[O cenário é a Inglaterra das grandes transformações industriais. Em Londres, no século XIX, um jornalista procura escrever uma reportagem sobre as obras de construção da primeira linha de trens subterrâneos: o metrô. Depara-se, então, com os reflexos de terrores arcaicos que insistem em sobreviver na alma humana, por mais que a chamada sociedade moderna acredite que estejam definitivamente soterrados.
O historiador Francisco Teixeira faz esta incursão pela ficção narrativa e emerge dela após tocar numa ferida: o medo do desconhecido é sempre mais poderoso que outros medos. Mais poderoso, inclusive, que as forças liberadas pelo avanço extraordinário da humanidade no campo material.]
Construção da estrada de ferro metropolitana (primeira ferrovia subterrânea do mundo). A ilustração mostra a trincheira e corte parcialmente concluída e túnel de cobertura perto da estação de Kings Cross, Londres. A estrada de ferro abriu em 1863, Percy William Justyne
"Te avisei que a cidade era um vão
Não faz assim, não vai lá não."
(As vitrines, Chico Buarque)
"O senhor pode entrar. Por hoje, o movimento acabou. Está tudo parado, não tem ninguém lá dentro", disse-me o guarda na entrada, enquanto me ensinava a acender esta lanterna. "Não a deixe molhar e segure sempre nesta posição", recomendou. Mas, como era mesmo? Puxar aqui e depois apertar esta... Sei lá como se chama isto. Não quer acender. Vai ver, está molhada. O que é que não está molhado neste buraco, nesta maldita noite com esta maldita chuva? Ah... Finalmente acendeu. Estas lâmpadas, estas lanternas, todas estas coisas modernas, acho que nunca vou me dar bem com elas. Devo estar ficando velho. Ou, então, é o mundo que está ficando novo demais para mim.
"Vá lá uma noite dessas, George, investigar essa história de fantasmas no túnel do metrô. Andam uns boatos por aí... Quem sabe você descobre alguma coisa, hein? Pode ser a sua grande reportagem!" - falou o imbecil do meu chefe. Enquanto eu me atolo aqui, com certeza ele se diverte às minhas custas. Devo estar velho mesmo. Repórter decadente, em fim de carreira, só é enviado para lugares e coisas que ninguém leva a sério. Fantasmas no metrô, que diabo! "Vai lá, George... Investigar..." Até me lembrei de quando aquele maluco do Brunel inaugurou o seu túnel sob o Tâmisa, uns quarenta anos atrás. Foi a mesma coisa. Começaram os boatos sobre assombrações, fantasmas. Vai ver, eram as almas penadas dos operários afogados nos desmoronamentos e inundações. E não foram poucos que morreram, Acho que mais do que fantasmas, as pessoas tinham medo mesmo era do túnel.
Como é escuro aqui dentro! Espero que nas próximas linhas não economizem tanta iluminação. Dentro deste túnel sinto-me como Jonas na barriga da baleia. Será que ele ouvia alguma coisa? Aqui, quanto mais avanço, menos ouço. Silêncio tumular. Um estranho túmulo de ferro, moderna porta do Hades, caminho novo para os "lugares inferiores", caminho que nem Homero nem Dante poderiam imaginar. Quanto será que já andei? Meia milha? Não vejo mais a entrada. Está cada vez mais escuro, se não fosse esta lanterna... Por onde será que estou passando agora? Será que estou debaixo de um hotel, um teatro, uma taberna? Quem sabe não é uma igreja? O que é aquilo ali, outro túnel? Ah, deve ser um túnel auxiliar, de serviço. Na volta talvez dê uma olhadela. Vou andar um pouco mais. Logo ali na frente deve estar Saint Pancras. Será que Teseu teve medo ao entrar no Labirinto de Creta? os heróis não têm medo, dizem as lendas. Não sei... Ainda bem que Teseu tinha o fio da sua amada Ariadne. Eu, que não sou nenhum herói, tenho a minha lanterna a gás.
Interessante. Os homens saíram das cavernas para as cidades. Nas cidades fizera incríveis labirintos de ruas, becos, travessas, esquinas e vielas. E agora querem fazer, por baixo desses, outros labirintos subterrâneos. Labirintos de corredores negros, metálicos, fuliginosos, frios, sem vida. George Chambers, meu velho, podes voltar... Ainda não será desta vez que farás a tua "grande reportagem". Podes virar a lanterna para todos os lados, para cima e para baixo, que não verás nenhum fantasma. Aqui não há fantasmas, aqui não há nada. Não há vida nem há morte. Nestas paredes de aço, vigas de ferro, parafusos, rebites e soldas, neste chão chapado de concreto por onde correm os trilhos como monótonas paralelas sem fim, não há nada além de frieza e esterilidade. Nenhuma grandeza, nenhuma fecundidade. Tudo frio, tudo feio, tudo medíocre. A isto chamam de moderno? Se é assim, os fantasmas estão fora do mundo moderno. Ao menos, "deste" mundo moderno. Sempre me disseram que os fantasmas habitam o tênue espaço entre a vida e a morte. Só se revelam em lugares especiais, muito especiais. Como as velhas catedrais, os nobres palácios, os teatros de fama e até mesmo os velhos barcos aventureiros dos grandes corsários. Lugares de nobreza e solenidade. De grandes paixões e tragédias. Neles, as pedras, as paredes, os vitrais, as frontarias, as cortinas, os lustres, os balcões, os vãos, as portas e os porões guardam íntimos segredos e ocultos mistérios. Guardam as pulsações dos vivos e dos mortos. As antigas catedrais foram feitas com o que o espírito humano tinha de mais nobre para... honrar a Deus. E este metrô? Para honra de Mamon, o deus do dinheiro. Nenhuma grandeza, nenhum mistério.
Delírios, só delírios. Está na hora de voltar. Não há nada aqui, neste lugar chato até para fantasmas. Parece que só os ratos não se incomodam com o tédio. O melhor é ir embora. Pensando bem, essa história de fantasmas, bruxas, assombrações e... vampiros, lobisomens, almas penadas, tudo isso está saindo de moda. Coitadas, as forças demoníacas estão perdendo a graça. Não assustam mais ninguém. Parecem atores de velhas companhias que não têm mais público. Não houve, há pouco, se bem me lembro, o caso daquele diplomata americano que comprou, aqui perto de Londres, um castelo mal-assombrado com fantasma e tudo? Em breve, serão esses espertos empresários americanos que virão comprar todos os fantasmas da velha Albion para apresentá-los como "atração" nos teatros baratos de Denver e San Francisco. Será uma desmoralização. Será o fim de uma das mais caras tradições britânicas. Ainda bem que os escoceses inventaram o uísque, por um bom tempo teremos alguma coisa nossa para vender aos outros... Mas, o que é isso? Que vento é esse? Vento frio! De onde está vindo, será dali do túnel de serviço? Deixe-me levantar mais a lanterna. Assim... Mas não vejo nada lá para dentro. Que vento mais estranho... Oh! A lanterna piscou, meu Deus, será que ela vai apagar... Apagou! O que houve?
Francisco Teixeira. O fantasma do metrô. In: YASBEK, Mustafá. Ecos do tempo: histórias da história. São Paulo: Clube do Livro, 1988. p. 43, 45-48.
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