"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Século XX: retrospecto

O século XX foi dividido em duas partes, com diferenças extraordinárias entre elas. Começou com um otimismo incomum, diminuindo logo nas primeiras décadas. Aconteceram duas guerras mundiais e uma depressão econômica de magnitude sem igual. Nos países prósperos, o padrão de vida quase não aumentou ao longo de cinqüenta anos. Nos países pobres, poucos sinais de melhora se fizeram notar.


Banhistas de South Beach, John French Sloan

A corajosa ideia da Liga das Nações, que deveria prevenir guerras internacionais, falhou. A democracia, que, entre 1900 e meados da década de 1920, havia se espalhado amplamente entre os povos europeus, não obteve o sucesso esperado. Ao contrário, possibilitou que Mussolini, Hitler e outros ditadores dessem seus primeiros passos rumo ao poder: eles praticamente receberam carta branca dos parlamentos eleitos. As mais importantes democracias, cujos cidadãos pouco se importavam com assuntos externos, falharam ao permitir que a Alemanha hitlerista se rearmasse. Em 1940, a França se tornou a primeira grande democracia a cair diante de um inimigo – um colapso inesperado.

Ainda havia razões para otimismo na primeira metade do século. A experiência comunista, profundamente encobertas pela censura russa, era vista por centenas de milhões de estrangeiros como emocionante ou assustadora. A União Soviética mostrou grande resistência na Segunda Guerra Mundial, sofrendo as mais pesadas perdas entre todas as nações e desempenhando um papel vital ao expulsar o exército alemão de volta para Berlim. Outro surto de otimismo foi provocado por diversas invenções: o avião, o carro fabricado em larga escala, o rádio, o cinema, a televisão e a geladeira. Esses foram os alicerces da sociedade de consumo que viria a florescer na segunda metade do século.

Algumas instituições avançaram, enquanto outras – incluindo a monarquia – retrocederam. A democracia foi muito mais bem-sucedida na segunda do que na primeira metade do século, já que não enfrentou tantas provações como acontecera nas décadas de 1920 e 1930. Em 1901, a democracia ainda era rara; somente poucas nações davam a todos os homens o direito de votar e nenhuma permitia que as mulheres votassem ou concorressem ao parlamento. Mesmo em 2001, a verdadeira democracia continuava a ser um corajoso experimento, apesar da história da antiga Atenas. Tal modo de governo requer um grande acúmulo de experiência, tanto por parte de políticos quanto de eleitores.

O individualismo político e econômico, bem como o prestígio das democracias capitalistas recuaram muito durante a primeira metade do século, para mais tarde reaparecerem fortalecidos. O comunismo, por sua vez, encontrou o precipício. O movimento ecológico, pouco visível em 1950, tornou-se tremendamente influente meio século mais tarde. A noção de que o mundo diminuía e de que os povos de todos os continentes respiravam o mesmo ar se difundia. As comunicações cruzaram o globo como raios. Pela primeira vez na história, a maioria das pessoas, em vários países, vivia em cidades, e não na zona rural, trabalhando em outras atividades que não aquelas relacionadas ao campo ou às fábricas.

A Europa começou o século dominando e acabou em segundo lugar. Os vastos impérios ultramarinos cujos governos estavam na Europa Ocidental foram extintos ou continuaram apenas em poucas ilhas distantes, mantidas como curiosidades ou ornamentos. Do desaparecimento desses impérios emergiram várias nações independentes, sobretudo na África e na Ásia, mas muitas delas não sabiam o que fazer com sua independência. No início do século, os Estados Unidos saíram cautelosamente de seu prolongado isolamento; no fim, prevaleciam como a única superpotência. A Ásia exercia pouca influência nos primeiros anos, mas, a partir da metade do século, sua crescente importância se fez notar em diversos grandes eventos – desde o bombardeio nuclear no Japão até a independência da Índia e a vitória do comunismo na China. Foi na Ásia Meridional que, pela primeira vez, mulheres foram eleitas para o cargo de primeiro-ministro.

A China e a Índia, dois gigantes em matéria de população, eram vistas cada vez mais como líderes mundiais em potencial, mas os tortuosos acontecimentos do século anterior ainda não haviam esclarecido uma questão crucial: uma grande população e um vasto território bastariam para que um país conseguisse exercer domínio global? A Grã-Bretanha havia sido um enorme império; por outro lado, a Alemanha e o Japão, com apenas uma fração da população do planeta, haviam derrotado ou desafiado os exércitos de alianças entre nações durante vários anos; e Israel, mesmo cercado, manteve todo o Oriente Médio em clima de apreensão.

Na segunda metade do século, foi realizada a exploração do espaço sideral, a aventura mais destemida desde que Cristóvão Colombo e Vasco da Gama atravessaram os oceanos cerca de quinhentos anos atrás. Nunca houvera semelhantes avanços na medicina. As pessoas viviam por mais tempo, com menos sofrimento e mais acesso a bens materiais. Saber ler e escrever era uma exceção em 1901; em 2001, a regra. Embora o planeta enfrentasse muitas carências, elas eram bem menores em relação ao início do século. As questões da superpopulação e da poluição passaram a ser encaradas e a identificação desses problemas sinalizava o surgimento de uma consciência inexistente em 1901.

A disposição predominante era permeada pela guerra e pelo medo da guerra. Na primeira metade do século, diversas vezes as nações tomaram a importante decisão de ir à guerra. Na segunda metade, tomaram a decisão – igualmente importante – de não ir.

Após o fim da Guerra da Coréia, em 1953, não houve outro conflito geral que envolvesse a maior parte das grandes potências. Embora disputas entre nações fossem travadas em quase todos os lugares depois de 1950 – havia mais nações do que nunca -, nenhum desses conflitos se assemelhou a uma guerra mundial. A primeira metade do século testemunhou duas grandes e destrutivas guerras. A segunda metade evitou-as, milagrosamente.

Especula-se que a invenção das mortíferas armas de 1945 e o temor de uma terrível vingança, caso fossem usadas, tenham sido os principais motivos da longa paz entre as grandes potências nucleares, mas não se pode ter certeza. A grande questão do século XXI é justamente saber se a paz atômica irá persistir e, comparados a tal questão, todos os outros problemas perdem a importância.

Em 3 de agosto de 1914, na eclosão da Primeira Guerra Mundial, o ministro das Relações Exteriores da Grã-Bretanha, sir Edward Grey, observou solenemente: “As luzes se apagam por toda a Europa, não devemos tornar a vê-las acesas enquanto vivermos.” Mas, com o passar do tempo, as luzes voltaram a brilhar na Europa e em todo o mundo, mais poderosas do que nunca – ao mesmo tempo um prodígio e um perigo.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 304-307.

NOTA: O texto "Século XX: retrospecto" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Mulher e exclusão no Brasil do século XIX

A imagem da mulher presente nas obras dos viajantes que visitaram o Brasil na primeira metade do século XIX era de uma mulher quase criança, vivendo seus primeiros anos sob a tutela de um pai despótico e, mais tarde, sob o controle estrito do marido, ao qual, de acordo com o costume, a lei e a religião, ela devia total obediência; uma criatura sexualmente inibida, mas que poderia de repente romper as barreiras que a cercavam e se entregar ao desvario de uma paixão, e por isso era estreitamente vigiada; uma mulher com pouca ou nenhuma educação e iniciativa, que aspirava apenas ao casamento e à maternidade [...].


Cena de família de Adolfo Augusto Pinto, José Ferraz de Almeida Junior

As referências ao isolamento em que viviam as mulheres da classe alta e média na primeira metade do século XIX, quando elas eram mantidas quase segregadas, longe dos olhos dos estranhos, sendo vistas apenas de esguelha quando iam à igreja, cederam lugar ao longo do século a imagens de maior sociabilidade. Mulheres passaram a ser vistas frequentando bailes, teatros e confeitarias, visitando amigos e até mesmo servindo-se do bonde para ir às compras ou à praia. Mas o retrato da mulher dependente [...] persistia [...].


Negro e negra numa fazenda, Rugendas

Durante muito tempo, esses dois retratos - o da mulher dependente e o do poder patriarcal com seu inegável viés classista - ocultaram dos historiadores não só a complexidade e variedade da experiência feminina como também as mudanças que estavam tendo lugar na vida das mulheres no decorrer do século XIX. Tais generalizações baseavam-se na experiência das classes média e alta. Ninguém parecia perguntar se essa forma de representação era válida para outros grupos sociais. Durante muito tempo, ninguém parecia prestar muita atenção às discrepâncias entre o comportamento real das mulheres e as prescrições das leis, da Igreja e dos moralistas. Sistematicamente ignorados ou minimizados foram os casos de separação e até mesmo divórcio autorizados pela Igreja em certas circunstâncias. [...] Esquecidas foram também as que simplesmente se negaram a casar, preferindo permanecer solteiras. Ignoradas também foram aquelas que se rebelaram contra os pais, insistindo em obter uma educação superior e até mesmo uma profissão. Até a segunda metade do século XX, a história pouco valorizou as mulheres que, um século antes, criaram sociedades abolicionistas e literárias, escreveram livros e artigos criticando o sistema patriarcal, publicaram revistas em favor da emancipação da mulher, apoiaram o movimento republicano, associaram-se aos primeiros grupos socialistas e anarquistas e exigiram o direito à educação e ao voto. Na penumbra também permaneceram as mulheres que, à testa de negócios e de fazendas, conseguiram sustentar suas famílias depois da morte dos maridos, assim como as mulheres das camadas subalternas, escravas ou livres.


Largo da Carioca (com o Chafariz da Carioca, na frente e o Convento de Santo Antônio, no fundo). 
Eduard Hildebrandt

Se bem que a imagem do patriarcalismo persistisse, ela estava se tornando cada vez menos adequada para representar a experiência das mulheres das classes média e alta, nas últimas décadas do século XIX, pelo menos em algumas regiões do país. Note-se que essa imagem nunca corresponderia à experiência de mulheres das classes subalternas. [...] Dificilmente se enquadrariam nesse retrato patriarcal as escravas, mulheres que trabalhavam como empregadas e amas de leite na casa dos ricos, as trabalhadoras da indústria, as prostitutas e vendeiras nas ruas das cidades, assim como as que, na zona rural, trabalhava, de sol a sol ao lado dos homens.

COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Unesp, 2007. p. 493-498.

NOTA: O texto "Mulher e exclusão no Brasil do século XIX" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 29 de dezembro de 2013

A cidade de Chichén Itzá

El Castillo
Foto: Bernard Gagnon

A primeira impressão e a última lembrança de quem conhece Chichén Itzá costumam coincidir e se resumem numa palavra: monumentalidade. De fato, mesmo imponentes cidades do período maia clássico (300 a 900 d.C.), como Tikal, Copan, Palenque e Uxmal, perdem o viço em uma eventual comparação.

O mais notável não é o tamanho dos edifícios, mas o dos espaços que os separam. Turistas chegam a ficar perdidos na grande praça, no imenso campo de jogo de bola ou na ampla via que leva ao cenote sagrado, o poço natural no qual era atirado o corpo das vítimas de sacrifícios humanos e que atraía peregrinos maias de toda parte.

Espaços livres e edificados são testemunhos da preocupação dos homens que construíram Chichén Itzá, 1.100 anos atrás, de propiciar a reunião e a circulação de multidões, incluindo os visitantes.

Também a escultura se diferencia. Em vez da exaltação de reis e dinastias, as obras de Chichén Itzá focalizam cenas de grupos, de desfiles e de procissões. Distinguem-se nelas personagens que ocupam posições diferentes na hierarquia social. Há reis, sacerdotes, guerreiros de elite e de linhagem inferior, assim como vítimas de sacrifícios.

A construção do templo dos Guerreiros tem duas partes: uma vasta sala, precedida de três fileiras de colunas, e uma pirâmide. À direita da escadaria de acesso, encontram-se uma banqueta e uma pedra de sacrifício de 40 cm de altura. Todos os pilares de sustentação do teto mostram, nas quatro faces, esculturas de um personagem em pé. Na sua imensa maioria, são guerreiros, mas há também cativos de mãos amarradas, membros da alta hierarquia, sacerdotes e personagens mascarados, imitando animais.

Templo dos Guerreiros (detalhe), mostrando Chac Mool. 
Foto: Bjørn Christian Torrissen

Esse conjunto arquitetônico reúne os dois momentos do sacrifício: a execução, na sala principal, e a oferenda, no templo. A prevalência de guerreiros denota a importância deles no ritual. Os homens armados são os que capturam e oferecem o sacrifício. Eles são assistentes qualificados dos sacerdotes. O ritual é ostensivo. As cenas de sacrifício humano encontram-se representadas em toda a parte na cidade.

Chichén Itzá se destaca das demais cidades maias da época pelo abandono de práticas vigentes durante séculos, como a de erguer monólitos periodicamente, e também pela adoção de traços culturais exógenos, manifestados, sobretudo, na arquitetura.

As ruínas de Chichén Itzá revelam mais. Uma organização política e social totalmente inovadora aparece, com o enfraquecimento do poder real, em proveito de uma elite de guerreiros e sacerdotes. Essa mudança profunda ainda não está bem explicada. Depende de mais estudos da história dos maias entre os séculos IX e X.

Ao fim do século IX, Chichén Itzá foi uma cidade de perfil cosmopolita. Por mais de dois séculos, a única importante do Yucatán. Essa hegemonia não dependeu de autoridade e força do governo. Ao contrário, abertura e partilha com habitantes de cidades vizinhas foram marcas da cidade.

Nas províncias, os chefes locais eram convidados por Chichén a participar de festas, cerimônias diversas e atividades religiosas da cidade. Essa comunhão no ritual parece ter assegurado a estabilidade política local, ainda que houvesse guerras, até mesmo para capturar futuras vítimas de sacrifícios. O papel federativo da cidade foi ainda favorecido pelo cenote sagrado, visitado por milhares de peregrinos que lançavam aí suas oferendas.

A famosa descida da serpente - Kukulkan - do templo em todo seu esplendor durante o equinócio de março. 

O povo maia tem um histórico de abandono de suas cidades-Estado. Ao longo do século IX, as das Baixas Terras centrais foram esvaziadas, depois de viverem o apogeu do período clássico, iniciado em 300 d.C. nelas, o rei maia governava de maneira absoluta. Ele era assunto quase exclusivo dos textos dos hieróglifos e da arte monumental.

No século seguinte, foi a vez das cidades do Yucatán, com exceção de Chichén Itzá, que, na virada do milênio, permaneceu influente na região. Acabou também abandonada em meados do século XIII.

Até a conquista espanhola, contudo, Chichén Itzá, mesmo sem a agitação e o poder de outrora, continuou a ser visitada por peregrinos, graças a seu cenote sagrado.

BAUDEZ, Claude-François. Chichén Itzá, a Meca do povo maia. In: Revista História Viva, nº 63, jan. 2009.

NOTA: O texto "A cidade de Chichén Itzá" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Novo mundo, novos termos

1492 mudou o mundo. Diferentes interpretações e conceitos tentam explicar as origens e os motivos dessa mudança. Mas cada um deles corresponde a diferentes posições ideológicas e pontos de vista dos estudiosos que se debruçam sobre a questão. O que parecia claro a todos é que tamanha transformação não podia ser atribuída apenas ao avanço da técnica ou ser mero reflexo da expansão comercial e marítima e da conquista de mercados, próprias da revolução comercial que se instalou na Europa no final da Idade Média.


Assim, após a constatação da existência de um mundo novo, repleto de surpresas, diferenças e similitudes, era preciso entender historicamente aquele fato. Como classificar esse acontecimento que abalou as formas de pensar do homem quinhentista?

Os conceitos de "descobrimento" e "achamento" têm o mesmo significado e se referem a algo previamente conhecido. Assim, o descobrimento do Novo Mundo, em 1492, não consistiu num fato absolutamente novo, pois já se sabia que havia terras ao ocidente da Europa e que em qualquer momento poderiam ser encontradas. Esse conceito difere de "descoberta", que significa descobrir algo desconhecido anteriormente, que não se conhecia ou se imaginava conhecer.

De fato, informações sobre ilhas ou regiões situadas no oceano ocidental eram de conhecimento dos homens da Idade Média, por meio de mitos e relatos dos povos antigos, como o de Estrabão (64 a.C.), de Plínio, o Velho (23 d.C.) e de Platão (428 a.C.), além da mítica Atlântida, retomada pelo Pseudo-Aristóteles (Livro das Maravilhas) e por Diodoro da Sicília (século I). Arqueólogos e outros pesquisadores procuram evidências da presença na América de cartagineses, fenícios e gregos, entre outros povos. Expedições marítimas relatavam a existência de terras a oeste da Europa, mas foi a expedição de 1492 que confirmou a existência de um Novo Mundo.

Para alguns historiadores, considerar o encontro como um fenômeno de conquista e dominação é subestimar a cultura do "outro". No entanto, considerar um encontro de civilizações também suscita dúvidas, já que o "outro" foi pego de surpresa, vítima da complexidade tecnológica trazida pelos europeus e dos deuses que o abandonaram diante do estrangeiro branco e barbudo, vítima também das discórdias e fragmentações internas, dos ódios e disputas de seus pares.

Por outro lado, considerar o acaso e aceitar que as terras foram achadas é uma forma de pensar mecanicista e simplista. Isso porque houve muito empenho em encontrar riquezas, mapas foram traçados, astrolábios, bússolas e toda a cartografia foram utilizados para descobrir riquezas e engrandecer os países europeus, a Espanha e Portugal.

O conceito de "encontro" é encobridor porque se estabelece ocultando a dominação do mundo europeu sobre o mundo do índio americano. Também não pode ser um encontro de duas culturas, em que o mundo do outro é subjugado e excluído, onde predomina o etnocentrismo, a superioridade da cristandade sobre as religiões indígenas e total desprezo pelos ritos, deuses, mitos e crenças dos nativos.


O massacre de Cholula, Félix Parra

No México, desde 1984, historiadores debatem o conceito de encontro e apresentaram o conceito de "encobrimento", por um lado, e a necessidade de desagravo ao índio, por outro. Durante a comemoração do V Centenário do Encontro de Dois Mundos, em 1992, o historiador Miguel Leon Portilla lançou o conceito "Encontro de Duas Culturas", e Felipe Gonzalez, durante as festividades dos 500 anos da América, falou em festejar o descobrimento como um encontro. Era mais uma posição política, em função da integração europeia e da abertura da Espanha à América Latina.

Já o conceito "invenção" foi proposto por Edmundo O' Gorman, que considerou que Cristóvão Colombo estava convencido de ter chegado à Ásia e constatado naquelas terras algo conhecido anteriormente, mas ainda não explorado. Por isso, chamou os habitantes de "seres asiáticos". Colombo morreu desconhecendo que havia encontrado um novo continente. Para o autor, "invenção" indicava que a América não foi descoberta ou achada, mas inventada à imagem e semelhança da Europa. Também o reconhecimento dos habitantes como seres asiáticos é uma invenção que só existiu na imaginação dos grandes navegantes e contribuiu para o desaparecimento do outro. O "índio" americano apenas deu vida a este ser inventado.

O conceito de conquista é adotado como prática de dominação. Trata-se de uma concepção jurídico-militar. O conquistador é o primeiro homem moderno ativo, prático, que impõe sua individualidade violenta a outras pessoas, ao outro.

Assim, as ideias de descobrimento, achamento, invenção e conquista dominam a historiografia sobre as formas como o Velho e o Novo Mundo se complementaram no sistema planeta-mundo.

Maria Teresa Toribio Brittes Lemos. Novo mundo, novos termos. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7, nº 84, setembro 2012. p. 36-37.

NOTA: O texto "Novo mundo, novos termos" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Maçonaria e descolonização

1. Maçonaria: História e Ideologia. As origens primeiras da maçonaria são remotas e um tanto obscuras, havendo notícias de caráter lendário que as situam no antigo Egito, e algumas notícias históricas que marcam sua presença na Europa da Baixa Idade Média. De uma maneira geral, congregava artesãos, principalmente ligados à construção ("masson" = pedreiro), que se uniam para defesa de seus interesses; ao longo do tempo, porém, passou a desenvolver ritos e símbolos secretos, esotéricos, só acessíveis aos iniciados, diferenciando seus membros do restante da população.

No entanto, sua presença mais evidente na Europa se daria a partir do século XVII, e sua irradiação "se insere num dado contexto social, mental e político, que se diria preparando para acolher a 'boa-nova' dos pedreiros-livres".

Durante o seu desenrolar a seita espalhou-se por toda a Europa, seguindo as rotas comerciais e fixando-se, primeiramente, nos portos e nas grandes cidades. Em pouco tempo, Londres, Roma, Paris, Berlim, Haia, Lisboa foram ligadas pela confraria laica dos irmãos, cujos propósitos se conformavam na contração da "cidade nova", figurada segundo o ideário burguês da Ilustração.


Iniciação de um candidato. 
Gravura do final do século XVIII

Impulsionada pelas tensões e questionamentos do Antigo Regime no século XVIII, a maçonaria logo se definiu como uma sociedade de caráter eminentemente político e prático. Enquanto os intelectuais da Ilustração mantiveram-se num debate ao nível das ideias, os maçons incorporaram seus valores e difundiram-nos através de uma organização que visava a transformação da sociedade. Das ideias à prática, entretanto, não deixou de assumir aspectos contraditórios, como notou, excelentemente, Paul Hazard: "Paradoxo: indivíduos que voltam as costas à Igreja frequentam uma capelinha escura. Indivíduos que não querem mais ritos ou símbolos recorrem aos símbolos e aos ritos: a iniciação, as colunas, a tela pintada que representava o templo de Salomão, a estrela flamejante, o esquadro, o compasso, o fio de prumo. Indivíduos que não querem mais mistérios, mais véus, que chegam a pedir que as negociações entre os Estados sejam feitas à vista de todos, comprometem-se ao segredo absoluto [...]. Racionalistas, vão procurar em épocas recuadíssimas os elementos de um misticismo que posteriormente, e nalguns deles, substituirá a razão. Anti-sectários, fundam uma seita. Todavia, para além das aparências, aquilo que neles se topa é o espírito do século." 

A maçonaria definiu-se pelo propósito de construir uma nova sociedade, mediante "a guerra sem quartel aos tiranos, aos déspotas e aos privilégios; pelo deísmo - e por esse culto 'iluminado' ao grande arquiteto do universo, a que Voltaire, entre outros, havia chegado já, muito antes de ter sido recebido, em apoteose, no grau de aprendiz, na loja parisiense das Nove Irmãs (1778). Identificando-se também com os princípios liberais, a seita encontrou um terreno fértil para sua expansão junto à burguesia em ascensão. De tal forma que "a maçonaria é adotada e aceita por todos os que não querem passar por reacionários em fins do século XVIII e princípios do XIX".

2. A Maçonaria em Portugal. O estabelecimento da primeira loja maçônica em Portugal deu-se entre os anos 1735 a 1743, pela ação de um suíço e um francês, Jean Custon e Jacques Mouton, que acabaram sendo sentenciados em 1744 pela Inquisição. Foi somente no governo de D. José I que se abrandou a repressão antimaçônica e pôde expandir-se ela para fora de Lisboa, em cidades como Funchal e Coimbra. No governo de D. Maria I, retornou a perseguição sistemática aos pedreiros-livres, quando as notícias da revolução francesa faziam tremer os monarcas absolutistas. Entretanto, por esse momento, sua penetração já se deva entre indivíduos das camadas mais abastadas e intelectuais, das quais não se excluía parte do clero. No decurso das invasões francesas (1807-1810), criaram-se as condições para a proliferação das lojas maçônicas na metrópole. Apesar de voltarem a sofrer novas perseguições e proibições em 1810 e 1818, homens importantes da política portuguesa já haviam sido ganhos pelos seus ideais, dentro de sua prática de não apenas transformar seus membros em revolucionários, mas também de atrair pessoas que detivessem parcelas do poder, ou, então, deixar-se utilizar por aqueles que viam nela a possibilidade de realização de seus propósitos.

Posteriormente, nas lutas liberais e, num outro estágio, republicanas, a maçonaria teve um papel vital pela sua contribuição ideológica e na formação de uma atmosfera intelectual propícia que tornou possível a instauração do liberalismo em Portugal.

3. A Maçonaria na América Colonial. Apesar da fraternidade universal apregoada pela maçonaria, ela sempre mostrou uma impressionante facilidade em nacionalizar-se, quer dizer, em adaptar sua ação às condições específicas regionais. Sua eficiência em boa parte se deveu a essa capacidade mimética ideológica e prática, como assinalou Joel Serrão: "As ideias aspirações dos pedreiros-livres concretizaram em obras - na efetiva construção política da cidade nova, talhada não só pelo figurino iluminista burguês, mas também de acordo com as raízes da histórica local em que se inserem [...] Ora, no momento em que procedem a tal inserção, os pedreiros-livres caem sob a alçada da história."

Também na América colonial a maçonaria soube dar um corpo próprio, ideológico e organizacional à luta dos colonos. Nessa região tornou-se ela eminentemente libertadora, embora com isso continuassem combatendo indiretamente o absolutismo das nações europeias. "O papel da maçonaria - sintetiza Caio Prado Jr. - foi articular uma situação própria e interna de uma colônia europeia à política geral da Europa. A Maçonaria só se interessa pela colônia na medida em que contribui para atingir um dos redutos do absolutismo europeu, contra quem, de uma forma geral, ela se dirigia. Tratava-se, no caso, da monarquia portuguesa. Coisa semelhante se passa, aliás, com as demais colônias americanas. Daí o interesse da maçonaria em apoderar-se e manejar uma situação que se desenhava nas colônias da América e que, de uma forma ou de outra, poderia servir aos seus propósitos."

Junto com as obras e com as ideias da Ilustração a maçonaria penetrou e expandiu-se por toda a América, e a ela filiaram-se libertadores, como Benjamim Franklin, Jefferson, O'Higgins, San Martín e Miranda. A Inglaterra esteve particularmente empenhada na difusão dessa sociedade nas colônias espanholas. Esse interesse não deixava de ligar-se ao de sua expansão comercial na região: "Não podemos nos esquecer que os interesses comerciais dos mercadores e fabricantes das cidades de Liverpool e Birmingham se achavam quase nas mãos da maçonaria inglesa. Aliás, a Inglaterra havia colocado representantes em quase todos os portos da América, mais ou menos encobertos, que constituíam verdadeiros agentes, ligados ao contrabando, introdução de negros e operações em diversos ramos." Isso era visível no porto de Cádiz: "Em tal cidade os ingleses haviam instalado a direção de suas relações mercantis com a América, na base de um regulado contrabando de permissões [...]. As lojas dividem-se e têm seus focos principais nos portos; entre os mercadores e marinheiros expande-se facilmente a maçonaria." Se em Portugal e no Brasil predominou a maçonaria francesa, na Espanha e suas colônias predominou a penetração das sociedades de origem inglesa, o que nos permite adiantar e ver a maçonaria também como um dos instrumentos utilizados pelas grandes nações competidoras (França e Inglaterra) para a disputa comercial, para furar os esquemas de alianças que se estabeleciam (como as existentes entre França e Espanha, e Inglaterra e Portugal) e para solapar as bases coloniais das nações rivais. Neste sentido, participou das lutas de independência da América espanhola: "Os grandes chefes maçônicos latino-americanos terão na Inglaterra e nas lojas inglesas a sua iniciação, bem como o apoio externo de que necessitam para a realização de seus fins. Apoio que não se processa de forma radical, pela posição da política inglesa, principalmente na fase de luta contra Napoleão, mas que se torna efetivo pelo fato de funcionarem livremente na Inglaterra, organizações ocupadas em fins libertadores."

4. A Maçonaria no Brasil. Em Portugal e no Brasil coube à maçonaria francesa a sua difusão, já que nessas regiões os interesses ingleses estavam assegurados, não encontrando quase obstáculos à sua penetração comercial, o que não quer dizer que não tenham surgido lojas maçônicas de influência inglesa. Alguns núcleos de orientação inglesa se implantaram no Brasil, porém, mostraram-se muito mais conservadores que os de orientação francesa, principalmente quanto às proposições de independência. As ligações políticas entre Grã-Bretanha e Portugal mantinham aquela afastada de uma intervenção direta na luta de independência, como fizera na América espanhola.

Vêm de mais ou menos 1788 as primeiras notícias de lojas maçônicas no Brasil. Introduziram-se elas com as ideias iluministas adquiridas por estudantes brasileiros na Europa. Estes, após concluírem seus cursos na Universidade de Coimbra, completavam os estudos na França e Inglaterra. Particularmente em Montpelier, que era considerada um dos focos maçônicos franceses e por onde passaram José Joaquim da Maia, Álvares Maciel, Domingos Vidal Barbosa etc.

Se na Europa a difusão da maçonaria coincidiu com um momento de ascensão da burguesia, e entre ela os pedreiros-livres ganhavam seus adeptos e se fortalecem, no Brasil foi entre os filhos dos grandes proprietários rurais, e pouco mais tarde entre eles próprios, que a seita teve êxito. À medida que os interesses da aristocracia rural brasileira conflitavam frontalmente com os metropolitanos, a maçonaria e ilustração puderam dar forma e conteúdo ideológico às suas aspirações de independência. Ocorreu aí "A nossa breve Época das Luzes, coincidindo muito felizmente com um momento em que a superação do estatuto colonial abriu possibilidades para realizar os sonhos dos intelectuais. Por isso, no Brasil, a Independência foi o objetivo máximo do movimento ilustrado e a sua expressão principal; por isso, nesse momento, o intelectual considerado como artista cede lugar ao intelectual considerado como pensador e mentor da sociedade, voltado para a aplicação prática das ideias [...] Em poucos momentos, quanto aquele, a inteligência se identificou tão estreitamente aos interesses materiais das camadas dominantes, (que de certa forma eram os interesses reais do Brasil), dando-lhes roupagem ideológica e cooperação na luta."

Não nos cabe aqui reproduzir toda a discussão que existe em torno da participação ou não da maçonaria nos primeiros movimentos de independência do final do século XVIII. Muitos historiadores, principalmente os de vínculos maçônicos, procuraram aproveitar-se da confusão que se criou entre sociedade secreta e maçonaria, ou então, da participação de algum maçom nesses movimentos, para propagandear a importância da sociedade nas conjuras. As sociedades secretas no Brasil são anteriores às seitas maçônicas. Como notou Antônio Cândido, as sociedades literárias do século XVIII recorriam "ao segredo, para preservar-se, repudiando a influência francesa e incorrendo na sua ira ao querer formular uma atitude moderna: laica, civil, interessada no progresso das luzes e da sociedade". Não tinham, porém, finalidades políticas explícitas como a maçonaria. Representaram, todavia, um momento de transição, "de passagem da gratuidade à participação na vida social e da subordinação clerical ao pensamento livre; passagem do escritor marginal que se justapõe à sociedade e procura congregar-se politicamente para, desse modo participar organicamente da vida nacional".

MENDES JR., Antonio; RONCARI, Luiz; MARANHÃO, Ricardo. Brasil História Texto e Consulta 2: Império. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NOTA: O texto "Maçonaria e descolonização" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Conservadorismo: o valor das tradições

Para os governantes tradicionais da Europa – reis, aristocratas, clérigos -, a Revolução Francesa foi um grande mal que abriu um ferimento quase fatal na civilização. Indignados e aterrorizados com a violência revolucionária, o terror e as guerras, os governantes tradicionais buscaram refutar a visão de mundo dos philosophes, que dera origem à Revolução. Para eles, os direitos naturais, a igualdade, a bondade do homem e o progresso permanente eram doutrinas perversas que haviam produzido os “assassinos” jacobinos. Encontraram, no conservadorismo, uma filosofia política capaz de combater a ideologia iluminista.


O Congresso se diverte, charge de Forceval, 1814. Enquanto os imperadores da Áustria e da Rússia e o rei da Prússia dançam de mãos dadas, o rei da Suécia segura firmemente sua coroa.

A obra de Edmund Burke, Reflexões sobre a revolução na França (1790), contribuiu para a formação do pensamento conservador. Burke (1729-1797), estadista e teórico político britânico, quis advertir seus conterrâneos dos perigos inerentes à ideologia dos revolucionários. Embora escrevendo em 1790, Burke vaticinou astuciosamente que a Revolução levaria ao terror e à ditadura militar. Para ele, fanáticos armados com princípios perniciosos – ideias abstratas divorciadas da experiência histórica – haviam arrastado a França ao atoleiro da Revolução. Burke desenvolveu uma filosofia política coerente que serviu de contrapeso à ideologia do Iluminismo e da Revolução.

- Hostilidade à Revolução Francesa. Os filósofos iluministas e os reformadores franceses, fascinados pelas descobertas na ciência, haviam acreditado que a mente humana podia também transformar as instituições sociais e as tradições antigas de acordo com modelos racionais. O progresso através da razão tornou-se sua fé. Dedicados a construir um novo futuro, os revolucionários romperam abruptamente com os velhos costumes, a autoridade tradicional e os modos familiares de pensamento.

Para os conservadores, que, como os românticos, veneraram o passado, essa era a arrogância e o mal supremos. Consideravam os revolucionários como homens presunçosos que irrefletidamente rompiam os elos da sociedade com as instituições e tradições antigas e tachavam de ignorância as veneráveis crenças religiosas e morais. Ao atacarem os costumes consagrados pelo tempo, os revolucionários haviam privado a sociedade francesa de liderança moral e aberto a porta à anarquia e ao terror. “Vocês tiveram um mau começo”, escreveu Burke a respeito dos revolucionários, “porque começaram por desprezar tudo o que lhes pertence. [...]. Quando as antigas opiniões e as velhas normas de vida são postas de lado, a perda talvez não possa ser estimada. A partir desse momento não temos nenhuma bússola para nos guiar; nem podemos saber claramente a que porto nos dirigir”.

Os philosophes e os reformadores franceses tinham manifestado uma confiança ilimitada no poder da razão humana de compreender e mudar a sociedade. Embora apreciassem as capacidades racionais do homem, os conservadores também reconheciam as limitações da razão. Consideravam a Revolução como um desenvolvimento natural de uma filosofia iluminista arrogante, que atribuía demasiado valor à razão e buscava reformar a sociedade de acordo com princípios abstratos.

Para os conservadores, os seres humanos não eram naturalmente bons. A maldade dos homens não se devia a um meio imperfeito, como haviam proclamado os filósofos, mas estava no íntimo da natureza humana, como ensinava o cristianismo. O mal era controlado não pela razão, mas por instituições, tradições e crenças experimentadas e testadas. Sem esses hábitos herdados dos ancestrais, afirmavam os conservadores, a ordem social era ameaçada pela pecaminosa natureza humana.

Em razão de terem durado séculos, afirmavam os conservadores, a monarquia, a aristocracia e a Igreja tinham seu valor. Ao desprezar e erradicar essas antigas instituições, os revolucionários tinham endurecido os corações das pessoas, pervertido sua moral e instigado-as a cometer terríveis afrontas umas contra as outras e contra a sociedade. Para os conservadores, os revolucionários haviam reduzido o povo e a sociedade a abstrações separadas de seus contextos históricos; haviam elaborado constituições baseadas no inaceitável princípio de que o poder do governo emana do consenso dos governados.

Para os conservadores, Deus e a história eram as únicas fontes legítimas de autoridade política. Os Estados não eram constituídos; eram apenas uma expressão da experiência moral, religiosa e histórica de uma nação. Nenhuma constituição legítima ou sólida podia ser elaborada por um grupo reunido com tal finalidade. Tiras de papel com terminologia legal e visões filosóficas não podiam produzir um governo efetivo; ao contrário, um sistema político sólido desenvolvia-se gradual e inexplicavelmente em resposta às circunstâncias.

- A busca da estabilidade social. A filosofia liberal do Iluminismo e a Revolução Francesa começaram com o indivíduo. Os filósofos e os revolucionários almejavam uma sociedade em que o indivíduo fosse livre e autônomo. Os conservadores acreditavam que a sociedade não era uma combinação de indivíduos desconexos, mas um organismo vivo que se mantinha unido por laços centenários. O individualismo colocaria em risco a estabilidade social, destruiria a obediência à lei e fragmentaria a sociedade em átomos isolados e egoístas.

Os conservadores consideravam a igualdade como outra abstração perniciosa que contradizia toda a experiência histórica. Para eles, a sociedade era naturalmente hierárquica, e acreditavam que alguns homens, em virtude de sua inteligência, educação, riqueza e nascimento, eram mais bem qualificados para governar e instruir os menos capazes. Afirmavam que, ao negar a existência de uma elite natural e erradicar uma classe governante há muito estabelecida, que aprendera sua arte através da experiência, os revolucionários haviam privado a sociedade de líderes efetivos, trazido a desordem interna e preparado o caminho para uma ditadura militar.

O conservadorismo apontou uma limitação do Iluminismo. Mostrou que os seres humanos e as relações sociais são muito mais complexos do que haviam imaginado os filósofos. As pessoas nem sempre aceitam a lógica rigorosa do filósofo e não estão prontas a romper com os costumes antigos, por mais ilógicos que possam parecer. Muitas vezes, as pessoas julgam que os costumes familiares e as religiões dos antepassados são guias mais satisfatórios do que os programas dos filósofos. O inflexível poder da tradição continua sendo um obstáculo para todas as visões de reformadores. Os teóricos conservadores advertiram que a violência revolucionária, quando se perseguem sonhos utópicos, transforma os políticos numa cruzada ideológica que termina em terror e despotismo. Essas advertências deram frutos amargos no século XX.


MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 383-385.

NOTA: O texto "Conservadorismo: o valor das tradições" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Ave Caesar! Io, Saturnalia!

El mundo al revés se burlaba del mundo

Las romanas gozaban de un día de poder absoluto. Durante la fiesta de las Matronalias, ellas mandaban; y los hombres se dejaban mandar.

Las Saturnalias, herederas de las Sacés de la antigua Babilonia, duraban una semana y eran, como las Matronalias, desahogos del mundo al revés. Inversión de las jerarquías: los ricos servían a los pobres, que invadían sus casas, vestían sus ropas, comían en sus mesas y dormían en sus camas. Las Saturnalias, homenajes al dios Saturno, culminaban el 25 de diciembre. Era el dia del Sol Invicto, que siglos después fue Navidad, por decreto católico.

Ave Caesar! Io, Saturnalia! Sir Lawrence Alma-Tadema

Durante la Edad Media europea, el Dia de los Santos Inocentes otorgaba el poder a los niños, a los tontos y a los dementes. En Inglaterra reinaba The Lord of Misrule, el Señor del Desgobierno, y en España disputaban el trono el Rey de Gallos y el Rey de Puercos, que vivían en el manicomio. Un niño, ataviado de mitra y báculo, ejercía de Papa de los Locos y se hacía besar el anillo, y otro niño, montado en un burro, pronunciaba sermones de obispo.

Como todas las fiestas del mundo al revés, esos fugaces espacios de libertad tenían principio y fin. Poco duraban. Donde manda capitán, no manda marinero.


GALEANO, Eduardo. Espejos: una historia casi universal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores & Siglo XXI Iberoamericana, 2008. p. 61.

NOTA: O texto "Ave Caesar! Io, Saturnalia!" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Thomas Müntzer e a revolta camponesa

Texto 1. Thomas Müntzer foi, a princípio, um discípulo de Lutero e por este nomeado pastor. Müntzer, exaltado e violento, logo ultrapassou as ideias do mestre. Com um grupo de seguidores, deixou de se apoiar nas Escrituras e passou a se orientar pela voz do Espírito que dizia falar dentro dele. Retomando tradições antigas, a firmava que o fim do mundo se aproximava, que era preciso formar comunidades de eleitos para aguardar esse momento. Pregava também a revolução social, a luta contra os senhores e os príncipes, em favor dos camponeses. "Todos os bens devem ser divididos entre todos", afirmava Müntzer ao reivindicar uma reforma agrária, a abolição do trabalho servil, dos privilégios e dos impostos.


Thomas Müntzer, Escola alemã.

Os partidários de Müntzer foram expulsos sucessivamente de várias localidades até se estabelecerem, em 1525, na cidade de Mühlhausen e tornarem-se os líderes do movimento camponês na região. Depois de alguns meses de luta, o pequeno exército rebelde foi destruído. Müntzer, capturado, foi torturado e executado em público. (VEIGA, Luiz Maria. A Reforma Protestante. São Paulo: Ática, 1990. p. 28-29.)

Texto 2. Enquanto no campo católico conservador se agruparam todos os elementos interessados na conservação do que existia, quer dizer, do poder imperial, dos príncipes eclesiásticos e parte dos seculares, dos nobres ricos, dos prelados e do patriciado das cidades, a reforma luterana burguesa e moderada agrupa os elementos opositores bem instalados na vida: a massa da pequena nobreza, a burguesia e até parte dos príncipes seculares que queriam enriquecer arrebatando os bens do clero e que aproveitaram esta oportunidade para conseguir independência maior do poder imperial. Os camponeses e plebeus por fim formaram o partido revolucionário, cujo porta-voz mais ardente foi Thomas Müntzer.

[...] Ao estourar a guerra camponesa em regiões onde os príncipes e a nobreza eram na maioria católica, Lutero logo assumiu uma atitude conciliadora. Arremeteu contra os governos atribuindo-lhes a culpa da insurreição que, segundo ele, era devida à opressão que exerciam. Para ele, não eram os camponeses que opunham resistência: era o próprio Deus. Por outro lado, a sublevação era também ímpia e contrária ao Evangelho. Finalmente aconselhou ambas as facções a fazerem concessões e se reconciliarem [...].

A Lutero, reformador burguês, oponhamos Müntzer, revolucionário plebeu [...].

[...] Em 1522 fez-se pregador em Alstadt. Ali começou a reformar o culto. Suprimiu completamente o uso do latim, antes de Lutero se atrever a fazê-lo, deixando que se lesse a Bíblia inteira e não somente as epístolas e os evangelhos de rigor no culto dominical. Ao mesmo tempo organizava a propaganda na região. O povo acudia de toda parte e Alstadt veio a ser o centro do movimento anticlerical popular em toda a Turíngia.

Müntzer continuava sendo o teólogo, seus ataques dirigiam-se quase exclusivamente contra o clero. Porém, não propugnava a discussão pacífica e o progresso legal como já o fazia Lutero. Saiu, pelo contrário, pregando a violência, conclamando à intervenção armada contra os padres romanos. (ENGELS, Friedrich. As guerras camponesas na Alemanha. São Paulo: Grijalbo, 1977. p. 37-49.)

NOTA: O texto "Thomas Müntzer e a revolta camponesa" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

domingo, 22 de dezembro de 2013

A Espanha Muçulmana

Ocupando território espanhol, conhecido então como Al Andalus, os muçulmanos controlaram as terras dos reis visigodos e da Igreja.

Obrigavam os camponeses a pagar um terço da produção. Ao mesmo tempo introduziram inovadoras técnicas agrícolas, que beneficiaram os agricultores. Desenvolveram as atividades comerciais. Cunharam moedas. Exploraram minérios. Construíram estradas e aproveitaram aquelas existentes desde o domínio romano. Edificaram cidades que foram autênticos símbolos da opulência da civilização urbana andaluza, como Sevilha, Córdoba e Toledo.

Torre do Ouro, Sevilha

A longa permanência dos conquistadores muçulmanos deixaria marcas definitivas no Ocidente, e nesse aspecto o papel da Espanha foi o de ser a principal área intermediária. A cultura muçulmana no Ocidente agiu como uma força sintetizadora, levando para as regiões conquistadas o que havia de mais importante em todos os centros da atividade humana, o que havia de mais significativo no conhecimento de chineses, indianos e gregos. Traduzindo as obras dos mais importantes autores da Antiguidade clássica, os muçulmanos transferiam para o Ocidente o conhecimento acumulado durante séculos. Eles contribuíram para o desenvolvimento da cartografia e da astronomia, da química e da medicina, da indústria e do comércio, da arquitetura e da matemática, da filosofia e da literatura. Introduziram no Ocidente os algarismos hindus (hoje chamados arábicos). Desenvolveram a álgebra e a astronomia. Imortalizaram nomes como o do médico e filósofo Averróis, comentarista da obra de Aristóteles. Como o também médico e filósofo Avicena, que teve sua obra enciclopédica, chamada Canon, utilizada durante muito tempo nas escolas europeias de medicina. Como o historiador Ibn Khaldun, que muitos vêem como precursor da abordagem científica da vida social. Como o sábio Al Biruni, que se dedicou a praticamente todas as disciplinas científicas de seu tempo.

O apogeu do islamismo ocidental foi vivido em território espanhol e desmoronou com a Reconquista cristã, concluída no ano de 1492. No entanto, a contribuição deixada pela civilização do Islão representa uma herança que continuou depois disso a beneficiar toda a humanidade e que se prolonga, através da História, até nossos dias.

YASBEK, Mustafá. A Espanha Muçulmana. São Paulo: Ática, 1987. p. 29-30. 

NOTA: O texto "A Espanha Muçulmana" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sábado, 21 de dezembro de 2013

A maldição de Malinche

Quando a frota espanhola, chefiada por Hernán Cortés chegou a Tabaco, nas costas mexicanas, em março de 1519, os caciques locais presentearam-no com vinte mulheres nativas que, depois, foram catequizadas e batizadas. Dentre elas destacou-se uma dama da elite indígena, que recebeu o nome cristão de Marina, precedido do título Doña - marca de nobreza das senhoras espanholas.

"Doña Marina se tornou na armada um personagem tão eminente que os indígenas lhe deram o nome de Malintzin, composto de Marina e do sufixo tzin, que significa a classe social ou a nobreza. E ela teve a distinção extraordinária de ter dado seu nome a seu senhor e dono, pois que os índios tomaram o hábito de chamar Cortés pelo nome de sua notável amante-intérprete, Malintzin, que os espanhóis transformaram em Malinche." (Salvador de Madariaga. Hernán Cortés. p. 134.)


Cortéz e Malinche, (detalhe de mural), Orozco

A união dos dois, que resultou num filho, deu início à miscigenação racial entre os brancos conquistadores e os indígenas mexicanos. A miscigenação, aliada à extrema fidelidade da intérprete a seu senhor, deu origem ao mito da Maldição de Malinche, que passou a expressar a situação de dominação e subordinação dos mexicanos a interesses estrangeiros, a partir da "traição" de Doña marina.

Em 1973, esse mito foi cantado numa bela música. 

A maldição de Malinche
Gabino Palomares

Do mar eles viram chegar
meus irmãos emplumados.
Eram os homens barbados
da profecia esperada.

Ouviu-se a voz do monarca
de que o Deus havia chegado.
E lhes abrimos as portas
por temer o ignorado.

Vinham montados em bestas
como Demônios do mal.
Vinham com fogo nas mãos
e cobertos de metal.

Só o valor de uns poucos
lhes opôs resistência.
E ao ver correr o sangue,
cobriram-se de vergonha.

Porque os Deuses não comem
nem gozam com o que é roubado.
E quando nos demos conta,
já tudo estava acabado.

E nesse erro entregamos
a grandeza do passado.
E nesse erro ficamos
trezentos anos escravos.

Restou-nos o maléfico
de brindar o estrangeiro,
nossa fé, nossa cultura,
nosso pão, nosso dinheiro.

E continuamos trocando
ouro por contas de vidro.
E damos nossa riqueza
por seus espelhos com brilho.

Hoje em pleno século XX
nos procuram, chegando enrubescidos.
E lhes abrimos a casa
e os chamamos amigos.

Mas se chega cansado
um índio de andar pela serra,
o humilhamos e o vemos
como um estranho em sua terra.

Tu, hipócrita que te mostras
humilde diante do estrangeiro,
mas te voltas orgulhoso
contra teus irmãos do povo.

Oh, maldição de Malinche,
enfermidade do presente.
Quando deixarás minha terra?
Quando libertarás minha gente?

Citado in: PAZZINATO, Alceu Luiz; SENISE, Maria Helena Valente. História Moderna e Contemporânea. São Paulo: Ática, 1995. p. 59.

NOTA: O texto "A maldição de Malinche" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

A cultura jovem dos anos 80: do pós-punk à world music

Nos anos 80, o desenvolvimento tecnológico permitiu uma reciclagem de ritmos do passado pela criação de "instrumentos computadorizados" - sequenciadores, samples e midis -, que gravam, armazenam e inventam qualquer som desejado. Tais "instrumentos" possibilitaram aos músicos criar e recriar qualquer tipo de linguagem musical, como também se apropriar de qualquer trecho de músicas já editadas.

Dentro desse contexto, a partir do final dos anos 70, alguns nomes internacionais (como Joy Division, U2 [...], Depeche Mode [...]) abriram novas perspectivas no contexto da música jovem, independentemente dos rótulos adotados pela crítica especializada como pós-punk [...], trash-metal, tecnopop etc.


Joy Division

A música negra (black music), valendo-se também das novas tecnologias, acabou expandindo seu raio de influência no cenário da música pop da década de 1980, com a revitalização de ritmos como o funk [...] e o reggae [...].

Surgiu também o rap ("conversa", "papo", "tagarelice") ou hip hop - funk eletrônico [...].

O rap surgiu para ser, basicamente, uma forma de expressão e comunicação dentro da comunidade negra dos Estados Unidos. Seus textos falam dos problemas dos jovens negros do subúrbio: música, garotas, discriminação, falta de perspectiva profissional, drogas [...], batidas policiais, tiroteios e gangues. [...]

[...]

Ao longo dos anos 80, a África chamou a atenção do mundo não só pela fome e pelo racismo permanente, mas também pela música. Várias campanhas [...] e shows musicais (Live Aid, Free Mandela Concert etc.) procuraram arrecadar fundos e sensibilizar o mundo para esses graves problemas africanos. Tais eventos contaram com a participação de astros consagrados da música pop, como Michael Jackson, Lionel Richie, Steve Wonder, Bruce Springsteen, Madonna, Tina Turner, Sting, Peter Gabriel, Lou Reed, Dire Straits, U2, entre outros.

O processo histórico africano de dependência econômica acabou determinando, culturalmente, um choque entre a alta tecnologia importada dos países desenvolvidos e as tradições tribais africanas. Na área musical, por exemplo, esse choque entre culturas deu origem a novos ritmos [...], a partir de nomes como Tabu Ley, Manu Dibango [...], Toure Kunda e Youssou N'Dour.

A partir dos anos 80, esse caldeirão efervescente de novos ritmos africanos acabou influenciando músicos conceituados no cenário internacional, como Peter Gabriel [...]. Miles Davis e Paul Simon. Para muitos, essa troca de influências rítmicas [...] originou a chamada "geléia geral do terceiro milênio", que, na música pop, alguns denominam world music [...].

BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. São Paulo: Moderna, 2008. p. 119-122.

NOTA: O texto "A cultura jovem dos anos 80: do pós-punk à world music" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A cultura jovem dos anos 70: do progressive rock ao punk

O avanço do sistema sobre a contracultura, pela assimilação de seus principais elementos, entre eles a música, tornou possível, a partir de uma indústria cultural bem-articulada, uma incorporação dessa contracultura à cultura de consumo. Ou seja, ao mesmo tempo que os jovens ainda deploravam o materialismo da sociedade de consumo, eles adquiriam sofisticados equipamentos de som, motos e carros esporte, roupas coloridas, jeans desbotados, bijuterias etc.

Os abalos da década de 1960 - a Guerra do Vietnã, a violência racial, os movimentos estudantis e a contracultura - fizeram com que, por exemplo, a campanha presidencial nos Estados Unidos, em 1968, englobasse todas as tensões e toda a agitação dos movimentos jovens, suscitando uma profunda preocupação e reavaliação dos problemas sociopolíticos norte-americanos. [...]

O refluxo dos movimentos jovens nos Estados Unidos foi, em parte, produto da própria política conservadora de Nixon, que, habilmente, começou a dissipar a questão da Guerra do Vietnã, com o início das conversações de paz e a retirada gradual das tropas norte-americanas. Por sua vez, havia o declínio da economia capitalista, que atingia seu ponto culminante em 1973, com a Crise do Petróleo, reduzindo sistematicamente as oportunidades de emprego e desviando, então, a atenção e a energia da juventude para a luta contra o desemprego e para a especialização profissional.

[...]

Apesar dessa crise na economia capitalista, a indústria fonográfica expandiu seu mercado, e o rock ficou com a maior fatia do bolo. Toda essa injeção de dinheiro na indústria fonográfica se refletiu numa infinidade de tendências que se impuseram ao longo da década.

O rock, que nos anos 60 havia servido de pano de fundo para o apogeu dos movimentos de contracultura, fragmentou-se numa infinidade de estilos e linguagens [...]. 

[...] no âmbito mundial, dois estilos marcaram a primeira metade dos anos 70: o progressive rock (rock progressivo) e o heavy metal (metal pesado). O primeiro teve sua origem nas experimentações musicais dos anos 60 [...]. Musicalmente, o progressive rock acabou sendo um dos principais responsáveis pelas experimentações de vanguarda (fusões com a música erudita e o jazz) e pelo desenvolvimento da eletrônica, especialmente dos sintetizadores [...] no interior da música pop. O início do movimento progressivo foi marcado por Days of future passed, o LP que os Mody Blues gravaram em 1968 com a Orquestra Sinfônica de Londres. Mas foram grupos como Yes, Genesis, Emerson, Lake and Palmer, Pink Floyd, Jethro Tull [...], que deram uma configuração inicial ao movimento.


Pink Floyd
Foto: TimDuncan

Já o heavy metal não usava nenhum metal (instrumento de sopro); era feito na base da força das guitarras amplificadas e distorcidas por toneladas de equipamentos. Esse estilo também teve sua origem no acid rock dos Estados Unidos [...]; nos grandes guitarristas britânicos como Jimmy Page, Jeff Back e Eric Clapton; em grupos como [...] o Led Zeppelin [...], Black Sabbath [...] e Deep Purple [...].

Logo, o rock passaria do sonho ao pesadelo. A temática do satanismo, explorada pelo heavy metal, refletia, de certo modo, as incertezas de uma década que se iniciava e havia sido prenunciada pelos Rolling Stones em "Simpathy of the devil" ("Simpatia pelo demônio") enquanto um jovem negro morria na platéia, esfaqueado pelos Hell's Angels (Anjos do Inferno) - grupo de motoqueiros desocupados, muitos deles veteranos do Vietnã -, em pleno Festival de Altamont (1969). Na verdade, o rock sofria o impacto dos novos tempos. A Crise do Petróleo [...]; os atentados terroristas [...]; o acirramento do conflito no Oriente Médio [...]; a corrida armamentista entre os Estados Unidos e a URSS, aliada ao desequilíbrio ecológico do planeta, tudo isso caracterizava o clima escatológico ou de fim de mundo, vivido nos anos 70 e não acompanhado pela expansão e sofisticação da indústria fonográfica do rock, cujo ponto culminante seria a discothèque.

A discothèque ou disco music, produto da cultura "underground" (marginal) homossexual, negra e latina dos grandes centros urbanos dos Estados Unidos, incorporada por amplos setores da classe média branca, representava o ponto máximo da expansão e do crescimento da indústria fonográfica mundial [...]. Popularizada pelos meios de comunicação e pela violenta campanha publicitária que acompanhou John Travolta e o filme Os embalos de sábado à noite, a discothéque se apoiou no clima dançante e evasivo das músicas do Village People e de Donna Summer [...]. Apesar de todo esse modismo e escapismo tolo, a discothèque conseguiu abrir caminhos para a influência da música negra (funk e soul) no interior da música pop branca.


Village People

O fenômeno discothèque e a sofisticação do rock [...] não correspondiam à situação desesperadora e sem perspectiva da maioria da juventude nos principais centros urbanos do mundo. Por isso, o elemento seguinte de contestação deveria ser um retorno às origens da energia crítica do rock. Só a partir da postura radical do movimento punk (1976) é que o rock restabeleceu seu poder crítico em relação à sociedade [...] e incorporando outros ritmos do Terceiro Mundo (como o reggae, o afro e outros).

A primeira metade da década de 1970 já apresentava vários componentes que serviriam de base para o movimento punk e o que se seguiu a ele [...]; mas é nas bandas de garagem dos Estados Unidos que encontramos a gênese desse movimento. [...]

Um dado importante na revolução do punk inglês foi a chamada conexão jamaicana, com o reggae. Os jovens londrinos da classe operária começaram a se identificar com esse ritmo antilhano [...] e a situação de miséria da população do Terceiro Mundo. Assim como os jovens da década de 1950 projetaram-se na marginalidade negra do blues norte-americano para criar o rock' n' roll, o reggae iria se tornar uma das principais influências da música pop, liderado por músicos como Bob Marley, Peter Tosh, Bunny Wailer, Jimmy Cliff etc.

[...]

Com a explosão do movimento punk em 1976, a imprensa não queria escrever sobre outro assunto. O espírito da época era punk e correspondia ao desemprego e à onda terrorista na Europa. Retomando o estilo básico - guitarra, baixo, bateria, vocal e amplificadores baratos -, o punk reciclaria o rock em três acordes, tocados o mais primitivamente possível. [...]

Em 1976, o punk foi uma revolução mais pelo estilo de vida agressivo, por suas roupas e atitudes, do que propriamente por suas "ideias anarquistas". [...]

No final de 1977, quando o punk se tornou sinônimo de má reputação e vandalismo, a imprensa mundial começou a tratá-lo como new wave ( (nova onda). Ironicamente, a extravagância e a rebeldia dos punks começaram a ser absorvidas pela indústria cultural, abrindo caminho para outros valores: The Police, Elvis Costelo [...], The Pretenders [...], Talking Heads, [...] B-52' [...]. O próprio esvaziamento da discothèque, em fins  dos anos 70, trouxe essa "nova onda". Como movimento, a new wave é difícil de definir e delimitar. [...]

BRANDÃO, Antonio Carlos; DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos culturais de juventude. São Paulo: Moderna, 2008. p. 88-93 e 96-97.

NOTA: O texto "A cultura jovem dos anos 70: do progressive rock ao punk" não representa, necessariamente, o pensamento deste blog. Foi publicado com o objetivo de refletirmos sobre a construção do conhecimento histórico.