, aceitou a catequese e passou a viver de provisões enviadas pelo Estado. A outra confederação, no entanto, resistiu.

Entre 1864 e 1870, as ações militares foram interrompidas por causa da Guerra do Paraguai. Os indígenas liderados por Calfucurá aproveitaram essa trégua para invadir a província de Buenos Aires, em busca de gado, ouro e provisões.

Paralelamente a esses acontecimentos, ocorria o processo de unificação do Estado argentino, com a incorporação de Buenos Aires à Confederação Argentina, em 1882, e a eleição de Bartolomé Mitre (1821-1906) para presidente. O novo governo empenhou-se no combate aos indígenas.

Em 1877, teve início a Campanha do Deserto, liderada pelo general Julio Argentino Roca. A ação militar recebeu esse nome porque as autoridades consideravam que as terras do sul estavam desertas de colonos e de "civilização". Outro objetivo do governo argentino ao empreender a Campanha do Deserto era impedir que o Chile e a Inglaterra instalassem colônias na região. Durante a campanha, as tropas do exército argentino promoviam ataques-surpresa, no meio da madrugada, às tolderias e massacravam seus habitantes. Em 1879, foram enviados 6 mil soldados, e outras expedições se sucederam até 1885, ano em que ocorreu a rendição do último cacique livre, Valentin Saygueque.

Fragmento do quadro "Conquista do deserto", Juan Manuel Blanes

Ao fim da Campanha do Deserto, o Estado argentino incorporou todo o sul da Patagônia a seu território. Guerreiros sobreviventes foram confinados numa prisão na ilha Martin Garcia, onde morreram de fome e de doenças. Mulheres e crianças foram distribuídas entre famílias ricas de Buenos Aires como empregadas, convertendo-se em mão de obra barata.

Mulheres mapuches (araucanas) no início do século XX. Fotógrafo desconhecido

* Tolderias eram conjuntos de habitações ou povoados indígenas, formados por toldos ou barracas, que eram transferidos de lugar periodicamente.

NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana. História para o ensino médio: volume 2. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 209-212.

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