"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quarta-feira, 31 de julho de 2013

A educação asteca

É obrigatória para todos. Tende a formar indivíduos fortes, extremamente sóbrios, humildes e obedientes, com máxima aptidão para a guerra e o trabalho pesado e permanente.

Quando nasce um menino, e logo após o corte do cordão umbilical, a parteira faz um longo discurso. Diz o seguinte: "Meu amado filho... saiba e entendas que aqui onde nasceste não é a tua casa, porque és soldado e criado, és ave a que chamam Quecholli... esta casa onde nasceste é somente um ninho... teu ofício é dar de beber ao sol com o sangue dos inimigos, e dar de comer à terra, que se chama Tlaltecuhtli, com os corpos de seus inimigos..."

À medida que o menino vai crescendo, aumentam as rações alimentícias que lhe são proporcionadas e que estão pré-fixadas. Faz trabalhos e tarefas - sempre de acordo com sua idade - destinadas a aumentar a força física e desenvolver hábitos de trabalho e obediência. Desde pequeno aprende a transportar água e lenha, a recolher grãos de milho esparramados no chão, pescar e conduzir canoas. As meninas aprendem a fiar e realizar trabalhos que a sociedade Asteca atribuía à condição feminina.


Jovens de 15 anos iniciando treino como militares. Em baixo, uma jovem de 15 anos se casa. Codex Mendoza

A educação é bastante rigorosa e está orientada pelo religioso e pela moral, o que não quer dizer que a moral e a religião devam ser consideradas como esferas separadas. Assim que termina a função educativa no lar, ela é transferida a dois tipos de instituições: o Calmenac e o Telpochcalli. A primeira era para os filhos dos dignatários e mercadores, sem estar totalmente fechada aos descendentes das famílias de origem mais humilde. A segunda estava destinada a formar o homem mexicano médio.

POMER, León. História da América hispano-indígena. São paulo: Global, 1983. p. 14.

terça-feira, 30 de julho de 2013

O advento da imprensa

Polemistas, tanto humanistas quanto religiosos, dispuseram, a partir do século XV, de uma nova vantagem: a imprensa. Surgiram na Europa pela primeira vez o tipo móvel de metal, tintas à base de óleo e melhores máquinas impressoras. O verdadeiro herói desta conquista foi o alemão Gutenberg, cujo empreendimento o deixou financeiramente arruinado. Mas a sua invenção teve um enorme efeito. Por exemplo, fez com que as edições de Erasmo, do Novo Testamento em grego, alcançassem mais pessoas mais depressa do que as obras de sábios do passado. Erasmo lhes oferecia um texto mais acurado do que os anteriores, e portanto melhor base para discussão do verdadeiro significado do Novo Testamento. É claro que não foram impressos imediatamente novos livros. Nos primeiros dias da imprensa, o livro mais impresso foi a Bíblia. As pessoas também queriam outras obras conhecidas de grandes teólogos ou legistas, famosos textos de autores antigos, e não novidades. Contudo, a existência da máquina impressora se mostraria de grande importância na circulação de novas ideias - especialmente científicas - entre o pequeno número de pessoas com interesses específicos.

Bíblia de Gutenberg (detalhe)

A imprensa contribuiu para tornar a Europa uma sociedade muito mais culta. Embora grande parte dos europeus não soubesse ler, nem mesmo em 1800, era muito mais comum, à época, que os mais ricos pudessem fazê-lo do que trezentos anos antes. Além disto, muitas vezes os que não sabiam ler conseguiam alguém para ler os livros em voz alta, e o que ouviam era escrito em vernáculo. Os homens cultos continuaram por muito tempo seguindo a prática de escrever em latim, a língua internacional da sabedoria. Porém cada vez mais livros eram publicados em inglês, francês, alemão, italiano, espanhol e outras línguas europeias e, como a invenção da escrita nos tempos primitivos ajudara de certo modo a "fixar" a linguagem, a imprensa padronizou a grafia e o vocabulário em áreas muito mais amplas, antes diferenciadas por dialetos e idiomas locais. Essas mudanças conseguiram impulso quando a impressão começou a ser usada para outras coisas além de livros. Volantes, ilustrações impressas com explicações, boletins, panfletos e finalmente o verdadeiro jornal ou a revista periódica, tudo isso surgiu antes de 1800. Tais publicações não tiveram a mesma forma em todos os lugares. Os ingleses elaboraram panfletos políticos no século XVII (um dos mais famosos foi a Areopagítica, de Milton, importante libelo em favor da liberdade de imprensa), enquanto na França (devido à censura) eles demoraram mais cem anos e forma menos numerosos. Os jornais foram publicados na Alemanha a partir do século XVII. Porém, em 1800, havia muito mais material impresso por toda parte do que três séculos antes, e é provável que nesta época a discussão pública de ideias e acontecimentos fosse mais frequente do que nunca, a despeito da qualidade.

Perto do final do século XVIII, aumentaram as demandas por maior liberdade de imprensa e de publicação, em outros países além da Inglaterra, como a república holandesa e as colônias inglesas da América. Um famoso escritor francês declarou que embora discordasse violentamente do que alguém dizia, lutaria com vigor pelo direito de a pessoa se expressar. Na época, uma declaração assim significava que deveria haver um direito legal de imprimir e publicar opiniões. Por isso lutaram em muitos países os liberais do século XIX, e novamente no século XX, quando se pensou que a batalha estava ganha.

Por volta de 1700, a imprensa já ajudara a criar um público internacional de homens cultos. As descobertas e observações científicas seriam publicadas nas "atas" da Royal Society da Inglaterra, ou de academias reais em outros lugares. [...]

ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 486-488,

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Confucionismo e família chinesa

Retrato de família. Artista desconhecido, século XVII  

Como o Cristianismo na Europa e o Islã no oeste da Ásia, o Confucionismo modelou profundamente a vida familiar na China e por todo o leste da Ásia. Nascido em uma era de desordem social e política no século VI a.C., o pensador conhecido no ocidente como Confúcio considerou a família como o alicerce da sociedade. Ele encorajou as famílias a venerarem seus ancestrais, de forma que a realização de ritos ancestrais tornou-se uma atividade importante da família confucionista. Cada geração era obrigada a produzir herdeiros masculinos de forma que as gerações sucessoras pudessem continuar honrando seus ancestrais.

O Estado e a sociedade foram modelados sobre a família. O imperador deveria tratar seus súditos como um pai trata seu filho, e vice-versa. A virtude da piedade filial caracteriza idealmente essa relação: o pai tem a autoridade absoluta dentro da família e a obediência absoluta era exigida do filho. Além da relação entre imperador e súdito, a relação pai-filho, entre o irmão mais velho e o mais novo e entre marido e esposa, estavam entre as cinco relações humanas fundamentais (a quinta era entre amigos). Certos aspectos dessas relações, como descritas por Confúcio, são aparentes: o domínio da idade sobre a juventude e do homem sobre a mulher. Idade e gênero determinaram a hierarquia dentro da família. As mulheres, não importando a idade que tivessem, não podiam escapar da autoridade do homem. Como filhas, elas eram dependentes e subordinadas aos seus pais; como esposas, a seus maridos; como viúvas, a seus filhos.


Uma senhora da dinastia Ming. Artista desconhecido

Uma das mais influentes intérpretes dos ideais confucionistas, no que diz respeito ao papel das mulheres na família, foi Ban Zhao (45-115 d.C.), a filha de uma famosa família de intelectuais da época e uma notável estudiosa. Ela compilou as lições para mulheres, um tratado a respeito de princípios éticos e morais pelos quais uma mulher deveria pautar sua vida. Esse trabalho também fornecia um guia para as preocupações práticas da vida cotidiana para filhas, esposas e mães. Alguns títulos de capítulos desse trabalho sugerem os temas de Ban Zhao: humildade, respeito, cautela, devoção, obediência e harmonia. Ela incentivava as mulheres a reverenciar, respeitar e dar a preferência aos outros. Entre outras coisas, ela abordou o papel da mulher e do homem dentro da família: “Se uma esposa não serve seu marido, a própria relação entre homem e mulher, bem como a ordem natural das coisas foi negligenciada e destruída.”

Além os comportamentos prescritos, sobre os quais se escreveu em textos clássicos, sabemos relativamente pouco, a partir de fontes-padrão, sobre os detalhes íntimos da vida familiar ou sobre a operação prática de um ambiente doméstico no começo da China Imperial de quase todo o primeiro milênio da Era Cristã. [...]

Por volta de 1000 d.C., começamos a ter muito mais documentação disponível para reconstruir a família e o lar chinês; recursos literários, especialmente poesia, fornecem perspectivas pessoais e privadas que em muito melhoram aquilo que podemos aprender por meio de recursos oficiais. Recursos literários podem abrir um tipo diferente de janela para a vida familiar do passado, documentando dimensões emocionais e psicológicas das relações familiares e sugerindo como os ideais do Estado eram vividos na prática. [...]


 Tao Gu apresenta um poema (detalhe), ca. 1515. Tang Yin. Dinastia Ming.

Um laço emocional e intelectual profundo existiu entre uma poetisa chamada Li Qingzhao (1084? – 1151) e seu marido. Como outras mulheres de seu tempo, ela se casou jovem, aos 16 ou 17 anos. Após a morte do marido ela escreveu uma tocante memória de seu casamento como uma parceria intelectual íntima. Li Qingzhao e seu marido viveram em uma era na qual os laços de casamento frequentemente eram usados como estratégia para aumentar o status político, social e econômico da família. A riqueza era um fator importante, mas ainda mais importante era o status adquirido por aquele que passava nos exames do serviço imperial civil. Por exemplo, uma rica família sem filhos homens poderia casar sua filha com o filho de uma família relativamente pobre que houvesse passado nos exames e, assim, aumentavam tanto seu poder quanto sua riqueza. [...]


Prazeres da corte Tang. Zhang Xuan

O casamento era o meio mais simples de aumentar o status social ou econômico, e as famílias eram mais do que unidades para a produção de candidatos aos exames ou filhas casadoiras. Casamento e vida familiar refletiam uma complexidade de noções sobre o papel e a posição da mulher e de suas relações com o homem, e criavam laços emocionais complicados que eram frequentemente negados ou frustrados pelos costumes e práticas sociais. [...] Genealogias familiares ao fim da China Imperial (1300-1800) algumas vezes incluíam instruções sobre o que vestir, o que comer, quais ocupações eram aceitáveis, alertava aos descendentes para honrar seus ancestrais com os ritos adequados e a não gastar sua herança. Dessa forma, as memórias da vida familiar serviram como impressões para gerações futuras decifrarem e ordenarem seu próprio mundo.  

GOUCHER, Candice; WALTON, Linda. História mundial: jornadas do passado ao presente. Porto Alegre: Penso, 2011. p. 146-148.

sábado, 27 de julho de 2013

O surgimento dos idiomas globais

As línguas vivas foram influenciadas pela migração do campo para a cidade. Idiomas falados em determinadas regiões rurais e por apenas alguns milhares de pessoas, corriam perigo quando estas se mudavam para zonas urbanas. Tais línguas regionais também sofriam quando a cultura citadina - através dos novos meios de comunicação - chegava ao campo. Da mesma forma, estavam em risco se a invasão de algum idioma mais popular - o inglês ou o russo, por exemplo - oferecesse mais esperanças de emprego, melhor educação ou acesso a entretenimento.

Fora da Europa, centenas de línguas nativas, vivas e vigorosas em 1900, passaram a ser faladas por apenas alguns milhares de pessoas. Quando um idioma sofria tal decadência, a maioria dos falantes o usava somente em parte de seu cotidiano, muitas vezes sem explorar todos os seus recursos e suas complexidades, pois os ouvintes de tal língua, especialmente os jovens, não a conheciam por completo. Das mais de 6 mil línguas do mundo, a maioria tinha, relativamente, poucos falantes no final do século. Elas estavam sob ameaça, uma vez que o rádio, a televisão, os jornais e os livros davam preferência àquelas faladas pela maioria.

O idíche possui hoje cerca de um terço dos falantes que tinha em 1900, quando era usado nas regiões central e leste da Europa, O íngrio e outros dois idiomas falados nas proximidades do Mar Báltico reuniam, em 1970, somente algumas poucas centenas de falantes cada um. A língua dálmata, usada no litoral leste do Mar Adriático, sumiu em 1898. O manx, que se falava na Ilha de Man, no Mar da Irlanda, foi extinto em 1974.

Na Austrália, vários idiomas se perderam. Um erudito estudou cinco línguas vivas de aborígenes, da região tropical de Queensland, e revelou com tristeza, em 1992, que três estavam extintas, uma tinha apenas dez falantes e a última continuava viva apenas na mente de um falante solitário. Não eram línguas simples, que morreram por falta de flexibilidade e vocabulário. A maioria possuía uma gramática complexa e um impressionante léxico de cerca de 10 mil palavras. Entre as numerosas línguas em risco pelo mundo, a maioria não sobreviveu.

Em 1900, o francês era, por estreita margem, a língua preferida para discursos internacionais e a favorita da alta sociedade em uma dúzia de países, incluindo a Rússia. No currículo de escolas secundárias do mundo anglófono, competia com o latim como língua estrangeira mais popular. De acordo com a edição de 1920 da enciclopédia inglesa Chamber's, o francês era "a literatura mais uniformemente legível de todas". Raros eram os ramos do aprendizado e da cultura aos quais o francês não se aplicasse. "Na França, mais do que em qualquer outro país, a capacidade mental está acompanhada pela faculdade literária", dizia a enciclopédia. O idioma parecia andar de mãos dadas com o que havia de melhor da civilização. Mas não conseguiu competir com o inglês como língua do comércio  - Londres e Nova York, em 1900, eram as capitais comerciais do mundo, e a libra esterlina, a princesa das moedas -, de modo que as pessoas de negócios da maioria dos países, da Suécia ao Japão, acabaram optando por aprender inglês.

A derrota militar da França em 1940 foi um golpe na reputação do eloquente idioma francês, mas nas suas colônias nada se alterou. A ajuda econômica francesa à África estava em seu ponto mais generoso e os africanos não viam problema algum em dizer merci e usar o francês para escrever seus pedidos de subsídio. O avanço do comunismo foi outro choque na popularidade da língua francesa, que então perdeu para o russo o lugar de segunda língua favorita na China, na Mongólia e em países comunistas do Leste Europeu.

O inglês estava então muito à frente graças, em parte, à influência dos Estados Unidos. Também continuava a ser um idioma importante na Índia, por causa dos conflitos entre falantes do hindi e de outras línguas. Durante a década de 1940, ultrapassou o alemão como língua da ciência e da engenharia e, uma década mais tarde, tornou-se o idioma dos controladores do tráfego aéreo. No emergente mundo da cultura pop, Elvis Presley, os Beatles e a maior parte das estrelas cantavam em inglês. O que mais um idioma poderia querer?


Inglês: idioma da internet

No último terço do século, nenhum rival da língua inglesa ganhou terreno. A libertação do Leste Europeu e a desintegração da União Soviética puseram termo à possibilidade de o russo tornar-se uma potencial linguagem global. Nessa época, russo e francês possuíam, cada um, menos falantes nativos do que o espanhol, graças ao rápido crescimento populacional na América Latina. O chinês contava com mais de 1 bilhão de falantes e representou um importante facilitador do comércio na Ásia Oriental, mas foi o inglês que se tornou o idioma da internet. No ano 2000, a língua inglesa se transformara na mais influente de todos os tempos.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do século XX. São Paulo: Fundamento Educacional, 2011. p. 287-289.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Cultura e religião na África pré-colonial

A história do continente africano, geralmente, é construída de fora para dentro, com base nos interesses que buscaram (e buscam ainda) dominar a África e os africanos, mas também por culpa de africanos que se espelham e vivem à imagem dos povos que os dominaram, sem referência ao seu passado histórico. Segundo Ki-Zerbo (2010), é imperativo que a história e a cultura da África sejam também vistas de dentro, sem serem analisadas por parâmetros de valores exclusivamente europeus. Portanto, apesar dos mitos e preconceitos de todo tipo, que durante um longo período de tempo ocultaram a real história deste continente, existiu e existe até os dias de hoje culturas, religiões e grupos linguísticos diversos, bem como uma organização social própria dos povos africanos.



O continente africano é conhecido pela diversidade e pela riqueza de suas culturas e religiões, mas sobre o período pré-colonial a maioria dos filmes e documentários mostra uma imagem essencialmente primitiva e "bárbara". No entanto, essa visão não passa de um olhar racista e ideológico que busca descaracterizar o continente para poder controlá-lo com facilidade. Apesar disso, nenhuma dessas classificações pode apagar a história da mais antiga região do mundo, que é, culturalmente, um conjunto plural, um mosaico de nações étnicas correspondentes a identidades distintas.

Nesse sentido, Cheikh Anta Diop (1999) observa que não se deve construir a humanidade apagando a cultura de uns em benefício de outros e, tampouco, renunciando prematuramente e de forma unilateral sua cultura nacional no intuito de se adaptar à do outro em nome da simplificação da "globalização", pois isso seria um suicídio. Ou seja, importa resgatar as culturas africanas do período anterior ao colonialismo europeu, bem como suas relações com o resto do mundo, principalmente, devido às diferenças físicas, linguísticas e de organizações sociopolíticas que caracterizam a realidade africana.

Desse modo, podemos definir a cultura como sendo o conjunto da maneira de pensar, agir e se comportar de um povo que vive em coletividade, compartilhando símbolos e valores. Segundo Giddens (2004), o conceito de cultura se refere aos aspectos da sociedade humana que são apreendidos e não herdados, porém compartilhados pelos membros das sociedades e tornam possível a cooperação e a comunicação. Desse modo, a cultura é composta tanto por elementos materiais como por obras de arte, técnicas ou instrumentos de trabalho do grupo, bem como suas vestimentas, elementos espirituais ou religiosos que incluem ideias, crenças, normas, valores e costumes do grupo. Portanto, a compreensão de qualquer cultura deve evitar privilegiar, como foi feito no caso da África, o fator psicológico da identidade cultural em vez de considerar também as dimensões históricas e linguísticas (DIOP, 1987). No caso da África pré-colonial, a consideração desses elementos nos leva a falar, além da origem egípcia da civilização africana e mundial, da história dos Estados africanos conhecidos como impérios ou reinos, que foram grandes centros de divulgação da cultura africana.

Durante esse período, apesar do Deserto do Saara dividir o continente africano em dois, gerando o desenvolvimento de estilos de vida diferentes entre o norte e o sul, sempre houve trocas comerciais, culturais e sociopolíticas entre os povos das duas partes do continente. Assim o desenvolvimento de relações intercomunitárias e a organização no âmbito da formação de Estados foram facilitados. Um exemplo disso foi o Império de Gana, o mais antigo da parte ocidental do continente [...], que teve como respectivos sucessores os impérios Mali e Songhai. Essa sucessão mostra, em parte, a continuidade histórica dos povos africanos cuja base da civilização é a cultura egípcia, contrariando as afirmações das teorias que tentam distinguir a civilização e a cultura egípcia da dos demais povos do continente.

Segundo Diop (1999), a civilização do Egito Antigo é a base do patrimônio cultural, filosófico e científico de todos os africanos do continente, influenciando também a diáspora. Importa dizer que apesar de a África ser definida, primariamente, como um continente pobre e que pouco inovou, antes da colonização europeia o continente era uma das partes do mundo mais dinâmicas do ponto de vista da pesquisa e do florescimento cultural graças à organização política e socioeconômica de seus impérios. Assim, segundo Cissé (2010), na África Ocidental, por exemplo, mais especificamente na zona sudanesa-saariana, os contatos entre a população local e a cultura árabe-muçulmana, entre os séculos VIII e IX, propiciou uma grande produção de manuscritos em árabe nos principais centros urbanos como Gao, Djene e Timbuktu.

Considerando um intervalo de tempo um pouco maior, do século VII ao XVI, e sob vários aspectos, o continente africano passou por momento importante, pois este foi um período privilegiado para o desenvolvimento de culturas originais. Sem perder sua identidade, os africanos assimilaram influência externa. Foi nesta época que o grande Império do Sudão, situado ao sul do Saara, entrou em contato com a cultura e a religião islâmicas, as quais a partir de então passaram a fazer parte da cultura africana, convivendo quase que em harmonia com as religiões e crenças locais. Portanto, de forma oposta ao cristianismo, que chegou ao continente negro juntamente com os exploradores e futuros colonizadores europeus, o islamismo chegou à África pregado por africanos que tiveram contato com os fundamentos islâmicos a partir de viagens ao Oriente Médio. Conforme Diop (1999), a penetração do islã na África foi feita de forma pacífica, exceto o caso da islamização do movimento almoravida, durante a primeira metade do século XI, quando os berberes tentaram impor o islã pela força das armas.

Vale ressaltar que o contato dos africanos com o mundo árabe marcou o início de novos relacionamentos do continente negro com o exterior. Essas relações se intensificaram, resultando em formações sociais, políticas e culturais complexas, baseadas na diversidade que caracteriza o continente. Essa diversidade, por sua vez, dificulta a compreensão da formação, em termos de crença, de um sincretismo ou hibridismo religioso que se observa no continente até na atualidade. Desse modo, o entendimento das religiões africanas tradicionais se torna mais complicado devido à incorporação pelas mesmas de outros elementos provindos dos contatos com o exterior, notadamente do islamismo, e mais tarde do cristianismo.

Assim, segundo Tedanga (2005), para caracterizar as práticas religiosas na África tradicional os estudiosos das religiões e antropólogos do mundo moderno fabricaram todo tipo de denominação reducionista e ideológica das crenças africanas. Nesse sentido, encontramos na literatura conceitos como animismo, fetichismo, ancestralismo, magismo e totemismo, entre outros. Independentemente do termo ou conceito que se use, percebe-se a carga reducionista. No entanto, se considerarmos que fetichismo, animismo ou totemismo são três fenômenos da vida humana, é normal que a religião africana tenha interesse por eles, embora seja abusivo reduzir o conjunto de suas crenças focando somente esses elementos.



Importa dizer que as religiões da África são tão diversas quanto as línguas e etnias do continente, já que cada uma delas tem seus deuses, gênios ou ancestrais cuja adoração, ritos, oração ou sacrifício segue uma lógica única. Por isso, segundo Dieng (2007), à primeira vista tudo parece ser diferente entre as religiões dos dogons, dos malis e dos zulus da África do Sul, ou entre os pangos e os iorubás da Nigéria. Porém, um olhar mais aproximado pode diagnosticar algumas características fundamentais, que são idênticas entre esses cultos essencialmente destinados a ligar os homens ao mundo invisível, seja na forma natural ou sobrenatural. Na África, os povos têm mais ou menos a mesma concepção sobre seus ancestrais, sobre os gênios, seus modos de encarnação ou de reencarnação, bem como o entendimento sobre os vivos. Portanto, pode-se encontrar no totemismo e no fetichismo uma relação sutil entre o homem, o animal e a natureza.

Fica evidente que, do ponto de vista religioso, o continente africano apresenta uma rica variedade que reflete o importante papel das crenças nas organizações políticas e socioeconômicas. Isso mostra a importância da religião, da divindade ou do sagrado na vida dos africanos, bem mesmo antes da chegada das chamadas religiões reveladas (cristianismo e islamismo). [...]

Desse modo, pode-se afirmar que o monoteísmo africano é anterior ao islamismo, pois as religiões e o comportamento da maioria dos povos do continente se baseiam na moral e no respeito à vida em conjunto harmonioso, tanto entre os homens quanto entre eles e a natureza. Apesar da grande presença do islamismo na África Subsaariana nos séculos que antecederam à chegada do cristianismo e da colonização, importa sublinhar que a religião que dominava nos principais Estados ou impérios como Songhai, Mali e Benin, por exemplo, é aquela ligada às crenças ancestrais, as quais acreditavam em um ser supremo, do qual procedem todas as pessoas. Consequentemente, todos os indivíduos são valiosos e dignos de respeito. Ou seja, a cultura tradicional africana põe especial ênfase nas virtudes como a tolerância, a hospitalidade, a paciência e todos os valores que asseguram a harmonia social. Daí o rápido crescimento do cristianismo e do islã no continente, pois, segundo Dieng (2007), a rápida expansão dessas religiões na África se deve, em grande parte, ao sentido religioso, ao respeito e a tolerância inerente à cultura tradicional.

Nesse sentido, conclui-se que, do ponto de vista cultural, principalmente no que diz respeito à religião, a África tem sido uma grande precursora dos valores humanos incorporados pelas religiões reveladas (cristianismo e islamismo), apesar do discurso que anunciava a tarefa de "civilizar" os povos africanos a partir de seus valores. [...]

De qualquer modo, a religião dominante na África pré-colonial foi o animismo ou religião tradicional, apesar da islamização do continente a partir do século IX. O animismo consiste na crença em um único criador do universo que colocou um espírito em todas as coisas, sejam elas animadas ou não. Igualmente são cultuados os ancestrais, e se dá um valor particular à magia, notadamente a que cercam os ferreiros. Desse modo, percebe-se que a entrada e a expansão do islamismo se deram, principalmente, devido a essa coincidência de culto ao ser superior único, mas também por não ser uma religião de elite e aceitar sua expansão sem a erradicação do animismo (SYLLA, 1994). Nessa lógica, os seres são hierarquizados. Até o ser supremo, que pode ser confundido com o ancestral, nunca é uma abstração, mas sim energia viva, forças submetidas aos princípios de interação e que, como as forças físicas não mecânicas, podem se somar, se destruir ou se neutralizar (WADE, 2005).

Portanto, mesmo com a entrada das religiões monoteístas (islamismo e cristianismo), vale ressaltar que a religião tradicional continuou sendo a principal crença, pois nesse campo, na maioria das vezes, a aceitação e a adoção das religiões estrangeiras eram vistas pelos africanos como uma forma de receptividade e de acesso ao outro para fins comerciais. [...]

Grosso modo, a cultura e a religião são dois elementos fundamentais para o entendimento da sociedade tradicional africana [...]. Porém, continuam pouco conhecidas e, principalmente, encaradas a partir do etnocentrismo ocidental, pois sempre foi importante justificar a presença estrangeira no continente africano. Mas independentemente dos aspectos negativos dessa presença, importa dizer que as crenças tiveram uma influência profunda sobre a organização social africana, centrada no núcleo tradicional, baseada no clã dirigido pelos anciãos.

VISENTINI, Paulo Fagundes et al. História da África e dos africanos. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 21-26.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Perfil e legado de D. João VI

D. João VI de Portugal, Jean-Baptiste Debret

D. João VI passou à história vitimado pela própria aparência e por uma série de características caricaturais. Cabeça enorme, corpo roliço, pernas curtas, mãos e pés minúsculos, rosto avermelhado surgindo de um conflito de volteios e papadas, o rei não era apenas feio ("fealdade que se reputa das maiores ocorridas em pessoas de casa real de qualquer país da Europa", disse um cronista), como também um glutão inveterado que ignorava as mais primárias normas de higiene e asseio. É fato histórico que ele enfiava frangos assados inteiros nos bolsos de casacas engorduradas, sujas e puídas que se recusava a trocar. Também é verdade que odiava o contato com a água. "Não havia memória na Casa real, em Lisboa ou no Rio de Janeiro, de D. João ter tomado banho de corpo inteiro", escreveu, em 1927, o historiador Tobias Barreto.


Retrato de D. João VI. José Leandro de Carvalho


Não é de estranhar, portanto, que o rei tivesse erupções e doenças de pele constantes e coceiras permanentes. "Coçava-se por detrás e por diante, sendo que com essa mão dava assim mesmo a beijar", anotou um cortesão. Não bastasse, D. João VI ainda era traído publicamente pela mulher, D. Carlota Joaquina, e, dizia-se, mantinha um caso com seu camareiro.


Cerimônia do beija-mão na corte de D. João VI. Artista e militar inglês conhecido apenas pelas iniciais APDG

Nascido em 13 de maio de 1767, D. João VI era o segundo filho de D. Pedro III e D. Maria I. Não fora criado para ser rei, nem o pretendia. Mas, em 1788, a varíola matou seu irmão mais velho, D. José, e D. João tornou-se o primeiro na linha sucessória. D. Pedro III (tio e marido de D. Maria I) morreu em 1786, de embolia cerebral. Em 1792, D. Maria enlouqueceu e D. João assumiu o governo, mas só aceitou o cargo de regente em 1799, quando sua mãe foi declarada incurável. No trono, revelou-se tímido, distante, fleumático, bucólico, calado e indeciso.

Detestado por muitos de seus biógrafos, atacado por vários de seus contemporâneos - não só estadistas brasileiros, mas políticos portugueses -, D. João VI surge, em muitos livros, como um monarca preguiçoso e bobalhão, vítima de um bucolismo inconsequente. Afinal, reunia-se regular e longamente com seus ministros e conselheiros, sopesava cuidadosamente todas as questões e, sempre que possível não tomava decisão alguma. Mas o que era visto como uma covardia talvez devesse ser interpretado como astúcia. Espremido entre um continente dominado pelo Exército francês e um oceano controlado pela marinha britânica, D. João adotou o estilo mais apropriado para Portugal numa época em que qualquer ação ousada poderia levar o reino à ruína. Tornou-se um radical de cautela.


Retrato de D. João VI. Simplício Rodrigues de Sá

De qualquer forma, o D. João imundo e glutão que chegou ao Brasil revelou-se um governante com frequentes rasgos de bondade e muitas ações práticas. Além de abrir os portos, declarar o Brasil um reino unido a Portugal e remodelar o Rio de Janeiro, ele permitiu a instalação de indústrias e aparelhou as Forças Armadas, criando a Academia da Marinha, a Academia Militar e uma fábrica de pólvora (assim como outras obras, essa foi paga pelos traficantes de escravos do Rio). Construiu o Jardim Botânico, um observatório astronômico e um museu mineralógico. Fez o teatro, a biblioteca pública e a tipografia real, cuja primeira publicação foi A riqueza das nações, de Adam Smith.

No Brasil, D. João não precisava ser pouco mais que um súdito da Inglaterra e só partiu porque era inevitável. Ao fazê-lo, disse ao filho Pedro: "Se o Brasil se separar, antes seja pra ti, que me terás de respeitar, do que para algum desses aventureiros". Mais do que um conselho, foi uma profecia.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 144-145.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

D. Carlota Joaquina

A família de Carlos IV, Francisco de Goya

Na madrugada de 25 de abril de 1821, antes de o dia raiar, a rainha Carlota Joaquina – acompanhada de seu marido, o rei D. João VI, do filho D. Miguel, das seis princesas e de quatro mil cortesãos (e de boa parte do Tesouro Real, mais 50 milhões de cruzados sacados sorrateiramente do Banco do Brasil) – embarcou na nau que, enfim, a levaria junto com a sua corte de volta à Europa. Reza a lenda que, ao pôr os pés no navio, D. Carlota teria batido um sapato contra o outro e dito: “Nem nos calçados quero como lembrança a terra do maldito Brasil”.


Carlota Joaquina de Bourbon, imperatriz do Brasil, rainha de Portugal e Algarves. Manuel Antônio de Castro

A rainha de fato odiava o Brasil – e os quase cinco mil dias que nele viveu não foram suficientes para fazê-la mudar de opinião. Mais do que ao Brasil, D. Carlota só odiava uma coisa: o marido D. João, com o qual estava casada havia 36 anos, mas com quem não convivia há vinte. Ainda assim, tivera nove filhos. Prole tão numerosa num casal que mal podia se olhar gerara suspeitas: dizia-se que pelo menos cinco dos nove rebentos não seriam fruto de D. João. De fato, talvez não fossem, embora nem o rei nem a rainha dessem muita importância para o fato. Além desse desinteresse mútuo, uma outra coisa D. João e D. Carlota tinham em comum: eram ambos feíssimos.


D. João VI e D. Carlota Joaquina, reis de Portugal. Manuel Dias de Oliveira

D. Carlota Joaquina de Bourbon, infanta de Espanha, rainha de Portugal e imperatriz honorária do Brasil, nasceu nos arredores de Madri em 22 de abril de 1775. Aos dez anos de idade, casou-se por procuração com D. João. Realizada por uma questão de Estado, a união foi vexatória desde o início: num dos primeiros encontros, a noiva mordeu selvagemente a orelha do noivo e jogou-lhe um castiçal no rosto. O casal só iniciou sua vida conjugal cinco anos depois do casamento, logo após a primeira menstruação da princesa. A chegada dos filhos não mudou em nada o relacionamento entre ambos. Na prática se comportavam como monarcas inimigos.


Retrato de Carlota Joaquina de Bourbon. Artista desconhecido

De certa forma, D. Carlota e D. João eram mesmo inimigos. Fiel às origens espanholas, a rainha conspirou com freqüência contra o trono português. Por isso, os historiadores luso-brasileiros gostam de descrevê-la como uma bruxa: “A mulher era quase horrenda, ossuda, com uma espádua acentuadamente mais alta do que a outra, uns olhos miúdos, a pele grossa que as marcas de bexiga ainda faziam mais áspera, o nariz avermelhado. E pequena, quase anã, claudicante... uma alma ardente, ambiciosa, inquieta, sulcada de paixões, sem escrúpulos, com os impulsos do sexo alvoroçados”, escreveu Octávio Tarquínio de Souza, em sua obra clássica, História dos fundadores do Império do Brasil.

Uma das mais cruéis descrições de D. Carlota, no entanto, foi feita pelo genial escritor inglês William Beckford, que a conheceu e deplorava “suas incessantes intrigas de todos os matizes; seus caprichos extravagantes, seus atos desumanos de crueldade”.


Retrato eqüestre de Carlota Joaquina de Espanha. Domingos Sequeira

A verdade é que, feia ou não, D. Carlota lutava pelos interesses da Espanha – em especial quando estes a favoreciam. Quando Napoleão rompeu com Madri e entronou o próprio irmão no lugar de Carlos IV, pai de D. Carlota, ela quis ser rainha do Prata. D. João bloqueou os planos. D. Carlota, então, fixou-se na casa de praia de Botafogo, onde se banhava nua. Continuou colecionando amantes (mandando matar a mulher de um deles) e começou a fumar a erva diamba (hoje chamada maconha). Amazona audaz, montava como homem. Cantava e dançava o flamenco. Não foi boa mãe, especialmente depois que seu primogênito, Antônio, morreu aos 6 anos. Seu outro favorito era D. Miguel, tido como filho do marquês de Marialva. D. Carlota nunca deu atenção para o príncipe herdeiro, D. Pedro. Ao sair pelas ruas do Rio, era precedida por um séquito de seguranças que forçavam todos os súditos a se ajoelhar. D. Carlota Joaquina morreu em Lisboa, aos 54 anos, sem jamais ter retornado à sua amada Espanha.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2005. p. 143-144.

domingo, 21 de julho de 2013

Dissidentes na Idade Média: valdenses e cátaros

A liberdade de religião é um conceito moderno, totalmente estranho à visão medieval. Considerando-se possuidora e guardiã da verdade divina, a Igreja julgava-se obrigada a expurgar a cristandade da heresia - crenças que questionavam a ortodoxia cristã. Para a Igreja, os hereges eram culpados de traição contra Deus e portadores de uma infecção moral. A heresia era obra de Satã; atraídas por falsas ideias, as pessoas podiam abandonar a verdadeira fé e negar a si mesmas a salvação. Aos olhos da Igreja, os hereges não só obstruíam a salvação individual, como também enfraqueciam os alicerces da sociedade.

Para impor obediência, a Igreja usava seu poder de excomunhão. A pessoa excomungada não podia receber os sacramentos ou frequentar os serviços religiosos - punição terrível, numa época de fé. Ao tratar com um governante recalcitrante, a Igreja poderia declarar o interdito sobre seu território, o que na prática negava aos súditos desse governante os sacramentos (embora se pudessem fazer exceções). A Igreja tinha esperança de que a pressão exercida por uma população irritada obrigasse o governante ofensor a mudar de comportamento.

A Igreja também julgava os casos de heresia. Antes do século XIII os bispos locais eram responsáveis pela descoberta e julgamento dos hereges. Em 1233, o papado criou a Inquisição, tribunal especialmente destinado a combater a heresia. Os acusados eram considerados culpados até que fosse provada sua inocência; não tinham direito de saber o nome de seus acusadores nem de ter defesa legal. Para arrancar-lhes uma confissão, era permitida a tortura. Se persistissem em suas crenças podiam ser entregues às autoridades civis para serem queimados na fogueira.

* Os valdenses. Na Idade Média, a dissensão tinha, com frequência, um caráter reformista. Inspirados nos Evangelhos, os reformadores criticavam a Igreja por sua riqueza e participação nas questões mundanas; queriam um retorno à vida mais simples e pura de Jesus e seus apóstolos.

Em seu zelo de copiar a pureza moral e a pobreza material dos primeiros seguidores de Jesus, esses dissidentes reformadores atacaram a autoridade eclesiástica. Os valdenses, seguidores de Pedro, rico comerciante de Lyon, constituíam um desses movimentos. Na década de 1170, Pedro distribuiu suas propriedades aos pobres e atraiu partidários de ambos os sexos. Eles também se comprometiam a ser pobres e a pregar o Evangelho no vernáculo, e não no latim da Igreja, que não era entendido por muitos cristãos.

Os valdenses consideravam-se verdadeiros cristãos, fiéis ao espírito da Igreja apostólica. Irritada com os ataques dos valdenses à imoralidade do clero e pelo fato de que esses leigos pregavam o Evangelho sem a permissão das autoridades eclesiásticas, a Igreja condenou o movimento como herege. Apesar da perseguição, os valdenses sobreviveram como grupo no norte da Itália.


O papa Inocêncio III excomunga os albigenses (esquerda). Massacre contra os albigenses pelos cruzados (direita). Crônicas de Saint-Denis, século XIV

* Os cátaros ou albigenses. O catarismo foi a heresia mais radical enfrentada pela Igreja medieval. Essa crença representava uma curiosa mistura de movimentos religiosos orientais que haviam competido com o cristianismo nos dias do Império Romano. Os postulados dos cátaros diferiam consideravelmente dos ensinamentos da Igreja. os cátaros acreditavam num conflito eterno entre as forças do deus do bem e as do deus mal. Como este, a quem identificavam com o Deus do Velho Testamento, criara o mundo, a morada terrena era má. A alma espiritual por natureza, era boa mas estava presa à carne iníqua.

Os cátaros ensinavam que, como a carne é um mal, Cristo não teria tomado forma humana e, portanto, não poderia ter sofrido na cruz, nem ter ressuscitado. Nem poderia Deus ter nascido da carne má da Virgem. De acordo com o catarismo, Jesus não era Deus, mas um anjo. Para escravizar o homem, o deus mau criou a Igreja, que demonstrava sua maldade buscando poder e riqueza. Repudiando a Igreja, os cátaros organizaram sua própria hierarquia eclesiástica.


Cátaros sendo expulsos de Carcassone em 1229

O centro da heresia catarista era o sul da França, onde já existia uma forte tradição de protesto contra o relaxamento moral e o materialismo do clero. Como os cátaros não se sujeitaram à persuasão pacífica, Inocêncio III pediu a reis e senhores o seu extermínio pela espada. Tendo durado de 1208 a 1229, a guerra contra o catarismo foi marcada pela brutalidade e pelo fanatismo. Sob o sucessor de Inocêncio, os inquisidores dominicanos e franciscanos concluíram a tarefa de dizimá-los.

PERRY, Marvin. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 178-179.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

O caudilhismo

O movimento de emancipação deu autonomia política aos países da América Latina. Mas o rompimento dos laços políticos não significou a ruptura dos vínculos econômicos e culturais (ideológicos) da Época Colonial. A Conquista e a Colonização haviam estruturado a economia e a sociedade coloniais; a herança colonial impôs também seu peso no processo de formação dos novos Estados americanos.

No plano econômico, a herança colonial persistiu na manutenção da economia produtora de gêneros alimentícios e matérias-primas para o mercado externo, segundo as diretrizes da divisão internacional do trabalho no decorrer do período compreendido entre as Guerras Napoleônicas e a Primeira Guerra Mundial. Essa divisão dos mercados mundiais entre os países capitalistas avançados (Inglaterra, França, Estados Unidos) implicava a formação de economias periféricas ou dependentes nos países da América Latina, da África e da Ásia. Na América, criaram-se verdadeiros enclaves capitalistas, estimulando-se a agricultura de exportação e a exploração de recursos minerais, ativo comércio de exportação e importação, criação de bancos, companhias de seguros, redes ferroviárias etc. Ao mesmo tempo, vastas áreas permaneciam submetidas a uma economia de subsistência e a um estado de empobrecimento crônico. Essa desigualdade de desenvolvimento econômico era uma estratégia necessária do capitalismo internacional, ao qual não interessava que os países latino-americanos tivessem condições de um desenvolvimento capitalista auto-sustentado. Assim, apenas alguns setores econômicos foram modernizados sob o influxo do capital estrangeiro, traduzido em aplicação de investimentos maciços, aquisição de propriedades territoriais, exploração de minas, empréstimos com juros extorsivos etc. 

Nesse contexto, não havia condições históricas para o surgimento de uma burguesia nacional nos Estados latino-americanos, dado o seu comprometimento com o capital internacional. E os poucos grupos capitalistas então surgidos não possuíam, evidentemente, condições concretas para impor a sua hegemonia política sobre a sociedade como um todo. A implantação do capitalismo na América Latina no século XIX não trouxe a unificação, pois não havia praticamente mercado interno ou nacional. A pequena burguesia era fraca, inexpressiva ou até inexistente. A massa da população, majoritariamente camponesa e analfabeta, vivia sob um sistema de relações pré-capitalistas, uma espécie de semi-servidão, e não constituía mercado consumidor apreciável para os artigos industrializados. As classes dominantes eram formadas pelas oligarquias agroexportadoras - e pela burguesia mercantil - esta localizada em centros bem definidos, como as cidades portuárias (Montevidéu, Buenos Aires, Valparaíso).

"Os comerciantes de produtos ultramarinos pensam em termos de mercado nacional, têm a opinião de que tudo aquilo é obstáculo para o livre trânsito das mercadorias deve ser eliminado. Estarão interessados em estradas de ferro, portos, bancos, telégrafos, companhias de seguros, de que não cabe inferir uma grande paixão pelas mudanças sociais. A ambição deles se limita a imprimir certos traços de modernização sobre o existente. Como estão estreitamente vinculados aos grandes produtores para o mercado externo [...] sentem-se pouco propensos a modificar as condições em que se realiza esta produção. Não lhes repugna o recrutamento forçado de mão-de-obra, e a fragmentação territorial. Preferem as grandes propriedades fundiárias. Os proprietários de terras são sua maior clientela, a de consumo suntuário; nem por isso desprezam a multidão de pessoas humildes que adquire roupas e tecidos de algodão importados da Inglaterra, ou chaleiras para servir água e bombas para sugar o mate." (POMER, L. "Sobre a Formação dos Estados Nacionais na América Hispano-Índia". Caderno CEDEC nº 3. Brasiliense: São Paulo, 1979. p. 25.)

Do ponto de vista ideológico, grandes correntes de pensamento do século XIX, como o Liberalismo e o Positivismo, tiveram sua parcela de influência na Hispano-América. Entretanto, a ausência de uma burguesia estruturada como classe social dominante anulou as conquistas que a doutrina liberal desencadeara na Europa e nos Estados Unidos. As oligarquias agrárias intitulavam-se liberais apenas como forma de tomar o poder. Isso explica por que, muitas vezes, elementos liberais e federalistas - expressão de interesses regionais dominantes - as conquistar o poder político tornavam-se tão ou mais centralistas que os setores conservadores. A unificação política, que não fora alcançada com o tipo de capitalismo implantado de fora para dentro, só seria alcançada - e o foi por diversas vezes - com a força das armas. A coexistência estruturada entre setores capitalistas da economia e setores de economia rural tradicional (minifúndios e latifúndios improdutivos) implicou uma dicotomia ainda presente em muitas sociedades latino-americanas.

"Depois da Independência, a dominação pela Inglaterra capitalista não desenvolveu o modo capitalista de produção. Limitou-se a organizar - seguindo a linha colonial - produtos mercantis para exportação; persistiu na destruição de produções pré-coloniais e garantindo ou simplesmente criando setores regidos por modos de produção pré-capitalistas. Não obstante, o conjunto das sociedades hispano-índias foi integrado ao sistema capitalista mundial, está articulado e subordinado a seu modo de produção." (POMER, L. op. cit. p. 10.)

Sob a vigência dessas condições sócio-econômicas, abriu-se o caminho ao poder político pessoal dos líderes rurais conhecidos como caudilhos.

Podemos definir o caudilhismo como um regime autoritário, aparentemente acima das classes sociais, dominado por um líder rural (militar ou civil) e por uma burocracia que desfrutava de uma independência relativa, o que lhe permitia contar com a classe dominante. Seu objetivo era a conservação da ordem e da hierarquia social. Representava um estado de transição entre o poder metropolitano e o poder nacional, um precário equilíbrio de forças entre as classes sociais. Estas acumulavam forças até que uma delas assumia a hegemonia política.

Distinguimos dois tipos de caudilhismo: o progressista (liberal) e o conservador. O primeiro apoiava-se no movimento popular, ao qual fazia algumas concessões, garantindo o domínio das novas classes proprietárias sobre as oligarquias tradicionais e propiciando uma modernização econômica em proveito das elites e do capital estrangeiro. O de tipo conservador, apoiado nos setores tradicionais (Igreja, Exército) reprimia qualquer avanço social das massas, tendo como objetivo a manutenção das estruturas econômicas tradicionais. Na América, e em particular no México e na Argentina, alternaram-se essas formas de caudilhismo ao longo do século XIX.

Na ausência da dominação absoluta de uma classe social homogênea sobre toda a Nação, indivíduos ligados a interesses regionais ou locais ganhavam proeminência política e, contando com apoio popular e de forças militares - e muitas vezes com auxílio estrangeiro -, impunham o seu domínio sobre a sociedade. Em uma descrição algo romântica - bem de acordo com o pensamento dominantes durante a maior parte do século XIX -, podemos dizer que "o caudilho possuía o dom natural de escravizar a vontade de outros homens e de arrastá-los consigo - à rebelião, à batalha ou mesmo sobre um abismo. Ganhava a afeição de grandes massas e as convertia no seu povo. Detém a confiança desse povo; torna-se o símbolo do seu prestígio, encarna a personalidade da Nação [...] Agindo em nome do povo e afirmando reunir os interesses deste, justificava a sua ditadura". (DOZER, D. M. América Latina - Uma perspectiva histórica. Globo/EDUSP: Porto Alegre, 1966. p. 245)

Entretanto, a presença eventual das massas populares não modificava o caráter essencial do caudilhismo, que, na realidade, pouco tinha a ver com os interesses do povo. Este apoiava os líderes carismáticos, devido à falta de organizações populares autênticas; enfim, as massas despolitizadas apoiariam todo aquele que lhes acenasse com melhores condições de vida ou reforma agrária. Caudilhos ilustres foram os líderes da Independência, como Bolívar e Sucre; Santa Ana, o poder por trás do poder, no México; Benito Juárez e Porfírio Díaz, também no México; o argentino Rosas e o reformador José Artigas, no Uruguai.


O porfiriato, Juan O' Gorman

O caudilhismo opunha-se aos princípios liberais do século XIX, na medida em que era fortemente centralista e intervencionista, discriminava o povo das decisões políticas e pairava acima das instituições jurídicas e políticas. Não criou condições para que as massas populares se organizassem independentemente. O caudilhismo foi o instrumento político que serviu para perpetuação do domínio das oligarquias agrárias. Até quando?

AQUINO, Rubim Santos Leão de et al. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 200-202.

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Bruegel: pintor de camponeses

O pintor flamengo Pieter Bruegel (c. 1525-69) foi influenciado pelo pessimismo e pela abordagem satírica de Bosch. Bruegel adotou o tema da vida campestre, cenas de pessoas humildes no trabalho, em festas e danças, em que sempre aparece o aspecto satírico. "Casamento no Campo", por exemplo, mostra os convidados comendo e bebendo em gulosa concentração. Além de elevar a pintura do gênero (cenas da vida cotidiana) à estatura de obra-de-arte, Bruegel ilustrou provérbios, como "Um Cego Conduzindo Outro", com expressões faciais horrendas, bestiais, típicas das cenas bíblicas de Bosch.

Caçadores na Neve, Pieter Bruegel


O mais famoso quadro de Bruegel, "Caçadores na Neve", é parte de uma série que apresenta as diferentes atividades humanas conforme os meses do ano. Sua preocupação com a vida campestre está presente nos caçadores exaustos voltando para casa, em silhueta contra a neve. Bruegel usou aqui a perspectiva climática - da nitidez no primeiro plano às formas difusas no fundo - para dar profundidade à pintura.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro. 2002. p. 41.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Bosch: o jardim do grotesco

Não é difícil entender por que os surrealistas do século XX elegeram Hieronymus Bosch (c. 1450-1516) seu santo padroeiro. Os artistas modernos exploravam o imaginário irracional dos sonhos, mas não chegaram a superar a bizarra imaginação de Bosch.

A pintura moralista de Bosch sugere criativas formas de tortura aplicadas como punição aos pecadores. Imagens grotescas - monstros híbridos, meio humanos, meio animais - habitam suas estranhas, perturbadoras paisagens. Embora os críticos modernos tenham sido incapazes de decifrar um sentido subjacente, parece claro que Bosch acreditava que a humanidade, seduzida e corrompida pelo mal, deveria sofrer consequências catastróficas.

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 41.

O jardim das delícias terrestres: jardim do Éden. (Painel esquerdo), Hieronymus Bosch

O jardim das delícias terrestres (detalhe do painel esquerdo)


O jardim das delícias terrestres: paraíso. (Painel central), Hieronymus Bosch

O jardim das delícias terrestres (detalhe do painel central)


O jardim das delícias terrestres: inferno. (Painel direito), Hieronymus Bosch

O jardim das delícias terrestres (detalhe do painel direito)

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Minos: lenda e realidade

Essa grandeza, o desabrochar durante séculos de uma civilização excepcional por sua arte e qualidade de vida, a prosperidade da ilha evocada por Homero - "Bela, rica, bem-irrigada, ela possui homens em número infinito e noventa cidades" -, o poder de sua marinha, que põe termo às piratarias no mar Egeu, a difusão e o prestígio de seus produtos, tudo isso está na origem da lenda de Minos. Filho de Zeus Astério, simbolizado por um touro, e da bela Europa, Minos foi o sábio soberano a quem seu pai ditava, numa gruta do monte Iouktas, leis admiráveis. Outras personalidades lendárias o cercam, a maioria com um significado religioso: Pasifaeia, sua esposa, o Minotauro, Ariadne e Fedra, seus filhos, Radamanto, seu irmão, que se torna juiz dos Infernos com Éaco e o próprio Minos. Culto, amante das coisas belas, Minos atraía para perto e si artistas, como o universal Dédalo, autor do Labirinto e da vaca de bronze onde Pasifaeia, loucamente apaixonada por um touro divino, concebeu o monstruoso Minotauro, Dédalo cuja evasão trágica com o filho Ícaro arrastou Minos, em sua furiosa perseguição, até a Sicília, onde morreu depois de ter fundado um reino.

Minotauro. Cerâmica grega. Ca. 515 a.C.
 Foto: Marie-Lan Nguyen


Lenda, é verdade, mas baseada parcialmente em fatos reais. Havia, ainda na época clássica, cidades e feitorias chamadas Minoa em quase toda a costa do Mediterrâneo oriental. O que as escavações de Cnossos e dos outros sítios cretenses nos informam sobre o rei-sacerdote, sobre o importante papel do touro na religião e na simbólica, sobre a planta complicada, a rede de salas e corredores do palácio (donde o mito do Labirinto) corresponde a muitos traços dessa lenda. As principais ressalvas a fazer dizem respeito à cronologia: os atenienses consideravam Minos contemporâneo de Teseu (século XIII), Heródoto remonta-o ao século XIV, mas é provável que os antigos tenham simbolizado num personagem único toda a série de soberanos que fizeram no segundo milênio a grandeza de Creta e que tinham provavelmente o nome de Minos, seja como título, seja como nome dinástico, conservado de pai para filho.

GABRIEL-LEROUX, J. As primeiras civilizações do Mediterrâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 39-40.

sábado, 13 de julho de 2013

Guerreiros: A "honra heroica" e a "honra comum"


Combate de Ajax e Ulisses pelas armas de Aquiles. Cerâmica. Artista desconhecido. Ca. 500 a.C. 

Num artigo sobre o ideal guerreiro e aristocrático da antiga Grécia, o historiador francês Pierre Vernant concentrou a sua atenção no código de honra. Fazendo a distinção entre a “honra comum” e a “honra heróica”, ele analisou na Ilíada o destino, ao mesmo tempo “exemplar e ambíguo”, de Aquiles.


A honra heróica que orienta Aquiles, ou da qual ele é encarnação, consiste na busca de uma existência extraordinária que transcende a vida comum, numa perspectiva muito próxima ao ideal guerreiro das confrarias indígenas relatadas por Clastres. Vernant caracterizou a honra heróica do seguinte modo:

“Não são [...] nem as vantagens materiais nem o primado da condição nem as marcas de honra que têm o poder de levar um homem a se empenhar a sua psuché em duelos sem trégua onde se conquista a glória. Se apenas se tratasse de ganhar os bens que se gozam em vida e que os abandonam com ela, não se encontraria um único guerreiro, segundo Sarpedon, que não se escondesse no momento em que fosse preciso arriscar-se a tudo perder no jogo. A verdadeira razão do feito heróico reside alhures, não ressalta de cálculos utilitários nem da necessidade de prestígio social; poder-se-ia dizer que ela é de ordem metafísica; ela é própria da condição humana, condição que os deuses não fizeram apenas mortal mas também submetida, como toda a criatura deste mundo, após a floração e plenitude da juventude, ao declínio das forças e à decrepitude da idade. O feito heróico enraiza-se na vontade de escapar ao envelhecimento e à morte, por “inevitáveis” que sejam, de a ambos ultrapassar. Ultrapassa-se a morte acolhendo-a em vez de a sofrer, tornando-a a aposta constante de uma vida que toma, assim, valor exemplar e que os homens celebrarão como modelo de ‘glória imorredoura’”.

O inexorável ciclo biológico que aprisiona todos os seres vivos às mesmas leis do envelhecimento e da morte, nivela homens e animais, reduzindo-os à condição de objetos das forças naturais. Superar a morte “acolhendo-a em vez de a sofrer” significa, pois, não abdicar da condição de sujeito, no instante mesmo em que toda vontade se anula e, com ela, o próprio sujeito. Essa audaciosa e metafísica luta contra a morte consiste em sua convocação, pelo guerreiro, no momento mais improvável de sua vida: no auge de sua juventude.

A solução grega para esse ideal de perfeição absoluta encontra-se na kalos thánatos, na “bela morte”: na glória imperecível da vida breve, na morte em combate no vigor da juventude.

A honra heróica é, portanto, a exacerbação do ideal guerreiro, que acaba fazendo da guerra uma finalidade em si mesma, uma vez que se converte num valor absoluto da vida.

Ao lado da honra heróica existe a honra comum, que opera com bastante realismo a dicotomia guerreiros e não guerreiros. Nas sociedades sem classes, como as indígenas, a separação entre guerreiros e não guerreiros assumia a forma de oposição entre o masculino e o feminino, obscurecendo a oposição entre guerra e trabalho. Ao contrário, esta última ganha muita nitidez nas sociedades de classes, pois a aristocracia guerreira encontra-se desligada da produção, ao passo que a produção e o trabalho árduo deixam de ser uma função propriamente feminina para se tornar condição de existência de homens não guerreiros, isto é, de “trabalhadores”. Essa sujeição ao trabalho, de homens empobrecidos, dá origem então aos humildes. Assim, nas sociedades de classes, a oposição entre guerreiros e não guerreiros deixa de se manifestar na forma de oposição entre masculino e feminino para ganhar a forma de oposição entre guerreiros e trabalhadores.

Nos quadros de uma sociedade de classes a “honra comum”, ao contrário da “honra heroica”, tem um caráter bastante utilitário, como observou o historiador francês Jean Delumeau:

“Da antiguidade até uma data recente, mas sobretudo no tempo da Renascença, o discurso literário apoiado pela iconografia [...] exaltou a valentia – individual – dos heróis que dirigem a sociedade. Era necessário que assim fosse, ou pelo menos que fossem apresentados sob esse ângulo, a fim de justificar a seus próprios olhos e aos do povo o poder do qual estavam revestidos”.

Como se pode notar, a honra comum se caracteriza por ser um instrumento de poder, em contraste com o mundo dos humildes. O heroísmo e os feitos heróicos tinha por objetivo justificar a dominação de classes. Nas sociedades indígenas [...] as mulheres eram as frágeis e medrosas. Agora, frágeis e medrosos são os humildes, que, como as mulheres indígenas, estão submetidos ao trabalho e passaram a ser considerados indivíduos da classe baixa. Como disse o poeta romano, Virgílio: “O medo é a marca do baixo nascimento”.


Índio tapuira, Albert Eckhout

Fechando o parêntese, voltemos aos índios, para dizer que há um certo paralelismo entre o ideal da “bela morte” e a antropofagia. A “bela morte” supunha a integridade do corpo do guerreiro sem vida. Mas se impedia ao guerreiro essa honra, ultrajando o seu cadáver. Esquartejar o corpo e dá-lo aos animais ou deixá-lo entregue à putrefação e aos vermes era despojar o guerreiro da “bela morte”. O ritual antropofágico, por outros meios, chegava a resultados análogos. É verdade que o corpo do guerreiro depois da execução era esquartejado, mas devorado  pelos próprios inimigos, e não dado aos animais ou entregue à putrefação. Lembremos o horror de um índio, segundo o testemunho de Fernão Cardim, que prederia ser devorado no ritual antropofágico a ser “comido pelos bichos”. Assim, a dignidade do guerreiro foi cultuada tanto pelos gregos quanto pelos indígenas. Mas [...] os portugueses irão despojar os índios de sua “bela morte”, desfigurar o seu código de honra e, finalmente, destruir a sua identidade de guerreiros.

KOSHIBA, Luiz. O índio e a conquista portuguesa. São Paulo: Atual, 2012. p. 27-30.