Cavaleiros medievais, Codex Manesse, entre 1305-1315, Meister des Codex Manesse
Angústia da existência e aspiração
de uma vida melhor, todas as hesitações e todos os contrastes que marcam o
pensamento filosófico e a vida religiosa encontram-se nos séculos XIV e XV,
tanto na expressão da vida social como nas manifestações da arte. Abriu-se
debate entre o sensível e o racional, a espontaneidade e a rebusca, a
brutalidade e a afetividade. Nenhuma tendência das que se afirmam faz antever a
resposta a este debate.
Seria fácil compor, utilizando os
arquivos judiciários e os textos moralistas mal-humorados – neste tempo em que
florescia o gênero dos Sonhos e das Lamentações -, um quadro exageradamente
negro dos costumes da sociedade cristã. Era a época da peste e da guerra, ambas
endêmicas. Tratar-se-ia de uma sociedade “fora dos eixos”, que perdera todo o
pudor, fazendo gala de seus vícios e brutalidades, próxima em geral da demência,
passando sem transição do crime cínico à penitência piegas, glorificando-se por
vezes das suas ações torpes e respirando deliciada o odor dos túmulos? Muitos
traços desta pintura romântica, ora trágica, ora picaresca, provém de uma ilusão
de óptica. Efetivamente, devemos observar, de um lado, que os progressos dos
espírito laico assim como da classe burguesa haviam [...] desenvolvido o gosto
pela sátira social, pela maior liberdade de expressão e por um realismo menos
embaraçado com as convenções. De outro, como se acentuava o contraste entre os
costumes, sempre brutais, e o luxo crescente das classes elevadas, as contradições
morais ainda ressaltavam mais vivamente.
Na sua vida, em geral precária e
curta, os homens do século XIV não se embaraçavam com as próprias indignidades
nem respeitavam as alheias. A inauguração em Hamburgo, em 1375, do primeiro
manicômio será uma prova de agravamento das doenças mentais? De qualquer forma,
é inegável que nenhuma corte deixava de possuir os seus loucos e anões; não
havia festas populares onde eles não aparecessem: eram incluídos entre os
animais dos circos. Como todos os seus predecessores, há séculos, os reis e os
senhores não sabiam moderar suas violências; os súbitos ataques da raiva do
cavalheiresco João, o Bom ou do afável Eduardo III, os acessos de furor de
Filipe, o Bom, que se acalmava andando a cavalo, até o esgotamento, na floresta
de Soignes, das crises de “melancolia” do Temerário são comuns a todos aqueles
cuja vida ora guerreira, ora cheia de refinamentos não incitava a controlar as
paixões. Froissart, embora seja um admirador cego da classe dos cavaleiros,
confessa que “altos príncipes e altos senhores... seriam como que animais se não
existisse o clero”. A atração das ciências ocultas difundidas largamente pelos
próprios homens da Igreja, inclinados demais a denunciar um mal que viam em
toda parte, é um indício de que, nestes tempos perturbadores, se procuravam
aliados em todas as forças sobrenaturais ou infernais. Henrique de Transtâmara
nada empreendia sem consultar o seu necromante de Toledo; dizia-se que um espírito
familiar de Gaston-Phoebus, Conde de Foix, o avisava dos acontecimentos no próprio
instante em que estes se desenrolavam. Quando um homem tão equilibrado como Gérson
achava oportuno escrever um tratado destinado a afastar suas irmãs das
infelicidades do casamento, fazia-o tanto como eco da antiga maldição monástica,
reprovando o ato da carne, como para protestar contra as licenciosidades e
aberrações de que era testemunha. Destes excessos, os moralistas extraíam uma
condenação absoluta da vida secular, desde o romance satírico que acusa todos
os contemporâneos de passar o tempo “assoando Fauvel” – o asno vermelho símbolo
de todos os vícios – até às poesias de Eustache Deschamps, maldizendo aquele.
Temps plain d’orreur
qui tout fait faussement
Age menteur, plain d’orgueil
et d’envie.¹
Seu pessimismo tornava-se ainda
mais forte perante as paixões coletivas que assaltavam prontamente as multidões
urbanas. Estas ora choravam nos sermões, recebendo os sacramentos com fervor e
expulsando as mulheres de vida fácil por exortação de um pregador (tolerando-as
no entanto logo no dia seguinte), ora se revoltavam em “comoções” sangrentas, às
quais, aliás, se mesclavam curiosamente os seres celestes. Assim, por ocasião
das chacinas da guerra civil, em 1413 e 1418, os rebeldes parisienses colocaram
sobre as imagens dos seus santos um chapéu largo, dos usados na Borgonha. Entretanto,
as distrações populares assumiam freqüentemente foros de revoltante brutalidade,
como acontecia com os espetáculos, prolongados à vontade, das execuções
capitais, ou como certo torneio de cegos, realizado em Paris, em que estes se
chacinavam a pauladas. Em todas as cidades existiam malandrins que de noite
dominavam as ruas escuras. Em Paris havia o “reino dos maltrapilhos”, entre os
quais os “francos burgueses”, cujo nome procedia de sua recusa de participar
nos encargos comuns. A guerra provocou a subida à superfície, vindos dos covis,
destes bandos de ladrões, assaltantes e assassinos; os coquillards² do século XV chegam a injuriar o próprio emblema dos
peregrinos de Santiago.
Se as paixões são vivas e as
dificuldades de uma inquieta existência incitam os homens a fazer fortuna o
mais depressa possível – os coletores de impostos, cambistas e comerciantes de
todos os gêneros são os mais apressados e também os mais frequentemente
acusados de fraudes e concussões -, devemos esquecer o “burguês honesto” e o “pobre
trabalhador”, cuja existência só conhecemos quando, tendo-se afastado da boa
conduta, solicitam em termos chorosos as respectivas cartas de remissão. Existem
duas maneiras de julgar o tempo em que vivemos ou condená-lo sem apelo, como
fazem os moralistas e os satiristas, ou acomodar-se à situação com bonomia, sem
esconder as fraquezas, criando uma moral temperada que, rechaçando qualquer
exagero, concede o devido lugar ao prazer e ao interesse. Dentro da primeira
forma integram-se, na Inglaterra, a crítica social de um Langland, cuja Visão de Piers Plowman se inspira nas prédicas
populares; à segunda pertence a ironia sorridente de um Chaucer, nos seus Contos de Cantuária, obra de um homem de
gosto cosmopolita, respeitador das convenções sociais.
¹ Tempo cheio de horrores que faz tudo falsamente
Era mentirosa, cheia de orgulho e inveja.
² Bandos de mendigos cujo nome deriva de suas vestes cobertas de
conchas.
PERROY, Édouard. A Idade Média: o período da Europa feudal,
do Islã turco e da Ásia Mongólica (séculos XI-XIII). Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1994. p. 297-300. (História geral das civilizações, 7).