"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de março de 2015

Antigo comércio

Ânfora que retrata jovens colhendo azeitonas, ca. 520 a.C., Antimenes. Foi na Antiguidade Clássica que a escravidão se tornou um modo sistemático de produção.

"É essencial que cada escravo tenha uma finalidade claramente definida. É tanto justo e vantajoso oferecer liberdade como um prêmio [...]. Também deveríamos deixar que tenham filhos que sirvam como reféns; e, como é de costume nas cidades, não deveríamos comprar escravos das mesmas origens étnicas". O conselho poderia ser dado a qualquer jovem que desejasse administrar escravos na América durante a Época Moderna, mas a admoestação foi dada por um discípulo de Aristóteles em um tratado do final do século IV a.C.

Por muito tempo o continente africano tem sido reconhecidamente o lugar que mais exportou, por séculos, pessoas para servirem de mão de obra escrava para os quatro cantos do mundo. Pesquisas arqueológicas, registros de portos, cartas e tantos outros documentos atestam a violência e a extensão deste comércio. Nem por isso, entretanto, a África pode ser considerada o único berço da escravidão.

Impérios como o egípcio, o assírio e o babilônico tinham como prática recorrente o uso do trabalho compulsório. O código de Hammurabi (1792-1750 a.C.), um conjunto de leis do período babilônico antigo, por exemplo, dedica alguns de seus parágrafos à regulamentação da compra e venda de escravos. Na sociedade babilônica antiga os escravos eram minoria, convertidos a esta condição após se tornarem prisioneiros de guerra em campanhas militares. Havia ainda homens livres que, impossibilitados de pagar suas  dívidas, vendiam esposas, filhos ou a si mesmos como escravos.

Assim como a democracia, herdamos a ideia de escravo-mercadoria mais próxima do que entendemos hoje da Antiguidade Clássica. E foi no auge da civilização grega (entre os séculos V e IV a.C.) e romana (séculos II a.C. a II d.C.), juntamente com o amplo desenvolvimento da Filosofia, da Poesia, do Direito e da Administração, que a escravidão se tornou o modo de produção dominante. As cidades-estados gregas foram, portanto, as primeiras a transformar a escravidão em um sistema de produção sistemático, que serviu de base para as realizações das cidades na Antiguidade Clássica.

Apesar da grande opulência das cidades gregas e romanas, sua economia não estava calcada em uma economia urbana. A oligárquica Esparta, a democrática Atenas e a Roma senatorial baseavam a sua economia no campo, a partir da produção de trigo, azeite e vinho. As cidades gregas foram as primeiras a empregar a mão de obra escrava no comércio e no cultivo de pequenas áreas com escassa população. Os romanos ampliaram ainda mais este uso, utilizando os cativos para o trabalho em grandes áreas de agricultura, o latifundium.

O trabalho livre e o escravo, longe de constituírem uma contradição, eram complementares. De modo geral, poucas atividades eram exclusivamente exercidas por um ou outro. Aos escravos estavam vetadas atividades relacionadas à lei, à justiça, à política, enquanto aos homens livres os trabalhos nas minas e os serviços domésticos não eram permitidos. No final do período republicano romano (509 a 27 a.C.), 90% dos artesãos eram de origem escrava. Já na Grécia do século V a.C., cidades como Atenas, Corinto e Egina tinham uma população escrava maior do que a de cidadãos livres. Em Atenas, por exemplo, havia entre 80 e 100 mil escravos e cerca de 40 mil cidadãos.

Na Grécia os escravos eram capturados através da guerra contra os povos não gregos, chamados por eles de "bárbaros", e da pirataria. Dentro do território, estrangeiros e crianças bastardas também corriam o risco da escravização. Havia lucrativos mercados de escravos, como os de Tanais, Bizâncio e Corinto. As vendas efetuadas em cada cidade-estado deveriam ser tributadas e os comerciantes eram obrigados a informar a respeito dos possíveis "defeitos" de sua mercadoria, como doenças, propensões a fugas, entre outros.

À exceção de Esparta, em que os escravos não podiam ser comprados ou vendidos, de modo geral os cativos eram mercadorias móveis. E, apesar de considerados humanos, mantinham na teoria romana um status quase similar ao dos animais de carga, considerados instrumentum semi-vocale, enquanto os escravos eram um instrumentum vocale.

Em Roma, os escravos também eram capturados a partir das guerras, que fortaleciam o poder militar do Estado. A existência dessa mão de obra permitia o crescimento econômico e, indiretamente, o recrutamento de tropas urbanas livres para o exército - no século III, por exemplo, foram guerras como as Púnicas (264-146 a.C.) que forneceram a força de trabalho para as enormes terras conquistadas.

O escravismo, entretanto, não foi preponderante em todo o Império romano. Apesar de ser um grande império tributário, os romanos não formavam uma unidade econômica social. Este modelo produtivo foi forte principalmente em parte do mundo grego, absorvido pelos romanos, na Sicília e na península italiana.

A escravidão representava a mais radical degradação do homem, convertido em meio de produção e privado de seus direitos sociais. A separação radical entre trabalho material e liberdade permitia que a completa ausência de liberdade de alguns indivíduos desse lugar à livre participação política de outros. A distinção entre trabalho e liberdade se fazia presente até mesmo na língua. Em grego clássico não havia uma palavra que denotasse o conceito de trabalho manual e intelectual. O trabalho adquiriu um status de culto divino sob a fórmula laborale est orare dos monges letrados.

Se o trabalho passa a ser visto de forma diferente dentro da tradição religiosa, engana-se quem pensa que a Igreja do Baixo Império alterou a antiga tradição da escravidão. Nos escritos de seus patriarcas, desde o apóstolo Paulo, havia uma aceitação unânime da escravidão, por parte da instituição eclesiástica, aconselhando aos escravos a obediência aos seus senhores, e a estes, o tratamento justo para seus escravos - a Igreja era uma instituição proprietária de escravos em grande escala.

A queda do Império Romano no século V e o início da Idade Média não extinguiram o trabalho escravo. Durante vários séculos na Europa conviveram diversas formas de trabalho, coexistindo, além do servo feudal, o escravo e o camponês livre. Na Europa Carolíngia, durante o século VIII, 10 a 20% da população rural eram constituídos por escravos. Na Inglaterra do século XI, os escravos compunham cerca de 10% da mão de obra e eram economicamente relevantes nas regiões mais remotas do oeste. Na Península Ibérica do século XIII (onde estão hoje Portugal e Espanha), a servidão da gleba quase desapareceu devido à grande quantidade de escravos trazidos do sul pelos muçulmanos, que dominavam a região desde o século VIII, lá permanecendo até 1492, ano no qual os europeus chegaram oficialmente à América.

Foi o califado muçulmano na Espanha que incrementou o tráfico de escravos na Europa, fazendo deste continente um importante fornecedor de braços cativos. Estes prisioneiros, de maioria eslava, abasteciam o comércio entre Veneza e o seu império islâmico ao sul do Mediterrâneo. Assim como a África, os povos eslavos serviram de reservatório de escravos para o mundo muçulmano. A palavra "eslavo", aliás, determinou etimologicamente a categoria de pessoas privadas de sua liberdade, originando slave, em inglês, sklaven, em alemão, esclavo, em espanhol, escravo, em português, por exemplo. Capturados em guerras internas ou contra os germânicos, os eslavos eram vendidos para servir de mão de obra na Europa e também nos países muçulmanos. Eram empregados basicamente no exército e na administração. Em alguns casos, eram castrados e enviados para os haréns.

Com uma atuação muito distinta do mundo atlântico-europeu, os escravos do mundo muçulmano tiveram papel de destaque. No Egito, os eslavos, que chegaram como mercadoria dos Bálcãs, atuaram como soldados e administradores na consolidação do Império Fatímida. Um deles fundou o Cairo e a maior universidade do Egito até os dias atuais, a al-Azhar, no século X.

A escravidão, enfim, não foi uma exclusividade africana e, apesar de não se poder afirmar que ela existe desde sempre, pode-se suspeitar de sua existência desde tempos imemoriais. Na Antiguidade, antes de atravessar o Atlântico, ela já havia se consolidado na Europa e também na própria África.

Cristiane Nascimento. Antigo comércio. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 10 / Nº 108 / Setembro 2014. p. 17-19.

sábado, 28 de março de 2015

Eva Perón

Eva Perón (1919-1952), Fotógrafo desconhecido

Filha ilegítima de um fazendeiro com sua costureira, Maria Eva Duarte nasceu em Los Toldos, na província de Buenos Aires, em 1919. Pobre e discriminada na infância, buscou sublimação na pequena sala de cinema que frequentava e no encantamento pelas atrizes de Hollywood. Norma Sheater em particular, inspirou as ambições e o estilo que mais tarde distinguiriam Evita como carismática líder do peronismo.

Aos 15 anos, deixou o lar materno para tentar a sorte como atriz em Buenos Aires. Suportou muitas negativas e humilhações. Conheceu Juan Domingo Perón em 1944, quando este era secretário de Trabalho e Previdência do governo do GOU. Nos episódios envolvendo a prisão do coronel, Evita organizou manifestações em sua defesa. Casaram-se em 1945, cinco dias após o lendário 17 de outubro, quando uma multidão reunida na Praça de Maio forçou o presidente Farrell a ceder, convocando Perón para discursar aos trabalhadores dos balcões da Casa Rosada.

Evita ocupou um lugar preponderante nas relações que o peronismo estabeleceu com a classe obrera na Argentina. Alçada à condição de primeira-dama com a eleição de Perón, assumiu a condução da Secretaria do Trabalho, passando a mediar os conflitos e as alianças com o meio sindical. Mobilizou potentes estratégias simbólicas para cativar a lealdade dos sindicatos e puniu os que mantiveram posições independentes.

Por meio da Fundação Eva Perón, dirigiu ações  caritativas voltadas à criação de escolas, orfanatos e asilos, à promoção de campeonatos esportivos para crianças e jovens, à acolhida dos pedidos que chegavam de camas em hospitais, máquinas de costura, brinquedos e outros favores. As cartilhas de primeiras letras adotadas nas escolas públicas reforçaram o culto à grande benfeitora, ensinando a máxima "Evita me ama". E, nos bairros populares, as mulheres foram incentivadas a organizar núcleos de ação social por meio dos quais construíam sua participação na esfera pública. Em 1947, a Argentina peronista instituiu o voto feminino.

No auge de seu prestígio, Eva Perón adoeceu. Faleceu em 26 de julho de 1952, aos 33 anos, de câncer no útero. Seu corpo foi embalsamado e exposto à visitação pública. Em 1955, após o golpe militar que derrubou o presidente, o cadáver foi roubado e levado a um cemitério na Itália. Foi mais tarde devolvido a Perón, então exilado na Espanha, e finalmente trasladado de volta a Buenos Aires, em 1975. Segue atraindo ao cemitério da Recoleta romeiros em busca de santa Evita.

PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 147.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Iconografia: D. Pedro II na abertura da Assembleia Geral, 1872

D. Pedro II na Abertura da Assembleia Geral, 1872, Pedro Américo

A imagem mostra um D. Pedro II maduro na cerimônia de abertura da Assembleia Geral de 3 de maio de 1872. Já estávamos longe da independência. O Estado brasileiro, depois da turbulência do período regencial, estava consolidado. Todavia, a independência do Brasil [...] foi essencialmente conservadora, resultando em um regime político e em uma ordem econômica e social que não incorporou as conquistas revolucionárias ligadas ao fim do Antigo Regime na Europa. Assim, a independência, relacionada a "uma era de revoluções", se combinou no Brasil com a tradição e o atraso. A elite conservadora do país, organizada em torno do imperador, havia encontrado a fórmula política ideal para conservar o poder do latifúndio agroexportador e a escravidão. 

PEDRO, Antonio [et al.]. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 282.

domingo, 22 de março de 2015

Cemitérios e funerais na arte

"O homem foi, durante milênios, o senhor soberano de sua morte e das circunstâncias da mesma". 
(Philippe Ariès)

Entrada de cemitério, Caspar David Friedrich

Funeral militar, Isaac Israéls

Cemitério sob a neve, Caspar David Friedrich

A prece, Antônio Parreiras

O dia dos mortos, William-Adolphe Bouguereau

O cemitério judeu, Jacob Isaakszoon van Ruisdae

Um funeral, Anna Ancher

O triste caminho, Jakub Schikaneder

Joana, a louca, velando o cadáver de Felipe, Francisco Pradilla Ortiz

Velho cemitério, Gyula Derkovits

O cemitério em Etaples, John Lavery

Dia de todos os santos, Jakub Schikaneder

Vista do Cemitério Pere Lachaise de Entrance, Pierre Courvoisier 

Dia das almas, Franz Skarbina

Funeral na Palestina, Oswald Achenbach

A viúva do tiro, Ernest Picio

Cemitério da cidade, Gerhard Wilhelm von Reutern

Ruínas de uma abadia, Caspar David Friedrich

Funeral rural, Vasily Perov

Cemitério ao lado de uma igreja, Ladislau Benesch

Cemitério, Gottfrid Kallstenius

Cemitério ao lado de uma igreja gótica, Hermann Lungkwitz

Cemitério judeu, Johann Alexander Boener

A fossa comum, Artista desconhecido

Cemitério dos Inocentes, Paris, Th. Hoffbauer

O funeral de Swinford, Jack B. Yeats 

sexta-feira, 20 de março de 2015

Brazil com "z": o 15 de março intolerante

Monumento "Tortura nunca mais", do arquiteto  piauiense Demétrius Albuquerque Recife, Pernambuco.

A massa sustenta a marca
A marca sustenta a mídia.
A mídia controla a massa”.
(George Orwell)

[Este post é dedicado a todos os que tombaram, sofreram perseguições, foram presos, torturados e exilados e jamais desistiram de lutar pelo Estado Democrático de Direito]

March 15, 2015. Brazilia, capital do Brazil, com z. Verde e amarelo. Ou, se preferirem, “green and yellow”. Cartazes escritos em inglês com os dizeres “We want military intervention now!”, “Brazilian Army. Please help us! We need military intervention!” – e até cartaz em francês (“Libertè, Egualitè, Fraternitè e fora PT”) e outras insanidades: “Prefiro lavar privada em Miami a passar fome em Cuba!”, “A nossa bandeira jamais será vermelha”, “SOS aposentado: sem dinheiro, sem saúde, sem tesão. Fora corrupção”. Clube militar avisa: “onipresente vigilância”. Faixas com a suástica nazista. Carecas do ABC. Quem dera fossem apenas do ABC. Bandeiras dos USA que nos USAM. Selfies. Faixas pedindo a prisão de Karl Marx (falecido há mais de um século!). Faixas pedindo o exílio das ideias do pensador Paulo Freire. Cadeia para isso. Cadeia para aquilo. Senhoras reeeditando a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Tradição, família e propriedade. Fundamentalistas religiosos guiando seus fiéis dizimistas. Retórica moralista. Globo, Veja, Folha... instigando e destilando todo seu veneno golpista. “Carnival” da Globeleza. Barbárie e selvageria. Um show de bizarrices. Mentes insanas. “Nem esquerda”, “nem direita”, “meu partido é o Brazil”!!! São Paulo, Avenida Paulista, idem idem idem. Rio de Janeiro, Orla de Copacabana idem idem idem. Praças e avenidas centrais das capitais brazileiras, idem idem idem. Cidades de porte médio. Cidades de porte pequeno. Idem idem idem. Ódio. Ódio ao pobre. Ódio ao nordestino.  Ódio ao gay. Ódio ao outro. Intoleráveis intolerâncias. Aos olhos dos estrangeiros não passamos de bárbaros. A pregação da ditadura militar precisa ser criminalizada. E o Brazil se diz cristão. Desse cristianismo não bebo. “Pai afasta de mim esse cálice”. Amém! 

Orides Maurer Junior é historiador e autor dos blogs "História e Sociedade" e "Private Life".

quinta-feira, 19 de março de 2015

A Europa depois de Roma

Guerreiros germânicos, Philipp Clüver

Na Europa, os séculos anteriores e posteriores à queda do império ocidental formaram um período tumultuado, à medida que onda após onda de invasores, eles próprios empurrados por outros ciclos de povos entrando na Europa pela Ásia, abria caminho através do continente procurando uma residência permanente.

Uma consequência da fragmentação do império ocidental, e do povoamento das regiões setentrionais pelos recém-chegados, foi o surgimento de novos idiomas. [...] o latim falado nos anos de decadência do império era reconhecivelmente a mesma língua. À medida que o império cedia terreno para uma variedade de chefetes independentes, a língua se libertava. [...] Ao longo dos oito ou nove séculos seguintes, eles se transformaram nas línguas românicas, como o italiano, o espanhol, o português, o francês e o romeno. [...] Mais ao norte, contudo, onde os invasores se viram em territórios esparsamente povoados, não houve pressão para adotar os hábitos de fala da população local e seus descendentes, separados por rios, mares e montanhas, gradualmente desenvolveram dialetos que mais tarde se tornariam o holandês, o alemão e o sueco.

Nas terras baixas da Bretanha, onde uma cultura romana floresceu por séculos, seria de se esperar que os recém-chegados adotassem p latim [...]. Mas isso não aconteceu. Eles mantiveram sua língua germânica, que acabaria se tornando o que conhecemos com inglês. [...].

Ambos os grupos linguísticos - o germânico e o latim - eram membros da família indo-europeia, que se originava de algum lugar nas regiões da estepe onde a Europa se encontra com a Ásia. A leste das terras ocupadas por povos falantes de germânico, os eslavos praticavam um terceiro grupo de dialetos indo-europeus, os predecessores do tcheco, servo-croata e russo. [...]

Uma sucessão de epidemias, que provavelmente incluía varíola, sarampo, gripe e peste, atacou as terras densamente povoadas em torno do Mediterrâneo do século II ao VII. Elas sem dúvida desempenharam um proeminente papel no enfraquecimento do império ocidental. Durante esses séculos, ondas de povoamento desembocaram nas regiões esparsamente povoadas ao norte. Como em toda parte, povoamento significava agricultura. [...] Esses povos contavam com o conhecimento acumulado das populações existentes no norte e dos povos civilizados do sul, e suas novas terras tinham solo fértil e chuva abundante. O clima frio favorecia trigo, cevada, aveia e centeio. Além disso, a chuva constante significava pasto vistoso, que significava vacas felizes. [...] À medida que derrubavam florestas e preparavam novas terras para cultivar, a produção de alimento cresceu e sua população aumentou ainda mais. [...]

[...]

A nova tecnologia mais importante foi o pesado arado de duas rodas, com uma lâmina de ferro que cortava a camada superior de grama e solo, uma relha de ferro e uma aiveca que abria a leira. Com ela era possível trabalhar o terreno mais duro. E, o mais importante, enterrava e matava as ervas daninhas. Ao criar leiras, formava canais para que a água da superfície fosse drenada. [...]

Mas as consequências da introdução do arado pesado foram muito além. Em solos pesados, ele requeria mais de oito bois, comparado com a simples parelha que até então fora suficiente. [...] esse novo arranjo significava que tarefas como semear, gradar e colher também necessitavam de uma organização cooperativa, o que só podia ser feito sob os auspícios de um conselho aldeão. [...] Ele introduziu entre as pessoas a ideia de que os costumes e as instituições não eram imutáveis; acostumou-se ao pensamento, e à prática, do autogoverno, e forneceu uma drástica ilustração da mudança tecnológica. [...]

O número de inovações importantes ocorridas na chamada Idade das Trevas europeia é grande [...]:

1. A implementação da rotação de culturas com três áreas em lugar da rotação precedente, com duas. [...]
2. A introdução do arreio em colar inventado na China, que tornou possível pela primeira vez aos cavalos da Europa puxar cargas pesadas. [...]
3. A introdução da ferradura e do balancim [...] que respectivamente protegia a pata do animal e possibilitava puxar grandes carros.

Mas não foi apenas na agricultura que esses séculos mostraram entusiasmo pela inovação. Em 1044, encontramos o primeiro moinho de marés de Veneza. O Domesday Book, levantamento feito sob as ordens de William I, rei da Inglaterra em 1086, revelou que havia 5 mil moinhos d'água só na Inglaterra. [...]

Enquanto a tecnologia transformava a vida das pessoas, mudanças ocorriam na estrutura social. Nas caóticas condições criadas com o fim da soberania romana e as ondas migratórias, as pessoas procuravam proteção para suas vidas e propriedades. Ao mesmo tempo, indivíduos ambiciosos tiravam vantagem dessas condições para aumentar sua riqueza e influência. A partir desse encontro do desejo por segurança com a avidez pelo poder, brotou gradualmente um novo quadro de composições sociais: a instituição conhecida como feudalismo. Em sua forma mais desenvolvida, consistiu em uma hierarquia de garantias e obrigações mútuas. No nível mais baixo estava o camponês, que tinha o direito de trabalhar, manter e legar sua terra em troca da obrigação de prestar serviço ao seu superior, que podia ser o senhor de uma propriedade ou o abade de um mosteiro. [...] O direito à proteção do camponês por parte de seu senhor criava uma obrigação recíproca sobre esse mesmo senhor de lhe assegurar proteção.

Enquanto o sistema do feudalismo tomava forma, uma batalha pelo poder de um tipo diferente tinha lugar: a luta pelo domínio entre a Igreja e o Estado. [...]

[...]

Os papas não estavam apenas engajados em uma luta contínua pela supremacia com os soberanos seculares do continente; viviam em conflito pela supremacia com a Igreja oriental baseada em Constantinopla [...]. O ano de 1054 testemunhou uma ruptura entre os dois, após prolongada disputa teológica. A partir daí, Roma ficou esperando por uma chance de subjugar a rival oriental.

Quarenta anos depois, a oportunidade se apresentou. Os seldjúcidas - um grupo de tribos turcas muçulmanas sunitas - haviam surgido antes vindos da Ásia e tomando controle da Pérsia (Irã), Mesopotâmia (Iraque) e Síria setentrional. Teoricamente, estavam sujeitos à soberania espiritual do califa de Bagdá, mas seu imperador, o sultão, era o efetivo soberano de toda a região. Após conquistar a Armênia, eles haviam se voltado para o império bizantino, e infligido uma sangrenta derrota sobre seus exércitos [...]. No ano seguinte, eles varreram a Palestina e a Jerusalém ocupada. Aí massacraram milhares de muçulmanos xiitas. Menos tolerantes que seus predecessores árabes, eles também fecharam a cidade para as peregrinações cristãs. Por volta de 1092, postaram-se às margens do Bósforo, em posição para atacar Constantinopla. [...]

O papa Urbano II, sabia aproveitar oportunidade quando surgia. [...] Havia outros benefícios de uma campanha militar contra os turcos. A crescente prosperidade e o aumento populacional na Europa ocidental e setentrional haviam criado uma classe de jovens inquietos de boa estirpe, com tempo de sobra, que precisavam de escape para a agressividade juvenil. Sua inquietação encontrara expressão em mesquinhas guerras e rusgas que se tornaram uma grave preocupação para as autoridades eclesiásticas. Se em vez disso pudessem ser persuadidos a combater os turcos, o povo que ficava para trás podia alimentar esperanças de uma existência mais pacífica. Isso funcionara com o islã, quatrocentos anos antes. A primeira onda de guerra santa sob a liderança Maomé fora parcialmente inspirada na necessidade de encontrar alívio para os instintos belicosos dos jovens membros tribais cujos feudos haviam tornado a vida do povo árabe miserável.

Para os jovens em questão, a oportunidade de matar com consciência limpa, e conquistar butins no processo, não precisou de grande promoção. E uma agora próspera cristandade ocidental dispunha dos recursos para montar o tipo de expedição que o papa tinha em mente.

Em 18 de novembro de 1095, Urbano convocou um conselho na cidade de Clermont, no sul da França. Em uma apinhada assembleia ao ar livre, proferiu um dos discursos mais graves da história europeia, Ele conclamou seu público a decretar uma trégua em suas disputas, a voltar as energias belicosas contra os turcos, a acorrer em auxílio de seus companheiros cristãos no leste e a reabrir a cidade santa de Jerusalém para as peregrinações cristãs. A reação ao seu discurso foi entusiástica. Quatrocentos anos após Maomé, a jihad - conflito sagrado - voltava a ser apregoada. Mas dessa vez os guerreiros marchavam ao som de um hino diferente.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 139-146.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Panorama político-econômico e movimentos populares no Império

De 1850 em diante o Brasil passou a viver um processo de transformações no plano econômico que teve suas ligações no plano político. Foi nesse momento que o novo setor da classe dominante, mais progressista e responsável pelas transformações, iniciou a luta política na defesa de seus interesses.

A fase denominada de Segundo Reinado foi marcada justamente pela luta entre o grupo conservador e o grupo progressista afinado com o capitalismo. Dessa forma, ia-se travando o embate político em que o setor escravista, em decorrência do fim do tráfico negreiro, via crescer suas dificuldades de revigoramento em virtude da escassez de mão-de-obra, cujo preço de compra não cessou de aumentar.

[...] O aumento da demanda de escravo, advindo da expansão da lavoura, agiu também como fator de elevação do seu preço.

Em consequência, criou-se um problema para as regiões que se encontravam em decadência econômica, pois o trabalho escravo inibia possíveis correntes migratórias de trabalhadores assalariados para essas regiões. Além disso, o reduzido número de escravos não era capaz de satisfazer às necessidades econômicas dessas regiões. Em decorrência, houve uma liberação da mão-de-obra escrava através do tráfico interno, para regiões que se encontravam em desenvolvimento, bem como pela abolição, como foi o caso do Ceará, que libertou seus escravos em 1884.

Escravos numa fazenda de café, Marc Ferrez

A introdução da usina na produção de açúcar marcou a tentativa de recuperação da economia nordestina, que passou a ser dotada de um alto nível de produção em escala industrial. Porém, tal inovação logo foi esvaziada pelo capital internacional, que passou a controlar esse tipo de produção.

Na Região Amazônica, devido à produção de borracha, passava-se a utilizar o trabalho assalariado, pois a mão-de-obra escrava era incompatível com tal atividade. A principal característica da exploração do trabalhador nos seringais era a dependência excessiva em que ficava em relação ao patrão, visto que o grande proprietário era o dono de todos os instrumentos na extração do látex. A má remuneração que o trabalhador recebia levou-o a enorme dependência, pois a única possibilidade de conseguir o necessário para sua sobrevivência restringia-se ao pequeno mercado existente dentro dos limites onde trabalhava. [...]

O Império não se alinhava às transformações que se processavam no plano econômico. Tendo como principal base de sustentação política a classe de proprietários de escravos, viu crescer a oposição até mesmo entre seus mais próximos aliados, como aconteceu com a Questão Religiosa que colocou em choque setores da Igreja e o governo. Já a Questão Militar acabou levando o Clube Militar a afirmar que o Exército não mais se envolveria na procura de escravos fugidos.

[...] Em 1872 foi fundado o Partido Republicano Paulista [...]. O Império se enfraquecia sem o apoio inclusive da classe média, personificada nos militares, profissionais liberais, funcionários públicos e clérigos.

[...] Para agravar os problemas, o governo imperial contava ainda com dificuldades econômicas e de abastecimento interno, pois a produção brasileira priorizava o cultivo de produtos primários para exportação [...].

A burguesia comercial, que se encontrava composta em sua grande maioria por portugueses, era a grande beneficiada com tal situação econômica, já que o país não se limitava a comprar somente artigos supérfluos, mas, também, gêneros alimentícios. [...]

O quadro econômico do país foi uma sucessão de déficits orçamentários que perduraram até a década de 1880, gerando, em consequência, uma situação inflacionária. O aumento das emissões de moedas, aliado aos empréstimos externos, colocou as classes não proprietárias em posição cada vez mais delicada, pois a miséria se generalizava.

[...]

A proclamação da República foi o último golpe desferido contra o Império. Sem sombra de dúvida, significativas parcelas dos segmentos médios urbanos, cujo setor militar assumiu papel preponderante, incorporaram a ideologia republicana, favorecendo a desarticulação das bases de sustentação política do regime monárquico. [...]

[...]

Família pobre da Província do Ceará, Fotógrafo desconhecido

[...] lutas sociais violentas ocorreram, refletindo o descontentamento de grupos ou camadas sociais contra a opressão das classes dirigentes:

"Tudo era motivo para revolta e atos de violência. Nas principais cidades, de tempos em tempos, ocorriam motins populares. As decisões governamentais que não tinham apoio ou compreensão popular não eram acatadas. A população revoltava-se contra o registro civil dos nascimentos e óbitos, contra o censo geral da população do Império, contra a aplicação dos novos padrões de pesos e medidas etc. Não realizava simples passeatas de protestos, mas autênticas lutas com mortos e feridos. Além disso, desde a Praieira (1848-1850), havia uma animosidade latente entre grandes proprietários e trabalhadores rurais. A tudo isto somava-se a atuação da imprensa e dos políticos radicais, bem como a luta entre facções da elite, disputando o controle das funções públicas. A difícil situação da economia regional ocasionava o rompimento da precária paz entre as classes sociais, e entre estas e o Estado monárquico. As insurreições, conflitos e violência demonstravam a profundidade das contradições econômicas [...]." (MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste Insurgente (1850-1890). São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 30. Coleção Tudo é História)

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al.]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 20-24.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Aspectos da economia urbana no Brasil Império

É notório que o desenvolvimento industrial na segunda metade do século XIX não correspondeu a nenhum surto de industrialização, até porque nesse momento o capital acumulado não era responsável pela criação de condições objetivas para a formação de uma burguesia industrial. Nesse período, o que ocorreu foram muito mais iniciativas individuais e isoladas que propriamente investimento em larga escala.

[...]

A década de 1880 já foi mais promissora para a indústria. Em 1885 contávamos com 13 fábricas têxteis empregando 1.670 operários e três fábricas de chapéus com 315 operários. Sem esquecer das sete empresas metalúrgicas, nesse mesmo ano, com cerca de 500 operários. Essas informações sobre a expansão da indústria na província de São Paulo, no entanto, servem para demonstrar quão frágil era a indústria brasileira e sua classe operária.

Uma fábrica em 1880, Marc Ferrez

As condições de vida da classe trabalhadora no meio urbano, em especial na cidade do Rio de Janeiro, eram muito ruins. Para as autoridades, o alto índice de mortalidade explicava-se pela insalubridade das moradias e dos locais de trabalho.

O Rio de Janeiro teve, na segunda metade do século XIX, um aumento de sua população sem que com isso fosse acompanhado, de forma planejada, a construção de habitações, o que ocasionou a superlotação em casas de cômodos, onde a circulação de ar se tornava deficitária. Esta situação, agravada pelas péssimas condições de alimentação, fragilizava ainda mais a saúde da classe trabalhadora, que se tornava vítima fácil de doenças, em sua maioria, fatais.

[...]

Uma questão a ser observada, por ter tido influência no agravamento do problema habitacional, foi a do elevado preço dos transportes no Brasil. Este transporte era constituído basicamente com o objetivo de carga e não de passageiros. Isto, quando ocorria, era para atender a uma elite. Dessa forma, a população que constituía a mão-de-obra barata para os capitalistas ficava impossibilitada de procurar os subúrbios, onde a moradia era de valor mais acessível. Esse fato levou a população a se concentrar mais próximo da região central da cidade do Rio de Janeiro para não precisar se locomover de grandes distâncias para o local de trabalho. Tal concentração agravava, assim, o problema habitacional urbano.

Entretanto, esse era um período de crescimento econômico principalmente na região cafeeira. Dessa forma, a circulação de capitais nessa região incentivou, igualmente, o desenvolvimento de outros setores, em especial o terciário. Nesse contexto, a capital do Império [...] foi grandemente beneficiada aumentando a oferta de serviços que proporcionavam maior conforto aos seus habitantes. Este foi o caso da instalação da linha de barcas, em 1870, ligando a Corte a Niterói, bem como a extensão, no mesmo ano, da linha de bonde até o Caju.

Companhias estrangeiras de transporte passaram a explorar os serviços, possibilitando, com isso, rápida oferta de linhas de bonde que buscavam integrar vários pontos distantes da cidade à vida urbana.

"O bonde de tração animal é o veículo que revoluciona os costumes da população. Sua presença altera os hábitos do fluminense: ele aproxima as famílias e permite a descoberta de locais distantes, afastados [...]. Sua exploração é bom negócio e algumas empresas estrangeiras a ele se dedicam. [...] O bonde, dizíamos, renova os costumes, traz mais conforto, facilita o convívio na rua e os encontros. Mas traz consigo, também, muitos dissabores. Desprovidos de segurança, provocam acidentes. [...]

[...] Nem por isso desaparecem de pronto os meios de transporte primitivos. Ainda se anunciam e ainda rodam a vitória, a caleça, o faeton (ou faetonte), o timon. O tílburi circula há alguns anos mediante sistema organizado. Seu uso vai perdurar até o alvorecer do século XX [...]". (RENAULT, Delso. O dia-a-dia no Rio de Janeiro: segundo os jornais, 1870-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982)

A melhoria dos transportes trouxe, também, maior oferta de lazer. Confeitarias foram instaladas, tornando-se locais de encontro de intelectuais e boêmios. A Corte igualmente se beneficiou com o funcionamento de vários teatros [...].

Com as transformações que se processavam no plano material, comportamentos, ideias e valores começaram a se alterar de forma mais acentuada. Com a expansão da imprensa, na década de 1870, presencia-se o avanço ao questionamento da ordem econômica, fazendo circular ideias de liberdade econômica, de autonomia das regiões e de reforma administrativa.

A imprensa, nesse final de século, principalmente no eixo Rio-São Paulo, acompanhou as transformações vividas. [...] Entretanto, cabe ressaltar que o número de alfabetizados girava em torno de 16% da população [...].

[...]

Sinais de novos tempos apontavam que, de forma rápida, o país aumentava a sua renda. A economia de tipo colonial baseada na mão-de-obra escrava e na monocultura, ligada a interesses externos, viu sua renda mudar de mãos: da classe escravocrata para o incipiente setor capitalista que se desenvolvia.

Esse avanço econômico teve como consequência a maior divisão do trabalho no meio urbano.

[...]

A expansão da economia ligou-se ao acréscimo de capitais provenientes do fim do tráfico negreiro. Toda essa expansão foi também acompanhada de perto pelo crescimento das cidades [...]. Dessa forma, a criação de companhias de transporte, iluminação pública a gás, água etc. contou com grande participação do capital estrangeiro, que penetrava também no setor de bens de serviço.

[...]

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et al.]. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais: da crise do escravismo ao apogeu do neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 15-19.

terça-feira, 10 de março de 2015

A lenda de Pigmalião

Dido sentada em um trono olhando para a personificação da África (vestida com pele de elefante). Navio de Enéas ao fundo. Afresco romano do século I d.C. Artista desconhecido

Matan, neto de Ethaal, após um reinado de nove anos, morreu, deixando uma filha já moça, Elisa, e Pigmalião ainda menino. Elisa, que é conhecida na História como Dido, sucedeu ao pai, tornando-se rainha; casou-se com seu tio Sicheus, homem muito rico e poderoso de Tiro, nobre e sumo-sacerdote do deus Melcart.

Quando Pigmalião se tornou maior, deu-se uma revolução em Tiro. Esta, para os historiadores, nada mais foi do que um levante da facção democrática que, destronando Dido e assassinando Sicheus, proclamaria Pigmalião rei knico.

Dido e Enéas. Afresco romano. Artista desconhecido. 
Foto: Stefano Bolognini

Pigmalião desejava apossar-se dos tesouros do cunhado, de cujo assassinato lhe atribuem a responsabilidade. Tal atitude ambiciosa levou Dido a virar-se contra o irmão, embora sem demonstrá-lo.

Temendo ser também assassinada, resolveu ir para outra região onde pudesse viver em paz com os tesouros de Sicheus. Arquitetou, então, um plano de fuga.


Enéas apresentando Cupido vestido de Ascânio para Dido, Giovanni Battista Tiepolo

Estando na ocasião na ilha de Tiro, disse ao irmão que pretendia alojar-se em seu palácio, situado na parte continental. Para isso precisava de um navio, a fim de transportá-la juntamente com os tesouros. Pigmalião deu-lhe a embarcação, recomendando aos marinheiros que vigiassem o tesouro para que chegasse intato ao continente, onde se localizava a outra parte de Tiro.

No entanto, Dido havia mandado encher vários sacos de couro com areia, dando-lhes o aspecto de conter o tesouro, ficando estes em evidência para serem vigiados pela tripulação. O verdadeiro tesouro, Dido escondeu-o num lugar secreto, dentro do navio. Quando estavam em alto mar, Dido disse aos marinheiros que pretendia fazer uma oferenda aos deuses lares de seu marido, os manes, e iniciou a cerimônia jogando os sacos de areia no mar. Os marinheiros de Pigmalião não ousaram interferir na cerimônia religiosa.

A morte de Dido, Joseph Stallaert 

Findo o ato, Dido proclamou-se juntamente com a tripulação responsável pelo desaparecimento do tesouro, afirmando que Pigmalião haveria de se vingar em todos, sem distinção. Temerosos, todos resolveram fugir com Dido para a ilha de Chipre, onde embarcaram vários exilados de Tiro e ainda 80 moças consagradas à deusa Astarté. Daí, os ventos levaram o navio para a costa da África, onde Dido e seus companheiros da facção aristocrática fundaram a cidade de Cartago, que contrastava com a democracia de Tiro.

Dido construindo Cartago, William Turner

CARVALHO, Delgado de. Historia Geral 1: Antiguidade. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 86.

sábado, 7 de março de 2015

O Magreb: O Marrocos independente

Dia de mercado fora dos muros de Tânger, Louis Comfort Tiffany

No extremo do mundo muçulmano, um tanto isolado pelas cadeias do Atlas, o Marrocos vivia à parte, submetido, não obstante, às vicissitudes do Islã mediterrânico. O Marrocos era particularmente sensível aos progressos dos cristãos. O acordo com os espanhóis em 1479 deixara aos portugueses o direito exclusivo sobre as costas da África, diante das Canárias. Os portugueses se haviam apoderado de Tânger, de Santa Cruz do Cabo de Suez (Agadir, 1504), de Safi (1508). Partindo de suas praças-fortes, realizavam incursões pelo interior e avançavam até Marráquexe. Havia tribos mouras a eles submetidas e encarregadas de seu reabastecimento em cereais. Em 1497, os espanhóis obtiveram dos portugueses a autorização de ocupar Melilha.

Este recuo do Islã provocou especial ressentimento no Marrocos, onde era intensa a vida religiosa. [...] Tal mundo encontrava-se extraordinariamente excitado e exercia grande influência sobre os fiéis a quem os chefes de zaúias ou xeques enviavam palavras de ordem.

O ódio dos sufis contra os cristãos orientava-se contra a dinastia watasida, incapaz de impedir os progressos dos infiéis, de tranquilizar o espírito dos muçulmanos por meio do corpo oficial dos ulemás. Os xeques sustentaram, contra os Watasidas, todas as revoltas de pretendentes, sendo estas apoiadas, ainda, pelos montanheses berberes insubmissos.

Coube ao Sul desempenhar o papel essencial. Os nômades lançaram-se sobre o Marrocos numa guerra santa. [...]

A dinastia atingiu o seu apogeu quando Ahmed Almansur (o Vitorioso) esmagou a cruzada portuguesa em Alcácer-Quebir (1578). [...]

Almansur manteve relações com a Europa. Na sua corte encontravam-se artesãos europeus, financistas judeus, negociantes cristãos. No seu exército eram numerosos os renegados espanhóis. [...]

Almansur localizara sua capital em Marráquexe, na porta do deserto, para melhor controlar os nômades. Queria conquistar o Sudão, a região do ouro, e criar um vasto império ligado pelas rotas saarianas [...].

[...]

A dinastia sadiana desaparece em 1654, depois que oito sultões, num total de onze, morreram assassinados. As tribos dos nômades e caravaneiros e os grupos de zaúias do Sul, mais intransigentes em matéria de fé, disputaram entre si o Marrocos. [...] Criou-se a dinastia alauita. [...]

O Marrocos, assim, conseguiu estabilizar a situação do Islã frente à civilização cristã no noroeste da África. [...]

MOUSNIER, Roland. Os Séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 192-193 e 195. (História geral das civilizações, v. 10).

quinta-feira, 5 de março de 2015

O Magreb: O Estado argelino

Jovens senhoras no terraço em Tânger, Rudolf Ernst

O Estado argelino era governado por um beilerbei designado pelo sultão e suserano dos paxás de Túnis e Trípoli. A partir de 1587, o beilerbei foi substituído por um paxá, constituindo-se Argel, Túnis e Trípoli em Regências. [...] Na realidade, os delegados dos janízaros e dos corsários exerceram o Governo após 1587. [...]

[...] Como o próprio Império Otomano, estas distantes províncias do Magreb foram dirigidas por uma empresa militar de escravos e renegados que exploravam os [...] vencidos. Os "turcos", efetivamente, conquistaram a Argélia, colocaram guarnições nos pontos estratégicos [...]. Os mouros das cidades eram excluídos das funções e do serviço militar, reservados aos turcos de raça ou de "profissão". Frequentemente aliaram-se aos nômades vencidos, aos marabus e aos fanáticos do Islã.

Argel desenvolveu-se. Em meados do século XVI, a cidade contava 60.000 habitantes, renegados na maioria, mais 25.000 cativos cristãos. Em 1650, ultrapassava 100.000 habitantes com 25 a 35.000 cativos. O século XVII foi a idade de ouro do corso, pois os argelinos tiveram a habilidade de acrescentar navios de alto bordo às suas galeras. Em 1615-1616, as presas ultrapassaram 2 a 3 milhões de libras. Os escravos eram objeto do comércio mais lucrativo. Particularmente procurados eram as moças e os rapazes, "cuja sorte era fatal", e os trabalhadores especializados em construção de navios, nos trabalhos portuários e na artilharia. [...] O comércio era ativo. Mercadores europeus instalavam-se duradouramente mediante o pagamento de uma licença à Regência e de direitos de saída. Predominavam os judeus e os marselheses. Após 1685, sofreram a concorrência dos protestantes refugiados do Languedoc. Os europeus exportavam couros, cera, lã, tâmaras, plumas de avestruz, coral, cereais e, de Túnis, esponjas. Importavam armas, vinho e telas. Mas, quando as presas diminuíam, tornava-se necessária a elevação dos impostos, o que provocava perturbações. [...]

Em Argel, bem como em Túnis, encontravam-se entre os corsários as faianças de Delft, os mármores esculpidos da Itália, as sedas e os veludos de Lião e Gênova, os vidros de Veneza, os cristais da Boêmia, as pêndulas da Inglaterra. Os benefícios da pirataria multiplicavam as mesquitas e as fundações pias.

MOUSNIER, Roland. Os Séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 190-192. (História geral das civilizações, v. 10).

terça-feira, 3 de março de 2015

O Magreb: As dependências turcas da Argélia e da Tunísia

Escrava nua com tamborim, Frank Buchser

No fim do século XV, por razões análogas às que mais tarde causariam o declínio do Império Otomano, o reino muçulmano do Magreb estava em plena decomposição. [...] Os portos correspondiam a outras tantas Repúblicas organizadas para o corso [...]. Os corsários, soldados da guerra santa contra os cristãos, pilhavam as costas, atacavam os navios, reabasteciam os mouros. Os espanhóis temiam uma coligação entre o Sultão egípcio e os soberanos do Magreb para auxiliar os mouros da Espanha. Os de Granada já haviam sublevado em 1501.

Para suprimir a ameaça que pesava sobre suas comunicações na bacia ocidental do Mediterrâneo, bem como os riscos de desembarque, para garantir a posse das bases necessárias às suas galeras ou a cabotagem que lhes é imposta, os espanhóis lançaram uma cruzada. Sucessivamente, tomaram Mers-el-Quebir (1505), Orã (1509), Bugia (1510), o Penon (Argel) e vários chefes passaram a pagar-lhes tributo. Mas os negócios da Espanha obrigavam-nos a contentar-se com uma ocupação restrita. [...]

Os muçulmanos solicitaram a ajuda de corsários instalados em Djidjeli, os quatro irmãos Barba-Ruiva. Em 1516, Arrudji Barba-Ruiva assenhoreou-se de Argel e encetou a submissão do interior. [...] seu irmão Khair-ed-Din Barba-Ruiva continuou sua obra e fundou a Regência de Argel. Para triunfar dos espanhóis e dos vencidos muçulmanos que procuravam a libertação, prestou homenagem ao sultão Selim [...].

Sufocou uma conspiração dos argelinos e das tribos, tomou Collo, Bona (1522), logo depois o Penon, constituiu em Argel, onde os corsários até então puxavam suas barcas para a areia, um porto que se transformou na principal base dos turcos, cômodo bastante para vigiar e interceptar as rotas do estreito de Gibraltar ao Mediterrâneo oriental, da Espanha do Sul para a Itália meridional e da Sicília. [...]

MOUSNIER, Roland. Os Séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 189-90. (História geral das civilizações, v. 10.)