"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Mundurucus: os grandes guerreiros da Amazônia

Índios mundurucus, Hércules Florence

Os mundurucus, como seus antepassados por centenas de anos, se pintaram para a guerra. Esses índios de porte altivo, considerados outrora como os mais belicosos dentre os que habitavam a Amazônia e que muito trabalho deram para os brancos que os tentaram subjugar, têm orgulho de seu passado guerreiro. "Se eles insistirem na construção de hidrelétricas nas nossas terras, vamos atacar", garantiu Josias Manhuary, um de seus líderes, à repórter Aline Ribeiro, da revista Época. O guerreiro das margens do Tapajós, revoltado com os planos de aproveitamento do potencial hídrico do rio que dá ao seu povo o peixe diário e a possível inundação das terras em que estão enterrados os seus antepassados, afirmou: "Somos cortadores de cabeças!".

E é fato. A captura de cabeças humanas era o motivo que levava os mundurucus, que, provavelmente, já habitavam a região do Tapajós mil anos antes da chegada dos europeus, a organizar sua sociedade em função da guerra, "Ainda hoje eles têm essa tradição de povos guerreiros, apesar dos constrangimentos da colonização, da catequese e da relação com o Estado", explica o antropólogo [...] Florêncio Almeida Vaz. Como ativista indígena da etnia maitapu e frade franciscano, frei Florêncio, como é mais conhecido, estuda o encontro dos povos indígenas no baixo e médio Tapajós com os colonos portugueses e como se deu o acordo que selou a paz entre índios e lusos no final do século XVII, mudando a história da região.

Uma rica fonte documental sobre os mundurucus foi deixada por cronistas e viajantes do século XIX, como os naturalistas alemães Spix e Von Martius, que visitaram a região do Tapajós entre 1817 e 1820. Em seus relatos, eles descrevem que os "mundurucus, mundrucus ou muturicus, antes do ano de 1720, mal eram conhecidos no Brasil pelo nome; mas, daí em diante, irromperam em numerosas hordas, ao longo do rio Tapajós, destruíram as colônias e tornaram-se tão temíveis que foi necessário mandar contra eles tropas, às quais se opuseram com grande audácia."


Guerreiro mundurucu com cabeça como troféu, Johann Spix and Carl Martius

Chamados pelos indígenas de tribos rivais de paiquicé, ou corta-cabeças, o povo mundurucu atribuía grande significado ritual às cabeças capturadas e cuidadosamente preservadas por um meticuloso processo de mumificação. Todos os inimigos homens adultos de uma tribo atacada eram mortos e suas cabeças, mantidas como troféus de grande valia. Os guerreiros acreditavam que, com isso, adquiriam poderes mágicos que garantiam a fartura e a sobrevivência de seu povo.

A cosmologia desse povo - pertencente ao tronco linguístico tupi -, responsável por sua atitude belicosa, levou à perseguição e ao extermínio de povos como os jumas e os jacarés, tendo influenciado também no deslocamento dos parintintins e dos kawahivas em direção aos rios Juruena e Teles Pires. Os mundurucus perseguiram ainda os muras e lutaram contra os maués, araras e apiacás. "A guerra fazia parte do cotidiano. Eles tiveram de adaptar esse valor para outras formas rituais, como o xamanismo e outras crenças que continuam associadas à guerra", diz frei Florêncio.

O primeiro relato que se tem acerca da existência do povo mundurucu remonta a 1542 e é do cronista e padre espanhol Gaspar de Carvajal, que integrou a expedição de Gonçalo Pizarro (irmão de Francisco Pizarro), de Quito à foz do rio Amazonas, passando pelo baixo Tapajós. "Ele já fala da característica de pintar o rosto de preto", conta frei Florêncio. "Guerrear, para esse povo, era afirmar-se como gente. Além de lutar contra outros povos indígenas, o inimigo passou a ser também os portugueses", diz Almeida Vaz.


Criança e mulher mundurucu, Auguste François Biard

Por volta de 1770, os mundurucus fizeram uma série de ataques aos povoados localizados à beira do Tapajós, ponto de exploração de colonos luso-brasileiros e aldeias missionárias que haviam sido estabelecidas pelos jesuítas. Em 1773, foram responsáveis pelo assalto à fortaleza do Tapajós, em Santarém.

"As incursões pela floresta em busca das cabeças-troféu eram longas. Há registros de que estes índios tenham chegado até o Xingu", destaca o historiador e indigenista André Ramos. [...] Ramos viveu uma década na aldeia Waro Apompo, no rio Cururu, um dos afluentes do Tapajós, na parte alta. "A guerra tem uma função de renovação de vida, as cabeças tinham um papel importante nessa organização", explica o pesquisador.

O padre português Manuel Aires de Casal, em 1819, chamava a área ocupada por esse povo de Mundurucânia, um território que comprrendia os rios Jurena, Amazonas, Madeira e Tapajós. Em razão da ocupação portuguesa dos brancos, os mundurucus acabaram se refugiando no alto Tapajós, onde permanecem até os dias atuais.

Os jesuítas cumpriram importante papel na ocupação do Tapajós. Para expandir a catequese, instalaram-se em aldeias como a de São José ou Maitapus, em 1772; a de Santo Inácio ou Tupinambaranas, em 1737; e, em 1738, as de Borani e Arapiuns, que se destacaram pelo desenvolvimento, todas localizadas no baixo e médio Tapajós.


Mundurucus, Auguste François Biard

Vendo o avanço do inimigo, os mundurucus passaram a atacar sem descanso os assentamentos dos colonos a partir da última década do século XVIII. Na tentativa de conter a ameaça indígena, o poder colonial enviou, em 1794, uma força com cerca de 500 soldados com a missão de atacar os mundurucus até em suas aldeias do alto Tapajós, no atual rio das Tropas.

Nesse momento, acontece a reviravolta. Índios e colonos passam a conviver em paz, no processo que ficou conhecido como a "pacificação dos mundurucus". Não existem ainda versões conclusivas sobre como isso se deu. André Ramos acredita que o contra-ataque perpetrado por tropas portuguesas no alto Tapajós tenha sido decisivo. "Os portugueses sobem o Tapajós, adentram o Jurupari e vencem a batalha. A partir de então, se estabelece uma relação apaziguada", diz.

Frei Florêncio defende a tese de que os próprios indígenas tomaram a iniciativa de estabelecer relações pacíficas com os colonos da região. Uma visita à Vila de Pinhel, em 1795, para encontrar-se com o tuxáua (chefe), quando foram acompanhados até a fortaleza de Santarém, teria selado um pacto de paz.

Em 1795, o governador Manuel da Gama lobo d'Almada adotou a estratégia de pôr fim às hostilidades. Uma vez que o poder colonial não contava com um contingente de homens suficientes para confrontar os termos indígenas, o mandatário enviou um grupo de soldados que capturou dois índios mundurucus, que ficaram por quatro meses na fortaleza da Barra do Rio Negro, na atual cidade de Manaus.

Cerca de 140 índios mudurucus se reúnem em Brasília com o ministro da Secretaria Geral da República, Gilberto Carvalho e representantes de outros órgãos do governo para discutir a suspensão de empreendimentos energéticos na Amazônia e outras reivindicações indígenas, em 4 de junho de 2013. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Ali, os índios teriam sido bem tratados e receberam inúmeros presentes. Reconhecendo a boa vontade dos raptores, os dois índios teriam se comprometido a retornar e avisar aos outros que os brancos não eram seus inimigos. A partir de então, os conflitos teriam cessado e os mundurucus tornaram-se aliados dos brancos, passando até mesmo a operar como força militar para "pacificar" outros grupos indígenas. "A primeira vila onde os mundurucus se voltaram para a vida colonial foi Pinhel, comunidade de onde venho. Eles estavam ficando enfraquecidos, era uma estratégia. Mas grupos isolados continuaram guerreando no alto Tapajós", comenta frei Florêncio.

Após selada a paz, os mundurucus começam a manter um estilo de vida sedentário nas vilas. "Eles passaram pelo processo de caboclização, que fez com que praticamente desaparecessem como etnia. Foram se tornando cada vez mais ligados e defendendo os interesses dos portugueses. Lutaram, inclusive, ao lado dos portugueses contra os cabanos (entre 1835 e 1840)", ressalta o antropólogo.

Os mundurucus são uma etnia que conseguiu preservar de alguma maneira a sua cultura, até mesmo pela dificuldade de acesso e pela própria belicosidade. Ramos diz que, para além da versão oficial construída pelas missões evangelizadoras ou pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), primeiro órgão indigenista brasileiro, fundado em 1910 sob uma ótica positivista, uma história indígena ainda está por se fazer. "O que predomina é a visão de que os mundurucus teriam sido atraídos para as margens dos rios pelas mercadorias dos brancos e benesses que chegariam com o contato. A versão dos mundurucus não é essa", argumentou. Frei Florêncio também segue nessa linha, ao salientar uma mudança de perspectiva. "Os indígenas deixam de ser vítimas que foram quase exterminadas. Hoje, eles se veem como povos florescendo", destacou.

Fabíola Ortiz. Os grandes guerreiros da Amazônia. In: Revista História Viva. Ano XI / Nº 127 / p. 40-43.

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