"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Os limites do totalitarismo: resistência na Alemanha nazista

A literatura produziu dois clássicos de ficção política na primeira metade do século XX: Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1932), e 1984, de George Orwell (1949), ambos com várias edições em diversas línguas. O primeiro mostra um mundo onde a vida das pessoas é controlada por meio da ciência e da técnica. No segundo, a dominação política total é obtida pela repressão e pelo controle de toda e qualquer comunicação.

Mas, mesmo nessas histórias de ficção, existe uma falha do poder. Alguém, mesmo só por um momento, escapa do controle absoluto.

No caso do regime nazista, que não pertence ao mundo da ficção mas ao da realidade histórica, o controle da comunicação e do pensamento também não foi total e absoluto. Existem muitas evidências da capacidade de resistência a esse poder avassalador do Estado nazista. [...]

A juventude de classe média alta alemã tomou gosto pelo swing, música popular de raízes negras dos Estados Unidos. Essa juventude achava muito entediante a música volkish, ou seja, do povo, da raça alemã. Os nazistas defendiam esse tipo de música, ao mesmo tempo que condenavam as músicas estrangeiras, particularmente o swing e o jazz, ambos de origem negra e considerados imorais e destruidores da tradição alemã.

O Café Sing Sing, em Berlim, fotografado em 1934. Os garçons e a banda de jazz vestiam-se como prisioneiros, e mesmo o cenário lembrava a prisão de Sing Sing, nos Estados Unidos. Mesmo em meio à rígida disciplina nazista, as pessoas abriam espaços de crítica e resistência. 
[1934, Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Stock Photos]

Essa juventude desafiava as autoridades, promovendo reuniões para ouvir jazz e dançar swing e também organizando shows com grupos musicais alemães que imitavam as orquestras dos Estados Unidos.

Tais manifestações de inconformismo com a cultura oficial eram duramente reprimidas. Mesmo assim continuaram acontecendo clandestinamente. Um relatório da Juventude Hitlerista fala de um desses "festivais", ocorrido em fevereiro de 1940 em Hamburgo, com a presença de quinhentos a seiscentos jovens.

Outro exemplo de resistência foram as pichações. Os muros e paredes eram pichados com dizeres contra o nazismo e seus líderes. Isso era feito nas horas em que as cidades eram bombardeadas pelos aliados.

A queda na tiragem dos jornais logo depois que os nazistas submeteram todas as publicações de jornais e livros à censura do Estado também pode ser interpretada como uma reação à doutrinação nazista: muitos deixaram de ler jornais.

Outra forma de driblar a censura era escrevendo romances que se passavam em outras épocas, criando histórias e personagens medievais com características dos líderes nazistas, criticando-os indiretamente.

PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 36-7.

segunda-feira, 27 de julho de 2015

O trabalho dos camponeses no Egito Antigo

Pintura mural retratando camponeses arando os campos, a colheita das culturas e a debulha de cereais sob a direção de um supervisor. Tumba de Nakht, XVIIIª dinastia, Tebas. Artista desconhecido.

Desde a Antiguidade, a sociedade egípcia maravilhou os estrangeiros que visitavam o país. Heródoto, surpreso pela fertilidade do solo, nos diz:

"Os habitantes recolhem os frutos da terra sem nenhuma fadiga; eles não se cansam quando abrem canais de irrigação, nem quando executam outros trabalhos, nos quais outros homens despendem muito esforço; quando o rio, por si mesmo, irriga os campos e, após irrigá-los, volta ao seu leito, eles semeiam os campos [...] obtendo grandes colheitas."

Na verdade [...] as colheitas dependiam de um grande esforço coletivo. Considerando que as técnicas ainda eram muito primitivas - os instrumentos de trabalho eram feitos de pedra e madeira -, a construção de canais de irrigação, de diques e de represas, necessários para o aprimoramento das cheias do Nilo, que fornece a umidade e a fertilização, só era possível através do trabalho comunitário dirigido por um governo fortemente centralizado.

"Os movimentos do Nilo regulavam o trabalho dos camponeses. Nos meses de junho e julho, começavam as cheias que, durante três meses inundavam as terras do Vale. Neste período, o trabalho agrícola era paralisado, mas os camponeses eram recrutados pelo Faraó para a execução das grandes obras públicas. Nos meses de outubro e novembro, quando o rio voltava ao seu leito, começava a semeadura, aproveitando o solo amolecido, mas era necessário conservar a água, através da construção de canais, de diques e de represas, que permitiam manter a terra irrigada nos meses seguintes."

Podemos, então, concluir que a sociedade egípcia era fundamentalmente agrária, baseada em um complexo sistema de irrigação, em que predominava a servidão coletiva. O Estado, representado pelo Faraó, era o proprietário das terras, mas, na prática, os altos funcionários, os militares e os sacerdotes eram donos de grandes extensões.

As comunidades de aldeia, cujos membros eram unidos por laços de família e de trabalho, tinham a posse das terras, isto é, o direito de cultivá-las e de ficar com parte da produção. Os excedentes, sob a forma de impostos, eram transferidos para o Faraó e para os grandes proprietários, que os acumulavam, utilizando-os para sustentar a administração, o artesanato e o comércio com outros países. As comunidades de aldeia prestavam ainda serviços forçados nas grandes obras de irrigação, assim como na construção de palácios, de templos e de túmulos.

[...]

"Deixa-me também expor-te a situação do camponês [...] Chega a inundação e o molha [...] ele cuida de seu equipamento. De dia, ele talha seus instrumentos agrícolas; de noite, fabrica cordas. Mesmo a sua hora de sesta ele gasta no trabalho agrícola [...] O campo ressecado está diante dele; ele vai buscar sua junta de bois [...] Ao chegar a aurora, ele quer começar e não encontra naquele lugar a junta. Passa três dias procurando-a; acha-a no pântano. Não há mais peles nos animais: os chacais os haviam devorado [...] Leva tempo cultivando [...] Não vê nem sequer uma folha verde [...] Agora o escriba desembarca na margem. Mede a colheita. Auxiliares estão atrás dele com varas e núbios, com porretes. Um deles lhe diz: "Entrega o cereal!" 'Não há!' Ele é surrado sem piedade [...] amarrado, jogado no poço, com a cabeça debaixo d'água. Sua mulher é atada em sua presença. Seus filhos estão presos em grilhões [...] Ao terminar tudo, não há cereal." (Provavelmente escrito por volta de 1100 a.C.)

[...] 

O artesanato especializado, voltado para a produção de artigos de luxo, desenvolveu-se nas cidades, produzindo para o Faraó e para a classe dominante. O comércio interno era muito limitado - em geral, troca de produto por produto ou por pesos de metal. O comércio externo, controlado pelo Faraó, mantinha relações principalmente com a Fenícia e com o Sul da Arábia, onde obtinha especiarias e produtos para consumo da aristocracia.

A sociedade egípcia era sustentada pelo trabalho dos camponeses. Embora fossem usados escravos, sobretudo em trabalhos domésticos e na mineração, eles não constituíam a base da produção.

AQUINO, Rubim Santos Leão de [et alli]. Fazendo a História: da Pré-história ao Mundo Feudal. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1989. p. 35-6.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Memória: o Brasil visto pelos viajantes

"Os escravos eram colocados nas ruas diante das portas dos proprietários [...] deitados ou sentados [...] em número que atingia, às vezes, duzentos ou trezentos. [...] Seu alimento é carne salgada, farinha de mandioca e às vezes banana-da-terra [...] À noite os escravos são conduzidos a um ou mais armazéns e o condutor fica em pé, contando-os à medida que eles passam. [...] O comprador dá a cada um dos escravos recém-comprados um grande pano [...] e um chapéu de palha e leva-os o mais depressa possível para a sua fazenda". 
KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. São Paulo: Nacional, 1942.

As gravuras, os diários pessoais e as cartas são fontes preciosas para os historiadores reconstituírem o passado. Infelizmente, a história do Brasil Colonial contém poucos documentos desse tipo. Certamente contamos com alguma produção literária e artística realizada por membros da elite colonial. Porém, os documentos não-oficiais, escritos por pessoas comuns relatando o seu dia-a-dia, são raríssimos, já que a grande maioria da população colonial era analfabeta. Isso dificulta conhecermos vários aspectos desse período histórico, como a vida familiar, a infância, as paisagens naturais, os animais nativos, as doenças e os remédios caseiros etc.

A maioria das informações que temos sobre os dois primeiros séculos de colonização foram registradas por estrangeiros que estiveram no Brasil como náufragos ou invasores. Os religiosos franceses André Thevet e Jean de Léry, o marinheiro alemão Hans Staden, no século XVI, e os pintores holandeses Frans Post e Albert Eckout, no século XVII, deixaram relatos minuciosos e imagens primorosas do que viram no Brasil: costumes indígenas, animais (para eles) exóticos, plantas e frutas tropicais.

Vista de Itamaracá, Frans Post

Somente no século XIX, as autoridades portuguesas permitiram a entrada de estrangeiros no Brasil. A partir de então surgiram numerosos trabalhos de grande importância científica e artística sobre o Brasil. Inicialmente vieram os ingleses: Thomas Lindley (1802), John Mawe (1807), John Luccok (1808) e Henry Koster (1809). Todos eles escreveram livros sobre sua experiência no Brasil. A descrição do Rio de Janeiro feita pelo comerciante John Luccok (Notas sobre o Rio de Janeiro e Partes Meridionais do Brasil), por exemplo, nos permite conhecer o crescimento urbano da capital entre 1808 e 1818 e nos informa sobre a burocracia existente na alfândega e as atividades comerciais da época.

Com a abertura dos portos, chegaram grupos de cientistas de diferentes nacionalidades, que, acompanhados de desenhistas e pintores, lideraram expedições pelas selvas brasileiras. O zoólogo austríaco J. B. von Spix e seu colega, o botânico Karl P. von Martius, percorreram mais de 20 mil quilômetros pelo interior do Brasil entre 1817 e 1829. Coletaram e desenharam um material gigantesco: plantas, animais (mamíferos, aves) e objetos indígenas. Somente sobre botânica, o trabalho de Spix e Martius rendeu uma obra em quarenta grossos volumes com 3,811 ilustrações, na qual foram classificadas mais de 20 mil espécies de plantas brasileiras, das quais 6 mil eram desconhecidas. Essa obra foi continuada após a morte de Martius, levando 66 anos para se completar.

Bonnetia anceps, Karl P. von Martius

O francês Saint-Hilaire, entre 1816 e 1822, viajou mais de 12 mil quilômetros pelo sertão, em lombo de mula, a pé ou em frágeis canoas indígenas. Realizou uma obra grandiosa sobre a flora brasileira em nove volumes. Para os historiadores, seus relatos têm uma importância especial: eles abrangiam também aspectos sociais, históricos e culturais sobre o Brasil da época.

Outra importante expedição científica foi a organizada pelo barão alemão George H. von Langsdorff. Com uma equipe de 34 homens, percorreu 16 mil quilômetros em duas expedições realizadas entre 1824 e 1829, coletando milhares de amostras de plantas. Um dos pintores da expedição era o francês Hércules Florence. Entre mais de 200 gravuras suas, destacam-se as imagens de povos indígenas, que, hoje, são usadas como referência aos antropólogos pela riqueza de detalhes das pinturas corporais, arte plumária, objetos, armas etc.

Índios guaná, Hércules Florence

Outro pintor que acompanhou Langsdorff foi o alemão J. M. Rugendas. Depois de desligar-se da expedição, percorreu sozinho muitas províncias brasileiras, retratando aspectos da natureza e da sociedade. Retornou ao Brasil duas vezes (em 1831 e em 1847). Realizou milhares de aquarelas, desenhos e esboços sobre o Brasil, sua gente, suas cidades e suas paisagens. Seu livro Viagem Pitoresca através do Brasil tem um imenso valor artístico e documental.

Enterro, J. M. Rugendas

Entre os diários estrangeiros, merece destaque o da inglesa Maria Graham. Mulher culta, observadora, esteve duas vezes no Brasil (em 1821 e em 1823) e tornou-se amiga da imperatriz Leopoldina (esposa de d. Pedro I). Seu livro Diário de uma Viagem ao Brasil é um documento valioso sobre nossa vida social e política no início da Independência.

Em 1816, por iniciativa de d. João VI, chegou ao Brasil a Missão Francesa, um grupo de 46 artistas e mestres artesãos franceses, com o objetivo de ensinar pintura e escultura. Muitos deles apoiaram Napoleão e, com sua derrota, não encontravam ambiente para trabalhar na França. Eles influenciaram por diversos anos o gosto artístico da aristocracia brasileira. J. B. Debret participava do grupo e acabaria ficando quinze anos no Brasil. Quando voltou a Paris, em 1831, publicou sua Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, no qual retratou em belíssimas gravuras indígenas, florestas, escravos, artesãos, aristocratas, militares, autoridades, cenas urbanas e rurais e acontecimentos políticos.

Escravas negras oriundas de diversas tribos africanas trazidas para o Brasil, J. B. Debret

As obras desses estrangeiros são de grande importância para os estudiosos. Ainda hoje, os especialistas consultam suas observações, seus desenhos minuciosos e a classificação que fizeram de plantas, macacos, insetos, aves etc. Para os historiadores são uma fonte inesgotável de informações sociais e políticas. Grande parte desse valioso material encontra-se espalhada por museus e bibliotecas da Áustria, Alemanha, Rússia, Polônia, Inglaterra e França.

RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 122-5.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Construindo identidades na América Latina: de Sarmiento a Martí

Durante o século XIX, em especial na sua segunda metade, políticos, publicistas, historiadores, homens e mulheres letrados e artistas, nos mais diversos países da América Latina, refletiram sobre a história e a cultura dos Estados recém-formados, buscando dar-lhes uma particular identidade.

Desde muito cedo, ainda durante as lutas pela independência, já se indagava sobre "nossas diferenças" em relação ao Velho Mundo e sobre a "originalidade" das Américas. Afirmava-se que aqui as sociedades não eram como as europeias, pois havia índios, negros e mestiços. Assim, o próprio Simón Bolívar se perguntava na celebrada Carta de Jamaica, de 1815: "Quem somos nós?" Como resposta, escreveu: "não somos índios nem europeus, e sim uma espécie média entre os legítimos proprietários do país e os usurpadores espanhóis". Em uma palavra, éramos americanos, o que nos dava um perfil distinto do europeu.

Além dessa identificação comum - americanos - era preciso especificar aquilo que distinguia cada novo país. O Romantismo europeu que desembarcou, como enorme vigor, na metade do século XIX, nas Américas, oferecia as bases para o início do debate. Cada "povo" deveria se constituir com suas peculiaridades, com sua "natureza" particular. No campo primordial da língua, devia-se começar por demarcar as diferenças com o Velho Mundo. Tanto no Brasil, quanto nos países de colonização espanhola, foram intensas as controvérsias sobre a autonomia americana nas maneiras de falar e escrever a língua herdada dos colonizadores. Havia que romper com os preceitos estabelecidos pelas academias das antigas metrópoles, abrindo espaço para a voz do "povo" de cada uma das novas nações que precisava incorporar, inclusive, palavras das línguas indígenas.

O fundamental era forjar as nações. As elites tomaram a si tal tarefa, procurando despertar no "povo" o sentimento de lealdade à Pátria, elevada à categoria de entidade superior aos desejos e interesses individuais.

No México, no Brasil ou na Bolívia, mostravam-se as peculiaridades do torrão natal, em suas diversas facetas, nos jornais, nos púlpitos, nos museus, nas escolas, nos banquetes políticos. Assim, além dos problemas econômicos, das disputas políticas, das convulsões sociais, das guerras, que mobilizaram as energias das sociedades, aconteceram integrados a eles debates apaixonados sobre a construção da nação e a constituição de identidades.

Além das discussões sobre a língua, era imprescindível escrever a História das recentes nações, identificar e dar forma a seus heróis, marcando as diferenças com as antigas metrópoles e mostrando que a história da América Latina não era igual à europeia. O nascimento das nações se legitimava pelas lutas emancipacionistas e as façanhas dos heróis precisavam ter adequado tratamento. No entanto, para escrever a "verdadeira" História nacional era necessário, acompanhando as diretrizes europeias, pesquisar e organizar os documentos históricos comprobatórios dos "autênticos fatos". Muitos estudiosos, assim, se dedicaram a esse primeiro objetivo. Entre eles, alguns historiadores, posteriormente consagrados, como o chileno José Toríbio Medina, o brasileiro Francisco Adolfo de Varnhagen e o mexicano Carlos Maria de Bustamante. [...]

Os historiadores do século XIX interpretaram os acontecimentos a partir de uma perspectiva nacional, moldando visões que foram sendo incorporadas pelas gerações  seguintes. As narrativas sobre a vida dos heróis da independência os transformaram em figuras sagradas, colocando-os "no altar da Pátria". [...]

Do mesmo modo que as Histórias nacionais iam sendo escritas, imagens pictóricas estavam sendo elaboradas para simbolizar os grandes acontecimentos históricos. Os pintores elegeram as independências como um de seus temas mais relevantes.

El juramento de los treinta y tres orientales, Juan Manuel Blanes.
[O quadro representa os rebeldes que, em 1825, passaram da Argentina à Província Oriental - o Uruguai - para libertá-lo do Brasil.]

[...]

Muitos ensaios também foram escritos para refletir sobre questões ligadas à cultura e à política do continente. Entre eles, saliente-se um texto, publicado em 1845, da autoria do argentino Domingo Faustino Sarmiento, que se denomina Facundo ou civilização e barbárie. [...]

[...]

O texto é uma biografia de Facundo Quiroga, o caudilho de La Rioja, a um tempo adversário e correligionário de Rosas, que morreu assassinado em uma emboscada, em Barranca Yaco, em 1835. O subtítulo do livro, Civilização e barbárie, indicava suas pretensões de ultrapassar os limites individuais da personagem e construir uma análise mais abrangente e generalizadora que alcançasse toda a sociedade argentina. Sarmiento inaugurava neste livro uma matriz interpretativa que estabelecia a oposição entre o campo - lugar da barbárie, território livre dos Federalistas - e cidade - lugar da civilização, da cultura, do progresso e da riqueza. As oposições eram não só políticas, entre federalistas e unitários, mas também culturais, entre mundo letrado e tradição oral.

[...]

Se Sarmiento defendia a cultura vinda da Europa, outros autores ampliaram as narrativas do nacional elegendo os subalternos como figuras centrais de suas obras. Foi assim com o gaúcho "bárbaro", supostamente violento e ignorante, fruto do mestiço da terra americana. O argentino José Hernandez lhe dedicou o poema Martín Fierro, publicado em 1872. [...] Seus versos, que contam a triste história de um gaúcho perseguido e injustiçado, foram recitados de cor por muitas gerações.

Os escritores latino-americanos do século XIX olharam para dentro das sociedades que lhes rodeavam e não puderam escapar da constatação de que o presente era o resultado das mesclas e das misturas étnicas que aconteciam desde o início da colonização. Assim, conceberam romances nos quais os encontros étnicos estavam na base dos pares amorosos imaginados. No Brasil, José de Alencar desponta como o autor de romances - Iracema, O Guarani - em que narra os amores impossíveis entre brancos e indígenas.

[...]

No mundo das artes, ocorreu fenômeno semelhante. Se diversos pintores, por toda a América Latina, se dedicaram a pintar retratos de homens e mulheres das elites, outros tantos se deixaram seduzir pela "cor local", permitindo que temas da vida cotidiana e modelos de gente simples entrassem em suas telas. [...]

O pintor brasileiro José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899) [...] fez uma série de quadros nos quais o homem rústico do interior, o caipira, era apresentado como protagonista. Seu Caipira picando fumo é o exemplo do quadro que mostra "como eram os brasileiros". Na tela ensolarada, um homem mestiço, magro, descalço, vestindo calça e camisa surrado, corta o fumo de rolo para enrolar seu cigarro na palha colocada atrás da orelha, sentado num tronco, em frente à porta de sua casa de pau a pique, demonstra serenidade e um ar digno e de confiança. A pobreza à sua volta não lhe incomoda. O pintor indicava que também aqueles brasileiros simples e pobres integravam a nacionalidade.

Caipira picando fumo, Almeida Júnior

No México, acontecia o mesmo movimento. Os artistas escolheram temas populares para compor suas obras. José Agustín Arrieta (1803-1874?), pintor que se dedicou a produzir quadros sobre cenas populares, como mercados e bodegas da cidade de Puebla, deixou uma obra cheia de cor, com os personagens populares plenamente integrados ao ambiente. [...]

José Jara (1866-1939) constitui-se em outro bom exemplo de pintor mexicano que elegeu personagens e ambientes populares como tema de suas obras. Produziu vários quadros nos quais representava os costumes de camponeses de seu país. Entre eles, destaca-se El carnaval de Morelia, de 1899, em que mostrou as festas de carnaval, originárias de um antigo ritual camponês, num pequeno pueblo perto de Morélia.

El carnaval de Morelia, José Jara

[...] A construção das identidades nacionais foi aos poucos se estruturando concomitantemente com a ideia e o sentimento de identidade latino-americana. O nome América Latina [...] foi inventado e acabou sendo aceito como a denominação da região, marcando as diferenças que distanciavam os latino-americanos da "outra" América, a anglo-saxônica.

As visões dos latino-americanos sobre os Estados Unidos se dividiam. Para um grupo, o país do Norte aparecia como modelo a ser seguido, por seu progresso material, sinal dos "povos civilizados", por sua estabilidade política e pela iniciativa e determinação de seus habitantes. Entre os admiradores dos Estados Unidos, Domingo Faustino Sarmiento, na Argentina, e Joaquim Nabuco, no Brasil [...].

No pólo oposto, estavam aqueles que olhavam a América inglesa com temor e apreensão. Um dos primeiros, na metade do XIX, a alertar para as possibilidades expansionistas dos Estados Unidos foi o chileno Francisco Bilbao, polemista radical e inimigo do clero e dos jesuítas. Em Iniciativa de la America, escrito em 1856, propunha a união da América do Sul em torno de alguns pontos centrais: a República, a liberdade, a fraternidade universal e a prática da soberania. Insurgia-se contra qualquer tentativa de invasão da Europa e denunciava as ambições dos Estados Unidos, país com "garras" que estendiam cada vez mais em direção ao Sul. [...] 

José Martí foi considerado herói e mártir da independência cubana, tanto antes, quanto depois da Revolução Socialista de 1959. A célebre frase escrita por Martí, pouco antes de morrer, em uma carta a Manuel Mercado: "Vivi no monstro [EUA] e lhe conheço as entranhas - e minha funda é a de Davi" continua ecoando até o presente. A "funda de Davi" deveria ser manejada pelos latino-americanos para derrotar "o gigante Golias". Cunhou a expressão Nuestra América, para se opor à "outra" América dos anglo-saxões.

Em seus textos, o cubano apresentava a América Latina como uma unidade com passado e destino comuns, dos quais todos deviam de orgulhar [...].

Diferentemente da maioria dos escritores elitistas seus contemporâneos, olhava para dentro das sociedades latino-americanas e as aceitava em sua mistura étnica. Não existiam raças, afirmava ele, "apenas diversas modificações do homem, em detalhes de hábitos e de formas". Desse modo, criticava as teorias raciais e não via qualquer traço de inferioridade na composição étnica da América hispânica. Além disso, se compadecia "dos pobres da terra" e com eles se solidarizava.

Ao se encerrar o século XIX na América Latina, para construir identidades nacionais e latino-americanas, homens e mulheres pensaram sobre problemas da História e das línguas nacionais, escreveram romances, pintaram quadros e discutiram as questões étnicas. Os grandes debates da política que opunham democracia e autoritarismo; cidade e campo; ricos e pobres; elites e povo continuavam na ordem do dia. A escravidão dos negros foi abolida, sem resolver a discriminação contra os novos alforriados. Os indígenas foram arrancados do seu tradicional modo de vida em comunidades e colocados em situação de maior miséria. As mulheres tinham sido ofuscadas e postas em segundo plano, mas entrariam em cena co  todo vigor no século seguinte.

PRADO, Maria Ligia; PELLEGRINO, Gabriela. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. p. 87-100.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

A nomenclatura dos dias da semana

Os sete Deuses Olímpicos retratados são os deuses dos planetas e sua relação com os sete dias da semana. Da esquerda para a direita são: Diana (feira), Marte (3ª feira), Mercúrio (4ª feira), Júpiter (5ª feira), Vênus (6ª feira), Saturno (sábado) e Apolo (domingo). Artista italiano desconhecido, século XIX.

A observação dos astros era tão importante para guiar as pessoas nas suas atividades que os dias da semana receberam nomes que homenageiam corpos celestes. Na língua inglesa, por exemplo, o domingo é chamado Sunday ("dia do Sol"); esse dia é o primeiro da semana, o que demonstra a importância que se dava ao Sol. Em outras línguas, os demais dias da semana também se referem aos astros celestes.

Por volta do ano 100 a.C., acreditava-se que sete astros giravam em torno da Terra. Seus nomes em latim são: Saturnus, Sol, Mars, Mercurius, Jupiter, Venus e Luna. Os romanos batizaram os dias da semana com os nomes desses astros.

Para os judeus, somente o sábado tinha um nome próprio. A semana judaica foi adotada pela Igreja Católica, que a modificou. O dia seguinte ao sábado era a data dos grandes acontecimentos do cristianismo, entre eles a ressurreição de Jesus Cristo. Assim, na semana cristã, dois dias passaram a ter um nome especial: o sabbatum e o dominicus. Os outros dias eram contados usando o termo feria, que significa "dia da semana", e passaram a ser contados como feria II, feria III, feria IV, feria V e feria VI.

Somente o português, as línguas eslavas e o grego moderno conservam essa forma. As demais línguas latinas adotam a nomenclatura da semana cristã apenas para o domingo e o sábado, mas continuam a utilizar os nomes dos deuses para os outros dias da semana. (CABRINI, Conceição [et alli]. História temática: tempos e culturas. São Paulo: Scipione, 2009. p. 50-51.

Quadro I: Os dias da semana em diferentes línguas latinas

Latim

Italiano
Francês
Espanhol
Português
Dies Dominica (“dia do senhor”)

Domenica
Dimanche
Domingo
Domingo
Lunae dies (“dia da Lua”)

Lunedi
Lundi
Lunes
Segunda-feira
Marties dies (“dia de Marte”)

Martedi
Mardi
Martes
Terça-feira
Mercurii dies (“dia de Mercúrio”)

Mercoledi
Mercredi
Miércoles
Quarta-feira
Jovis dies (“dia de Júpiter”)

Giovedi
Jeudi
Jueves
Quinta-feira
Veneris dies (“dia de Vênus)

Venerdi
Vendredi
Viernes
Sexta-feira
Saturni dies (“dia de Saturno”)
Sabato
Samedi
Sábado
Sábado

DONATO, Hernani. História do calendário. São Paulo: Melhoramentos, 1992. p. 22.

Quadro II: Os dias da semana em inglês e alemão

Inglês
Alemão
Tradução
Português
Sunday
Sonntag
Sun = Sonne = Sol
Domingo
Monday
Montag
Moon = Mond = Lua
Segunda-feira
Tuesday
Dienstag
Tiu ou Ziu = Marte
Terça-feira
Wednesday
Mittwoch
Wodan = Mercúrio
Mittwoch = meia semana
Quarta-feira
Thursday
Donnerstag
Dônar = Júpiter
Quinta-feira
Friday
Freitag
Freya = Vênus
Sexta-feira
Saturday
Samstag
Samstag – adaptação do francês Samedi. Em alemão, usa-se também a palavra Sonnabend = véspera do dia do Sol
Sábado

BESSELAR, José van der. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Herder, 1956. p. 167.

terça-feira, 14 de julho de 2015

O trabalhador na Antiguidade

Artesãos egípcios. Tumba de Nebamum e Ipuki, Tebas, XVIIIª dinastia. Artista desconhecido.

"Sê escriba. Não terás canseiras e ficarás preservado de outros tipos de trabalho. Não terás de transportar a enxada, a picareta e o cesto. Não terás de guiar o arado e serás poupado de todos os tipos de canseira.
Deixe que te recorde o estado miserável do camponês: quando chegam os funcionários para fixar a taxa da colheita, as serpentes já levaram metade do cereal e o hipopótamo comeu o resto. O pássaro voraz é uma calamidade para os camponeses. O trigo que restava na eira desapareceu, os ladrões levaram-no. Não pode pagar o que deve pelos bois que pediu emprestados; além disso, os bois morreram de tanto lavrarem e debulharem. E já o escriba atraca à margem do rio para calcular o imposto sobre a colheita, com um séquito de servos armados de bastões e de núbios com ramos de palmeira".
(Sátira dos ofícios. Citado por CAMINOS, Ricardo A. "O Camponês". In: DONADONI, Sérgio (dir.). O homem egípcio. Lisboa: Presença, 1994)

[...]

Os artesãos da Antiguidade (escultores, tecelões, pintores, ourives, ferreiros, carpinteiros, barqueiros e outros) dependiam dos reis e dos nobres para as encomendas, a obtenção de matéria-prima (muitas vinham de terras distantes) e de ferramentas para sua atividade. Caprichavam no seu trabalho para garantir os pedidos e assegurar seus ganhos. Alguns, por sua habilidade e criatividade, passavam a morar no palácio e se tornavam profissionais exclusivos do rei e de sua corte. Para esses clientes tão especiais, os artesãos e artesãs usavam as melhores matérias-primas. As madeiras nobres ou raras, o mais puro metal, o couro mais macio, a argila mais fina e os melhores corantes eram, em geral, de uso exclusivo de camadas privilegiadas da população, que se interessavam mais pela raridade e luxo da peça do que por sua praticidade. Era uma forma de ostentar riqueza e poder. Daí a História ter conservado o nome dos usuários das peças – espada do rei tal, anel da princesa fulana de tal etc. -, enquanto aqueles que as manufaturaram ficaram no anonimato.

[...]

Muitas pessoas apreciam só as peças caras expostas em um museu ou nas vitrines das lojas, reproduzindo a mesma atitude de reis e nobres do passado, que desvalorizavam o trabalhador artesanal e braçal. Também ignoram que muitos objetos ainda em uso atualmente são iguais aos primeiros feitos há séculos ou milênios. O arado, por exemplo, usado hoje por lavradores pobres em muitos países, é do mesmo tipo do utilizado pelos primeiros agricultores neolíticos.

[...]

No passado, as dificuldades de obtenção de matérias-primas de qualidade e o trabalho escravo foram causas do retardamento tecnológico. Governantes e senhores de escravos não se interessavam por inventos ou melhorias técnicas destinadas a poupar seus escravos do trabalho duro e estafante. O arado, a cerâmica, o tear, as ferramentas, a metalurgia e o tingimento pouco evoluíram durante milhares de anos, desde a sua criação no final da Pré-história.

Por outro lado, as exigências do consumidor de poucas posses contribuíram muito para o desenvolvimento técnico e tecnológico. Homens e mulheres do povo desejavam artigos tão bonitos e vistosos como as jóias e as túnicas de cor púrpura dos nobres, obviamente sem pagar os preços exorbitantes que custavam. Isso estimulou comerciantes e artesãos a procurarem alternativas mais baratas para atendê-los. O vidro, por exemplo, quando bem confeccionado, substituía a pedra preciosa em colares, brincos e pulseiras. Uma mulher do povo podia comprar uma jóia falsa por um preço modesto e ficar muito satisfeita com o resultado. Para tingir tecidos, os artesãos encontraram um substituto para a púrpura: a urzela, um vegetal que nasce sobre rochas e árvores que, ao ser molhada com urina, torna-se um excelente corante vermelho. Seu custo era baixo e atendia à clientela de poucas posses.

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RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 142-143.

sábado, 11 de julho de 2015

O calendário ocidental

Calendário agrícola medieval, Pietro Crescenzi, c. 1306

"A palavra calendário origina-se do latim calenda, nome dado pelos romanos ao primeiro dia do mês, que era também o dia da cobrança de impostos". (CABRINI, Conceição [et alli]. História temática: tempos e culturas. São Paulo: Scipione, 2009. p. 52.)

Por volta de 50 a.C., a República Romana, conduzida por Júlio César, estava se transformando em Império. Dentre as várias inovações administrativas introduzidas por César, uma foi a criação de um novo calendário, em 45 a.C., que ficou conhecido como calendário juliano.

Até esse ano, Roma adotava o ano de 360 dias, com 12 meses de trinta dias. [...] essa contagem apresentava um erro de cinco dias por ano; para corrigir esse erro, os romanos introduziam, de acordo com a necessidade, um mês extra no fim do ano. [...]

Aconselhado por astrônomos, Júlio César abandonou o mês de trinta dias, que ainda era um resquício do ciclo da Lua, e criou um novo calendário, totalmente baseado no Sol [...], no qual os anos tinham 365 dias, exceto um ano em cada quatro, que 366 dias. [...]

Se o ano de 365 dias fosse dividido em 12 meses iguais, cada mês teria 30,4 dias. Para evitar esse problema, Júlio César estabeleceu que os meses teriam alternadamente 31 e 30 dias, começando com 31.

Dessa forma, somando-se os 11 primeiros meses, chegava-se a 336 dias, restando 29 dias para completar o ano de 365 dias. Ficou então estabelecido que o último mês do ano teria 29 dias e, nos anos bissextos, 30 dias.

O sistema criado por Júlio César era fácil de utilizar e de memorizar: começava com um mês de 31 dias, depois vinha um de 30, um de 31, e assim alternadamente, até que o último tinha duração variável. Infelizmente, alguns anos depois, essa solução foi estragada por interesses políticos. O problema surgiu com a prática de homenagear deuses e imperadores dando seus nomes aos meses do ano. O primeiro mês recebeu o nome do deus Marte (surgindo o mês de março), o quarto mês recebeu o nome da deusa Juno, e assim por diante. Ao próprio Júlio César coube o quinto mês, que até hoje se chama julho. Com a morte de Júlio César, assumiu o poder o imperador Augusto, que foi homenageado com o mês seguinte (agosto).

No entanto, algum bajulador notou que o mês de Júlio César tinha 31 dias, enquanto o mês de Augusto tinha somente 30. Fez-se, então, uma alteração no calendário: o mês de agosto ganhou um dia, roubado de fevereiro, que passou a ter 28 e 29 dias.

Isso trouxe um problema: uma sucessão de três meses de 31 dias - julho, agosto e setembro. Para evitar isso, alteraram-se todos os meses, de setembro a dezembro. [...]

Como os cônsules, eleitos com o mandato de um ano, tomavam posse em 1º de janeiro, essa data passou a marcar o início do ano, prática que se estende até hoje. 

CHIQUETTO, Marcos José. Breve história da medida do tempo. São Paulo: Scipione, 1996. p. 25-28. (Coleção Ponto de apoio)

terça-feira, 7 de julho de 2015

O legado cartaginês

O declínio do Império Cartaginês, William Turner

Os múltiplos contatos de ordem econômica que os cartagineses estabeleceram entre diversos povos da bacia mediterrânea resultaram em intercâmbio cultural intenso que contribuiu para a difusão da civilização. [...] Antes de mais nada, os cartagineses podem ser considerados como propagadores do alfabeto fenício ou, pelo menos, da ideia de um alfabeto consonântico. Assim, é que, provavelmente, podemos atribuir a origem das antigas escritas líbicas ao alfabeto púnico. [...]

É interessante notar a influência multissecular, mesmo depois da data fatídica de 146, da civilização cartaginesa nos berberes. G. H. Bousquet, analisando essa influência acentua que Cartago foi, para os berberes, durante séculos "o único farol de uma civilização superior" e indica alguns pontos em que provavelmente se fez sentir tal influência: língua, artes e religião." [...]

Denise Paulme, estudando as civilizações africanas, assinala as relações dos cartagineses com os garamantes, os predecessores imediatos e, numa medida difícil de determinar, antepassados dos tuaregues. Na época de Cartago, caravanas de garamantes transportavam através do deserto do Saara, para as cidades do litoral mediterrâneo, penas e ovos de avestruz. marfim e escravos recolhidos na África Central, ouro em pó do Sudão. Assim, durante séculos, o interior africano esteve em contato permanente com o litoral e sofreu, sem dúvida, o benfazejo influxo dos centros civilizados.

Concluamos com a curiosa observação de que o nome dado ao continente, África, é de origem púnica e era reservado, no Império Romano, para a província de Cartago. "Ainda hoje, os árabes chamam Ifrikia o país que chamamos Tunísia. Como explicar, sem uma influência profunda e durável sobre as regiões situadas ao sul do Saara, a sorte prodigiosa de um nome que se estendeu dos púnicos ao continente inteiro à medida que se avançava na descoberta do mesmo?"

GIORDANI, Mário Curtis. História da antiguidade oriental. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 242-244.

sábado, 4 de julho de 2015

A guerra na Antiguidade: ocupações, saques e preservação do conhecimento

A queda de Troia, Johann Georg Trautmann

"Como o desencadear de um terrível furacão, avassalei por inteiro o Elam, cortei a cabeça de Teuman, o seu Rei fanfarrão, que planejara o mal. Não tem conta os seus guerreiros que eu matei, e os que apanhei vivos com as minhas mãos [...] Hamanu, a cidade real do Elam, eu cerquei, eu capturei [...] eu a destruí, eu a devastei, eu a incendiei. Eu sou Assurbanípal, o grande rei, o poderoso rei, rei do universo, rei da Assíria, rei das quatro regiões do mundo, rei dos reis, príncipe inigualado, que ao comando de Assur [...] exerce o governo do mar superior ao inferior, e pôs submissos a seus pés todos os príncipes".
(Citado in: KRAMER, Samuel Noah. Mesopotâmia, o berço da civilização. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983)


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Tudo o que resta são prédios em ruína e um monte de destroços. A imagem é de destruição e sofrimento. A guerra é a mais primitiva forma de o ser humano resolver seus problemas com os outros. Talvez já existisse na Pré-História, mas foi com a formação das primeiras civilizações que a guerra se generalizou. Lutava-se pela posse de terras, cidades, riquezas, escravos...

O rei ou imperador era respeitado e temido pelas suas conquistas. Para eternizá-las, mandava escrever nos papiros, esculpir em pedra e pintar em seus palácios e túmulo suas vitórias militares e as punições que infligiu aos inimigos. Os reis assírios, por exemplo, que conquistaram a Mesopotâmia (século XII-VIII a.C.), orgulhavam-se do massacre que realizaram e de como destruíram campos de cultivo e canais. O Império Persa, mesmo tendo exercido uma dominação mais tolerante [...], também foi formado à custa da perda de milhares de vidas e da destruição de bens materiais. A ação guerreira desses governantes era muito admirada. O imperador Ciro passou à História como "o Grande", em lembrança de suas conquistas.

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Na Antiguidade, os poderes político e militar estavam reunidos na mesma pessoa: o rei. Era ele quem ia à frente do exército, estimulando seus guerreiros e desafiando a morte. Foi em combate aberto que o imperador persa Ciro morreu, juntamente com a maior parte de seus homens. Havia ocasiões em que os generais inimigos se enfrentavam sozinhos, e o resultado dessa luta definia a guerra.

O vitorioso dessas guerras tinha direito de se apoderar dos bens, da família e dos súditos do perdedor. A sua ideia de riqueza era a quantidade de produtos saqueados do inimigo. Seus soldados eram recompensados com os bens roubados da população conquistada. Ao retornarem ao seu país, faziam questão de desfilar pelas ruas exibindo os objetos e os prisioneiros de guerra. A cidade de Persépolis, por exemplo, foi saqueada pelo exército de Alexandre Magno (século IV a.C.) durante vários dias e depois incendiada. Um escritor grego afirmou que foram usadas 10 mil mulas e 5 mil camelos para transportar os seus tesouros.

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Apesar das guerras, ocupações e saques, os conhecimentos desenvolvidos pelos homens e mulheres não foram totalmente perdidos. Muitas vezes, por iniciativa do novo governante (mesmo estrangeiro) e pela persistência da população, as criações humanas foram preservadas. Desse modo, os textos mesopotâmicos, incluindo o código de Hamurábi, foram copiados e reunidos nas bibliotecas dos reis conquistadores; os estudos astronômicos continuaram a ser realizados, mesmo sob o domínio estrangeiro; a técnica dos artesãos, a habilidade comercial dos mercadores e o saber tradicional dos escribas não se dispersaram totalmente quando as cidades mudaram de senhores; a experiência agrícola dos camponeses, as técnicas de fiação e tecelagem foram transmitidas pelos pais ao seus filhos e filhas.

Assim, parte do conhecimento sobreviveu à destruição material e humana provocada pelas guerras. E isso graças à ação de homens e mulheres que, mesmo arruinados pelos saques, continuaram a transmitir o que sabiam aos seus descendentes. Se assim não fosse, ao fim de cada guerra, os perdedores teriam de descobrir, por sua própria experiência. o que seus antepassados levaram séculos ou milênios para aprender e desenvolver. Nos dias atuais, a população de países envolvidos em guerras também não se esquece de seus conhecimentos e práticas cotidianas. É comum, por exemplo, que professores ensinem crianças a ler e escrever dentro de campos de refugiados.

Hoje, quando visitamos as ruínas de capitais dos impérios antigos, ficamos maravilhados com a grandiosidade de seus palácios, a imponência de suas colunas e a riqueza de suas decorações. Imaginamos os imperadores vaidosos e orgulhosos de suas conquistas desfilando com seus exércitos e ordenando a decapitação dos inimigos. O que restou de suas vitórias e domínios são, agora, vestígios arqueológicos. No entanto, o conhecimento cultural, técnico e artístico dos povos conquistados preservou-se e propagou-se, e faz parte do nosso dia-a-dia. A roda, a metalurgia, o alfabeto, os cálculos matemáticos e geométricos, o pensamento religioso, os contos e mitos sobreviveram ao tempo e às guerras.

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RODRIGUE, Joelza Ester. História em documento: imagem e texto. São Paulo: FTD, 2002. p. 153-55.