"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Um olhar para o que passou [150 mil anos de história humana]


Cena do filme 2001 - Uma odisséia no espaço, dir. Stanley Kubrick

Em 1922, o escritor britânico H. G. Wells publicou seu best-seller A Short Story of the World. O livro terminava assim:

No momento, mal atingimos a aurora da grandeza humana. [...] Alguém pode duvidar que em pouco tempo nossa espécie irá mais do que concretizar nossas fantasias mais ousadas, de que ela irá alcançar unidade e paz, que viverá [...] em um mundo tornado mais esplêndido e bonito do que qualquer palácio ou jardim conhecido, avançando com ímpeto crescente em um círculo cada vez mais amplo de aventura e realização?

Wells escreveu essas palavras apenas quatro anos após o desfecho de uma terrível guerra. A lembrança da carnificina obscena nos campos de batalha do mundo continuava fresca na mente de seus leitores. De onde ele tirou tanto otimismo? Ele era um homem altamente inteligente e sensível, com dotes imaginativos excelentes. Compreendia de que coisas terríveis os seres humanos eram capazes em situações de desespero. O problema era o fato de ele ser um cidadão abastado vivendo em um dos países mais ricos do mundo; uma nação cujas classes governantes haviam experimentado uma melhoria ininterrupta em seu conforto e prosperidade pessoal, por mais de dois séculos.

Mesmo que fosse grande escritor e um visionário, Wells era um produto de seu tempo. Foi apenas nos cerca de cem anos precedentes que os cientistas começaram a juntar as peças da história da Terra e das origens da espécie humana. Haviam transcorrido apenas sessenta anos desde que Darwin publicara sua A origem das espécies e nem bem trinta de A descendência do homem, o primeiro estudo coerente das origens humanas. Darwin escolhera o título com cuidado, de modo que as pessoas pudessem entender que estava preocupado somente em elucidar a estrutura da árvore familiar da humanidade, e não em promover qualquer idéia de “progresso”. Na última edição de A origem das espécies que supervisionou pessoalmente, ele usara a palavra evolução pela primeira vez. Mas o que queria dizer com evolução era mudança contínua, não aperfeiçoamento contínuo.

Infelizmente, com Darwin fora do caminho, a porta ficou aberta para qualquer um que não o compreendia ou que quisesse invocar seu nome e obter apoio para as próprias teorias amalucadas. Num piscar de olhos, os países industrializados foram inundados com teorias de “evolução social”, um processo histórico pelo qual a sociedade humana supostamente avança em direção a modos de organização cada vez mais desenvolvidos. [...]

Wells não era cristão, mas nasceu em uma sociedade profundamente imbuída de filosofia cristã. Quando escreveu a História do mundo, sua visão das coisas, como a da maioria das pessoas em volta dele, ainda era moldada por hábitos de pensamento cristãos. O cristianismo é uma religião milenar que tem ensinado por quase 2 mil anos que a história tem um significado: é um processo linear com um fim predeterminado. Esse sentimento foi intensificado nos países cristãos mais prósperos com as revoluções científicas e industriais; mudanças que encorajaram os líderes de inclinação intelectual – por definição saídos da classe que mais se beneficiara com essas revoluções – a acreditar em um futuro dourado.

A crença na “marcha da civilização” deveria ter sido erradicada pelos horrores da Primeira Guerra Mundial, mas para muitas pessoas o efeito foi completamente oposto. O choque foi tão grande que o paciente entrou em negação. O conflito foi encarado em vez disso como um trágico interlúdio, um chamado ao despertar para um mundo que se tornara cada vez mais complacente. Era hora, pensava-se, para os homens e as mulheres de boa vontade criarem novos tipos de instituições internacionais, para assegurar que nada como aquilo pudesse acontecer outra vez. Como consolo pelo pesar com as perdas que haviam sofrido, uma racionalização foi criada: 1914-1918 fora “a guerra para acabar coma guerra”. Hoje ninguém mais engole essa. [...]

Em face da evidência dos últimos cem anos, deveríamos ter abandonado as fantasias sobre a marcha progressiva da civilização. Mas esse tipo de pensamento ainda permanece – apenas a língua muda. Alguns depositam sua fé em algo chamado “projeto iluminista”, uma coleção de idéias e experiências históricas frouxamente ligadas à qual intelectuais de alguns países ricos atribuem grande significado. Nessa variante da visão histórica da “marcha da civilização”, os modos de sociedade organizada desenvolvidos na Europa Ocidental e na América do Norte desde o século XVII são vistos como inerentemente superiores a quaisquer outros, e assim devem prevalecer, contanto apenas que seus praticantes não percam a coragem.

Essa visão linear da história como progressão rumo a um futuro dourado é compartilhada tanto pelo cristianismo como pelo marxismo, e também pelos “liberais iluministas”, alguns dos quais não são nem cristãos nem marxistas. Mas há outras maneiras de interpretar a experiência humana. Certas culturas, por exemplo os maias e a China pré-comunismo, viram a história como um processo “cíclico”, em que sequências de eventos similares continuam a ocorrer por longos períodos e no qual não existe destinação última.

Alguns chegaram até a sugerir que o modo como a sociedade vê a história pode em si mesmo afetar a maneira como a história se desenvolve. Uma sociedade que a vê como processo linear, particularmente se ela encara também uma crença no “progresso”, provavelmente tem maior probabilidade de buscar meios de fazer descobertas e melhorias. Infelizmente, tais sociedades também correm o perigo de acreditar que “a história está do nosso lado”. E é um curto passo que separa isso da crença de que “o fim justifica os meios”, uma atitude que levou a muitas das atrocidades que desfiguraram a história humana.

Mas a visão cíclica da história tem os próprios perigos. Ela pode evitar os horrores que são perpetrados por pessoas que carregam consigo a certeza de que a História, ou Deus, está do seu lado. Mas essa é uma crença que facilmente envereda para o fatalismo: uma aceitação de que o sofrimento (especialmente dos outros) é um fato inescapável da vida e que tentativas de influenciar o curso dos acontecimentos estão fadadas ao fracasso.

Olhando para trás [...] cabe questionar se a história apresenta um padrão, seja linear, cíclico ou qualquer outro. Talvez a história da raça humana seja mais bem compreendida como uma jornada por um terreno particularmente acidentado, no escuro, em um veículo não muito cuidado, com uma sucessão de motoristas de competência variada, em estados variados de embriaguez. Alguns dos passageiros têm uma idéia clara do destino a que se dirigem, mas nem todos possuem uma visão realista de suas chances de chegar nele pela rota que escolheram.

Qualquer estudante de história pode ficar pasmo ao constatar a quantidade de retrocessos sofridos pela espécie humana ao longo dos últimos 150 mil anos, e que criaturas frágeis somos, tanto individualmente como na condição de espécie. Em face das estupendas forças que a natureza tem sob seu comando, um pouco de humildade vem a calhar quando especulamos a cerca do futuro. [...]

[...]

Fomos agraciados com uma ilustração dramática do poder de novas doenças para espalhar o caos entre as populações do mundo com o surgimento do vírus da AIDS em meados do século XX. O HIV já causou uma das pandemias mais mortíferas da história humana, e sua carreira ainda está longe de terminar. [...]

[...]

Outra ameaça que paira sobre a Terra é a mudança climática provocada pela cultura humana. Há apenas uma geração, as evidências disso ainda eram tão incertas que se tornava perfeitamente respeitável, até sensato, questionar suas implicações e opor-se a propostas de mudanças em larga escala nos padrões de produção e consumo no mundo industrializado. Respeitável talvez ainda seja, mas sensato não é mais. [...]

[...]

Infelizmente, enfrentamos dois problemas quando tentamos lidar com questões urgentes como aquecimento global, poluição ou controle de armas. Um deles é tão antigo quanto a humanidade. O outro existe há algum tempo, mas só se tornou sério durante os últimos dois séculos.

Esse problema antiqüíssimo é o equilíbrio entre liberdade pessoal imediata e o bem da comunidade a longo prazo. A maioria de nós está preparada para aceitar algumas restrições em nossa liberdade de ação, reconhecendo que temos a ganhar com a restrição simultânea da liberdade de outras pessoas. Pouca gente perde as estribeiras se é impedida de carregar uma arma a bordo de um avião ou se passa por uma revista para assegurar que não esteja tentando fazê-lo. As pessoas ficam felizes de ter a própria liberdade de portar armas restringida em troca da segurança que usufruem resultante da liberdade de outras pessoas ser similarmente restringidas. [...]

[...]

[...] A história humana conheceu inúmeros triunfos e – para as pessoas de sorte – avanços imensos a riqueza, no bem-estar social e no controle sobre o meio ambiente. [...] Há menos de 100 mil anos, a espécie humana somava apenas cerca de 10 mil pessoas, vagando em pequenos bandos pela savana africana. Hoje existem mais de 6 bilhões de seres humanos, espalhados por cada canto do planeta. A despeito dessa população assombrosa, os mais afortunados – e isso corresponde a muita gente – estão razoavelmente bem alimentados e gozam de uma vida confortável quanto a moradia, saúde, alimentação e água potável, viagens e entretenimento com que nossos tataravós mal poderiam ter sonhado.

[...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 387-395.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Brasil: quando aqui era sem gente

Pedra Furada: ao pé deste deslumbrante bloco arenítico, que se ergue em meio à vastidão desolada da caatinga, no Piauí, foram encontrados os vestígios arqueológicos mais polêmicos da pré-história brasileira.

O chão que hoje é chamado de território nacional brasileiro é muito antigo, dos mais velhos do mundo. No sertão do Rio Grande do Norte, geólogos analisaram pedaços de rocha e concluíram que ela se formou há 3 bilhões e 400 milhões de anos - quando a crosta terrestre estava se solidificando!

[...] nem sempre existiram os continentes como a gente os conhece hoje. [...] o Brasil se encaixa no território africano atual, como se os dois fossem peças de um quebra-cabeças. E são mesmo! Essas peças - placas tectônicas [...] - estão em contínuo e lento movimento, em meio às águas dos oceanos, que às vezes as cobrem, e sobre o centro profundo da Terra, incandescente, que às vezes chega até nós com as lavas dos vulcões.

Pisamos na terra, cercados de água, sobre o fogo, envoltos em ar... E, volta e meia, tudo parece mudar: a terra treme, os mares avançam, agitados, os vulcões despejam seu caldo fervente, os furacões arrasam com sopro mortal. A natureza não é estática, nunca está pronta!

[...] Quando esses pedaços antiquíssimos de pedra vieram parar no nosso Nordeste? Faz tempo: há uns 80 ou 100 milhões de anos a África e a América do Sul [...] se separaram definitivamente, com o surgimento completo do Oceano Atlântico [...] entre elas. Separação demorada, como costumam ser as de quem foi totalmente ligado: há 250 milhões de anos tudo estava reunido num supercontinente chamado Pangea. Cem milhões de anos depois [...] o Pangea foi se desagregando, formando duas massas continentais. Uma delas era a Gonduana, que reunia a África, a Antártida, a Austrália, a Índia e a América do Sul. Lá estava, por exemplo, o imenso bloco de granito que, aqui, com a erosão do tempo, do vento, da maresia, gerou o Pão de Açúcar, símbolo do Rio de Janeiro! A outra massa de terra, que reunia as atuais América do Norte, Europa e Ásia, foi batizada como Laurásia pelos geólogos que estudam a crosta terrestre.

[...]

Continuamos em movimento: a Terra gira e os continentes andam. A América do Sul segue viagem rumo à Ásia, afastando-se da África 2 a 3 centímetros por ano... [...] caso esse deslocamento continue e a própria Ásia se mexa menos, um novo continente, reunindo a América do Sul e a Ásia, surgirá daqui a uns 30 milhões de anos. Com um promissor nome, sugerido pela jornalista Débora Lerrer na revista Super-interessante [...] de abril de 1999: AMÁSIA. Um futuro de amor e paz no planeta? Um retorno à grande unidade geológica que já tivemos? Uma denúncia natural da estupidez dos racismos, dos nacionalismos fanáticos, dos etnocentrismos?

A terra firme de hoje já foi mar. Já estivemos submersos, e novas inundações podem vir. A crosta terrestre continental, de superfície, já foi ou pode voltar a ser oceânica, isto é, assoalho do fundo das águas... Tudo é litosfera, calota rígida exterior da bolotinha sideral chamada Terra!

Pisando em chão seguro, desafogado, neste território que já teve 1/4 de sua superfície ocupada pelo mar, contente-se em recolher fósseis de peixes pelo interior do Brasil a dentro... Sinais do que fomos, em tempos imemoriais. Sinais históricos e arqueológicos preciosos, valioso patrimônio da nossa memória, que são desprezados pela desinformação ou apagados pela cobiça que tudo revolve e destrói. O Brasil ainda não descobriu adequadamente sua arqueologia, sua paleontologia, sua própria História... Mas é necessário!

Tempos imemoriais em que até as fendas "brasileiras" por onde saíam lavas vulcânicas começaram a se fechar: 10 milhões de anos atrás. [...]

[...] bichões hoje extintos andaram por nosso torrão, quando aqui não era Brasil, quando aqui era sem gente e nem era aqui. Quando aqui era Pangea, quando aqui era Gonduana. E enormes seres vivos, que chamamos genérica e erradamente de dinossauros, perambulavam pelo planeta.

Vida acontecida desde o período triássico, em que os dicinodontes, herbívoros atarracados, se espalhavam no mundo todo, e os rincossauros, répteis bicudos, assemelhados aos crocodilos, se adaptavam aos ambientes mais hostis. Período triássico no "Brasil" - Pangea dominado pelo maior predador: o terrível carnívoro prestosuchus chiniquensis, com seus 800 quilos distribuídos em 6 metros de comprimento! Que assustava até o "vovô" dos nossos dinossauros [...], o estauricossauro, bípede de dentes serrilhados e dois metros de comprimento por um e meio de altura.

Dinossauro propriamente dito - o termo foi criado em 1841 pelo paleontólogo inglês Richard Owen e significa "lagarto que mete medo" - só ocorre em larga escala no período jurássico, que coincide com o início da separação África-América do Sul! Há sinais fósseis de bichos ancestrais em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, em Bauru e Araraquara, no interior de São Paulo, em Uberaba, Minas Gerais, na bacia do Araripe, no Ceará. [...] Vieram à tona com o rebaixamento das águas, a transmigração dos continentes, a navegação das terras. [...]

Espetáculo mesmo foi dado no chamado período cretáceo, quando o Brasil não era Brasil mas aqui já era quase aqui - concluía-se nosso divórcio da África. Cerca de vinte espécies de dinossauros - das mil conhecidas até agora, em todo o mundo - mandavam no pedaço. Faz tempo: foi de 145 a 65 milhões de anos atrás. Olha só o timão da pesada:

* Espinossauro, imenso lagarto: 15 metros de comprimento por 5 de altura.

* Abelissauro, primo do Tiranossauro: 11 metros de comprimento por 5 de altura.

* Titanossauro, parente do Brotonssauro: 18 metros de comprimento por 4 de altura.

* Deinonicossauro, da família do Velociráptores: 4 metros de comprimento por 2 de altura.

* Iguanodonte, gigante com pés de pássaro: 9 metros de comprimento por 3 de altura.

* Celurossauro, assemelhado ao avestruz: 2 metros de comprimento por 1 de altura.

Nos céus do Brasil que não era Brasil, os pterossauros, répteis voadores, assustariam os frágeis seres humanos [...]. Esses bichos alados de ossos ocos, que não eram nem dinossauros nem aves, podiam ter uma envergadura de 5 metros, com as asas abertas. Existiram vários tipos, e ganharam dos estudiosos nomes indígenas: tupuxuara, anhanguera e tapejara.

Nas praias límpidas do nosso litoral, repletas de uma infinidade de pequenos moluscos, mosassauros de 10 metros, amonóides com caracóis de 2 metros de diãmetros e os peixes-lagartos, os ictiossauros e os plesiossauros, com seus 5 metros, aterrorizariam banhistas, se a vida humana já tivesse surgido nesses tempos pré-históricos [...].

Foi em 1946 agora [...]. Em Uberaba, Minas Gerais. Ferroviários descansavam do duro trabalho de tocar o trem de ferro e o trem da vida jogando bocha. Um paleontólogo curioso pediu para examinar melhor a pelota de 15 centímetros de diâmetro e concluiu: era um ovo (gorado, empedrado) de titanossauro! Dali sairia um bichinho que, adulto, pesaria quatro vezes mais que um elefante. [...]

Os dinossauros sumiram da face da Terra há 65 milhões de anos. [...] Aquele mundo pode ter se perdido por causa de mudanças no nível do mar, intensa atividade de vulcões ou ondas terríveis de frio. Também não está descartada a hipótese do impacto bombástico de uma chuva de meteoritos sobre o planeta.

Mas os seres humanos, quando chegaram à América do Sul, há 50, 30 ou 13 mil anos, provavelmente, não encontraram também outros terríveis animais que sucederam os dinos: o tigre de dentes-de-sabre, o mastodonte (da família do elefante), o megatério (uma preguiça gigante), o taxodonte (primo do hipopótamo), a paleolhama , o gliptodonte (um tatu gigante, com cauda espinhenta) e a macrauquênia (um cavalo com tromba, parente do camelo). Esses bichões foram perdendo espaço de sobrevivência com a junção das Américas, há 3 milhões de anos, através do istmo do Panamá. Muitos carnívoros vindos da América do Norte disputavam território com os pesadões daqui. [...]

O clima também foi se alterando muito, os alimentos escasseando, e nessa hora ser pequeno e ágil conta bastante. O crânio de um enorme urso encontrado numa gruta do Ceará revela que hoje ele não viveria por lá: não aguentaria o calor. Dos tigres só restaram os dentes, espalhados por aí, do rio Parnaíba, no Piauí, ao Xuí. [...]

Há, no Brasil atual, sobreviventes daquela fauna pré-histórica. E que são até hoje encontrados com certa facilidade: os gambás, os sapos, as lebres. E os lagartos, lagartixas, insetos de todo tipo. As minhocas estão por dentro da terra há milênios, e as cobras, por cima, idem [...]. Sem contar o mar [...] onde a vida surgiu e onde estão guardados os segredos da sua perpetuação. Observar suas profundezas é voltar no tempo e se deparar com estranhas criaturas seculares, como os polvos e as tartarugas. Por que, ao se espantar diante delas, tantos seres humanos querem caça-las, destruí-las?

Mais perto de nós estão aqueles bichos que têm jeitinho de idosos, e são mesmo: os jacarés, os tatus e os jabutis. Eles resistiram aos ataques de enormes feras e às intempéries. Resistirão ao ser humano?

ALENCAR, Chico. BR-500: um guia para a redescoberta do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 35-45.


sábado, 29 de dezembro de 2012

Os índios: bens materiais e trabalho

Família de botocudos em marcha, Jean Baptiste Debret

Os índios viviam em aldeias, praticando a agricultura, a caça, a pesca e a coleta [...]. Essas aldeias podiam mudar de lugar depois de alguns anos à medida que as comunidades necessitavam deslocar-se à procura de locais mais apropriados ao exercício das atividades que lhes garantiam a sobrevivência, áreas de solo mais rico ou regiões de maior abundância de caça, peixes ou frutas de acordo com as estações. Assim, as populações indígenas tinham grande mobilidade e poucos bens, que deviam ser transportados de um lugar a outro.

Os tupis-guaranis cultivavam basicamente a mandioca, mas também podiam plantar milho (também usado na fabricação de bebidas fermentadas), feijão, batata-doce. Alguns plantavam cará, abacaxi, abóbora, além de algodão e tabaco. Consumiam praticamente tudo que produziam e nunca formavam grandes estoques. O objetivo de seu trabalho não era a acumulação de bens.

O índio só tinha a propriedade pessoal de suas armas e enfeites e partilhava todo o resto, principalmente os produtos da caça, pesca e coleta. Entre os índios, dentro de cada aldeia, o acesso aos recursos naturais era livre. A inexistência de bens privados entre os nativos e a harmonia reinante no interior de cada aldeia impressionou muito os viajantes. [...]

Essa generosidade, segundo Léry, abrangia todos que estivessem sob o mesmo teto, incluindo os inimigos. Esse cronista observou que os índios preferiam as pessoas alegres, falantes e generosas e detestavam as tristes, de pouca conversa e as avarentas. Léry admirou também o desprendimento dos bens materiais que caracterizava os índios e, a propósito, narrou uma conversa que teve com um velho tupinambá a respeito dos motivos que moviam os europeus na busca do pau-brasil. [...]

[...]

Comparando os europeus e "os selvagens", Léry afirma que estes dão "mais importância à natureza e a fertilidade da terra do que nós ao poder e à providência divina e detestam os piratas dos quais havia tantos na Europa e nenhum entre eles".

A divisão das tarefas na sociedade indígena determinava que além de caçar, pescar, cortar lenha e combater, os homens construíssem canoas e cabanas e limpassem o terreno para o plantio da lavoura. As mulheres plantavam, colhiam, preparavam o alimento, fiavam, teciam, faziam cestos e potes de barro e coletavam frutos, raízes e insetos comestíveis, cuidavam da casa e das crianças. Como o seu trabalho era diário e constante e o dos homens, ainda que pesado, era mais espaçado, a primeira impressão dos europeus era de que os homens eram mais indolentes. No entanto, eles eram capazes de grandes esforços físicos como viajar centenas de quilômetros, correr dias inteiros, remar por grandes distâncias, carregando grandes pesos desde que todas estas atividades tivessem um propósito útil aos seus olhos. Apenas faziam questão de trabalhar quando e como quisessem, sem supervisão e cobranças. [...] De acordo com as necessidades, os índios eram capazes de confeccionar cestos, redes, armas, enfeites, canoas, cabanas e ferramentas simples. As crianças participavam das atividades produtivas conforme sua capacidade física e aprendiam suas tarefas observando os adultos.

Tipos diferentes de flechas de indígenas brasileiros, Jean Baptiste Debret


É interessante ressaltar que, apesar das descrições bastante depreciativas dos índios - chamados de selvagens, bestiais, ignorantes - nenhum dos cronistas dos séculos XVI e XVII consideram-nos indolentes ou preguiçosos. Essa imagem foi elaborada no século XIX, quando se quis explicar as razões de empregar o negro no trabalho escravo. A qualidade de trabalhador obediente e submisso atribuída ao negro foi contraposta à preguiça, incapacidade e rebeldia do índio. Nessa época, só restavam poucos índios nas proximidades do litoral, vivendo em aldeias miseráveis, onde era impossível produzir o suficiente para o mercado, com sua cultura tradicional quase toda perdida. Frequentemente embriagados e sujos, causavam a pior das impressões. [...] Os brancos avançavam sobre suas terras, justificando as investidas com o fato de elas não serem devidamente (segundo padrões europeus) utilizadas.

Na segunda metade do século XIX, estruturou-se uma nova ciência, a antropologia, que se propunha a estudar os povos ditos primitivos. Entre os inúmeros cientistas estrangeiros que visitaram o Brasil nessa época, vieram antropólogos, como o alemão Karl von Steinen que, ao iniciar o estudo científico das culturas indígenas brasileiras, começou a mudar sua imagem, valorizando-as como grande herança cultural da humanidade. [...]

Conjunto de diferentes formas de choças e cabanas, Jean Baptiste Debret


Geralmente, uma aldeia consistia de quatro ou mais casas compridas, de teto abaulado feito de sapé, construídas uma ao lado da outra ao redor de uma praça, onde ocorriam as reuniões e as festas. A aldeia era cercada por um fosso ou uma paliçada. Dentro de cada uma dessas cabanas, as malocas, viviam coletivamente várias famílias. No dia-a-dia, cada família (pai, mãe e filhos) era auto-suficiente; na produção e reprodução das condições gerais de existência, o indivíduo dependia da comunidade aldeã.

MESGRAVIS, Laima; PINSKY, Carla Bassanezi. O Brasil que os europeus encontraram. São Paulo: Contexto, 2000. p. 38-44.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Cidades, mercadores, escolas

Desembarque de mercadorias num porto medieval

Até o século XX, os europeus eram, em sua grande maioria, homens do campo. Não se deve esquecer que os atuais camponeses são os herdeiros de 90% da população europeia anterior ao desenvolvimento da indústria nos séculos XVIII e XIX. Mas, na Idade Média, nasceram ou se desenvolveram inúmeras cidades: as mais importantes eram as sedes do poder dos reis e dos príncipes, e também de sua burocracia. Elas tinham principalmente uma importante atividade econômica, com artesãos, mercados e feiras: as da Champagne foram bastante frequentadas nos séculos XII e XIII. Um novo tipo de homem apareceu, o mercador. Os mais ricos mercadores comerciavam em toda a Europa, e até mesmo na Ásia e na África, e eram também banqueiros. Os mais poderosos foram os italianos (florentinos, genoveses e venezianos), os flamengos e os alemães que se agruparam numa grande associação comercial: a Hansa de Londres e Bruges, em Anvers, Hamburgo, Lübeck, Dantzig (atual Gdansk, na Polônia) e Riga. A circulação da moeda de ouro e de prata tornou-se muito importante, mas havia muitas moedas (o florim de Florença e o ducado de Veneza eram as mais renomadas). A troca de moedas era complicada e a ausência de uma moeda única entravou o desenvolvimento de um sistema econômico baseado no dinheiro: o capitalismo.

As cidades foram também centros culturais. Elas criaram as escolas onde se ensinava os filhos dos leigos, sobretudo dos burgueses, a ler, a escrever e a contar. Em algumas cidades, as corporações de mestres e de estudantes fundaram escolas de nível superior: as universidades. Elas existiram na Grã-Bretanha (Oxford, Cambridge), na Espanha (Salamanca), em Portugal (Coimbra), na Boêmia (Praga) e na Polônia (Cracóvia). As duas mais célebres foram Bolonha, para o direito, e Paris, para a teologia. Estudava-se também medicina em Salerno e em Montpellier. Os estudantes e os mestres, que viajavam por toda a Europa de uma universidade a outra, suscitaram uma grande produção de livros manuscritos e inauguraram um novo sistema de promoção quando eram bem-sucedidos nos exames. [...] 

As cidades foram também centros artísticos. A partir do ano 1000, surgiu um novo estilo de arquitetura e de escultura: a arte românica. No século XII, foi nas cidades que a arte gótica sucedeu à arte românica e deixou a luz entrar nas igrejas por grandes janelas, e, sobretudo, a luz colorida, graças aos vitrais. O teatro, que desaparecera desde a Antiguidade, ali renasceu, as festas se multiplicaram, e a mais animada era o carnaval. Na cidade, enriquecia-se, aprendia-se e divertia-se o europeu. Mas houve também muitos pobres e malfeitores. A miséria e a delinquência urbana se desenvolveram.

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 77-79.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Depois de Cristo

Maria amamentando o menino Jesus. Pintura do século II d.C. na Catacumba de Santa Priscila, Roma.

Se a mensagem de Cristo devia permanecer viva, isso só pôde acontecer com a ajuda dos judeus. Eles eram um povo espalhado, vivendo principalmente longe de sua terra natal e, portanto, oferecendo uma rede através da qual a mensagem cristã podia se espalhar.

Ao final desse período agora conhecido como a.C. ou "antes de Cristo", a maioria dos judeus nunca tinha posto os olhos na terra de seus antepassados. Muitas famílias judias, tendo ido para o exílio como cativos, tornaram-se parte de sua nova terra. Outros judeus partiram como comerciantes ou soldados para portos distantes e lá viveram, geração após geração. Um censo conduzido pelos romanos em 48 d.C. indicou que sete milhões de judeus viviam no vasto Império Romano. Talvez até 9% da população do império fosse judia, uma proporção de judeus maior que a que habitava a Europa na véspera da Segunda Guerra Mundial. Outros cinco milhões de judeus viviam em partes da Ásia Menor e da África, que ficavam além do império. À medida que as condições políticas deterioravam na Palestina, e à medida que cada vez mais judeus decidiram partir, a cidade da Babilônia tornou-se o lar de vivazes teólogos judeus.

As sinagogas dos judeus podiam ser encontradas desde a Sicília até o Mar Negro, sul da Arábia e Etiópia. As sinagogas em Roma sozinhas serviam a cerca de 50.000 judeus. Em muitos povoamentos judeus afastados, a sinagoga permanecia sendo o centro da vida social, contando com biblioteca e, talvez, até um hospício. Essas sinagogas distantes eram um testemunho da generosidade das congregações, onde muitos dos membros doavam um décimo de sua renda anual.

A religião dos judeus, embora inicialmente só para os judeus, há muito tempo já havia aumentado sua atração. Muitos pagãos e outros que não eram judeus frequentavam a sinagoga e aceitavam seu código de ética e sua visão de mundo, embora não necessariamente se submetessem à pequena cirurgia e importante ritual da circuncisão. Em muitas sinagogas nas partes orientais do Império Romano durante o primeiro século a.C., a língua hebraica foi substituída; a congregação orava e ouvia as escrituras lidas em voz alta em grego.

Arquétipo cristão do bom pastor. Pintura do século III d.C. na catacumba de São Calisto


O conjunto de sinagogas ao longo do Mediterrâneo e no interior da Ásia Menor tornou-se um foro inicial para a disseminação dos ensinamentos de Cristo. São Paulo foi o primeiro convertido de maior expressão. Ele não havia falado com Cristo, nem ouvido suas pregações, e, de início, opunha-se ao seguimento de seu culto, vendo-o como um perigo à tradicional religião dos judeus. A atitude de Paulo foi transformada, entretanto, por uma experiência mística na estrada de Damasco, e ele tornou-se um fervoroso missionário cristão. Mais ou menos 14 anos depois da morte de Cristo, ele começou a remodelar a igreja que nascia. Ele possuía qualidades pouco comuns; sentia-se em casa dentro de uma sinagoga: seus pais eram judeus e ele mesmo havia anteriormente treinado para ser um rabino. Tinha cidadania romana, o que lhe dava um passaporte aos círculos oficiais, e falava grego, a língua dos cultos.

Embora os primeiros a se converterem ao cristianismo fossem principalmente judeus, outros também foram igualmente atraídos. Em pouco tempo, muitas pessoas que não tinham nenhuma ligação com as sinagogas escutaram a mensagem cristã e começaram a se reunir em casas particulares ou salões públicos. A questão de quem podia se tornar cristão era cada vez mais debatida dentro das novas congregações. Muitos judeus cristãos faziam objeção aos que vinham de fora, pois viam o cristianismo como simplesmente uma ramificação de sua própria religião. Foi na cidade de Antioquia, no sul da atual Turquia, que esse dilema foi debatido pela primeira vez com vigor.

Em Antioquia, uma ou duas décadas depois da morte de Cristo, a questão de quem deveria ser permitido tornar-se membro integral da igreja cristã foi resolvido a favor dos internacionalistas, ao invés dos judeus. Todos que se aproximassem em estado de arrependimento podiam tornar-se cristãos. Isso inevitavelmente levou a uma divisão cada vez maior entre as sinagogas e as novas igrejas cristãs; cada uma competia pelos mesmos devotos, fossem eles judeus ou pagãos. Enquanto muitas das congregações cristãs consistissem exclusivamente de judeus, cada vez mais as novas congregações atraíam pessoas de todas as raças e formações. São Paulo enfatizou esse segmento totalmente acolhedor quando escreveu sua carta de grande influência aos gálatas: "Não há judeu nem grego, não há escravo nem homem livre, não há homem nem mulher, pois vós sois todos um só em Cristo Jesus".

No primeiro século após a crucificação de Cristo, seus seguidores viviam principalmente nas cidades, em vez de nos vilarejos e no interior. As mulheres provavelmente eram a maioria dos cristãos. Aqueles que se apegavam à igreja nesses anos difíceis tinham de ser corajosos. Os imperadores, em Roma, ocasionalmente se voltavam contra os cristãos. O imperador Nero Cláudio os culpou pelo famoso incêndio de Roma, em 64 d.C. Em um tipo de competição do dia, muitos cristãos levaram chifradas de animais selvagens até morrerem na presença de uma multidão de espectadores.

Em suas contendas interiores sobre a questão de até que ponto seguir as regras da sinagoga, os primeiros cristãos não tinham certeza se deviam descartar as rígidas regras dos judeus em relação à alimentação. Muitos dos primeiros a se converterem ao cristianismo, sem dúvida, seguiram as proibições dos judeus de não comer carne de porco, mariscos e outras comidas. Paulo, embora fosse judeu, era mais relaxado quanto à comida; em resposta ao argumento de que algumas comidas eram naturalmente impuras, ele decretou que "nada é impuro em si". Paulo era visto por inúmeros judeus como um traidor de sua fé; por isso, foi atormentado e perseguido por eles.

Por fim, a maioria dos primeiros cristãos, sabendo que a última ceia de Cristo na presença de seus discípulos tinha sido um momento de grande importância, adotou uma atitude positiva em relação à comida. Como o vinho tinha sido parte da última ceia, foi coroado junto com o pão na cerimônia especial conhecida como o sacramento da Eucaristia. Fazer uma refeição juntos tornou-se o costume simbólico nas primeiras cerimônias religiosas.

Aqueles que tinham conhecido Cristo tornaram-se os primeiros líderes da igreja e, obviamente, eram judeus. Pedro, antes um pescador, era o discípulo mais velho após a morte de Cristo e, segundo dizem, foi quem liderou inicialmente a igreja em Roma. Com o passar do tempo, os nativos italianos chegaram em primeiro plano. Linus, provavelmente um nativo da Toscana, tornou-se o bispo de Roma, ou o papa, não muito tempo depois da perseguição de Nero aos cristãos.

Em Roma e nas cidades nas afastadas e de difícil acesso do Império Romano, multidões - com a presença de alguns judeus, às vezes - atacavam com violência os cristãos. A lista de mártires cada vez crescia mais. Como era raro os cristãos serem a maioria da população em qualquer cidade ou vila maior do império, eles dependiam da tolerância que lhes era consentida pelos outros. Teriam sido mais tolerados se tivessem sido mais afirmativos. Às vezes, não prestavam homenagem suficiente àqueles imperadores romanos que, cada vez mais, viam-se como semelhantes a deuses.

O cristianismo tornou-se como um sapato nas mãos de cem sapateiros, assumindo muitas formas diferentes até o ano 300 d.C. De província em província, a igreja em expansão diferia em suas crenças e rituais. Um mercador e sua esposa que se transferissem de uma congregação na Ásia Menor para uma na Itália provavelmente teriam um choque quando vissem pela primeira vez seu novo pastor executar os rituais ou explicar sua teologia.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 79-81.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Nas origens dos tabus


"O Tribunal da Inquisição", Pedro Berruguette. Destinada a julgar casos de heresia, a Inquisição foi ativada pelo movimento da Contrarreforma, resposta nos países de tradição católica (principalmente em Portugal e Espanha) às doutrinas expressas pela Reforma Protestante.


Está claro que na Política e na História muitos tabus incidem sobre a origem das instituições que exercem uma autoridade sobre a sociedade, em conveniência ou não com a própria sociedade.

Assim, emana da cristandade um certo número de tabus, e um dos mais antigos e mais duráveis, relativos à autoridade, que foi atribuído ao papado.

De uma parte, o papado auto-rotula sua origem como divina, tendo Jesus Cristo, depois de sua ressurreição, confirmado a Pedro seu encargo de vigário de Deus sobre a Terra, dando assim ao primeiro bispo de Roma uma proeminência sobre os outros papas, título este atribuído, à época, a todos os bispos.

A essa origem foi agregada uma primazia, apoiada na Doação de Constantino, segundo a qual este imperador, quando de sua conversão ao cristianismo, teria conferido ao papa de Roma, Silvestre I (314-335), a primazia sobre os metropolitanos de Jerusalém, Antioquia, Constantinopla e Alexandria, assim como a posse de Roma e da Itália. O papado inserirá esse texto nos Decretos - regulamentos eclesiásticos -, destinados a afirmar os direitos dos papas sobre os soberanos.

Ora, por volta de 1436, ao definir as regras e os métodos da crítica histórica, Lorenzo Valla demonstra que esta doação era falsa. O diagnóstico foi público e Lorenzo Valla viu-se obrigado a buscar refúgio em Nápoles, sob a proteção do rei de Aragão.

Desde essa data, denunciar a ilegitimidade dos poderes atribuídos aos papas é tabu, e o povo cristão não sabe disso; a historiografia laica, ela própria, só evoca esses fatos furtivamente, por ocasião de progressos feitos pelo conhecimento, e da crítica dos textos, na época do Humanismo e do Renascimento.

Por outro lado, esse povo ignora que, segundo pesquisas mais recentes, a famosa doação não foi uma maquinação desonesta comandada pelo papado - como vem acreditando, embora não o diga há cinco séculos -, e sim uma espécie de tratado ou de manifesto redigido em meados do século VIII, que enumerava as vantagens e os direitos já adquiridos pelo papado. O texto tinha certamente uma origem clerical romana, e constituía o relato hagiográfico da figura de Pedro, o magnificente, como o papa Silvestre I, e valorizava a basílica de Latran, dedicada a São Salvador. O todo estava apresentado sob forma jurídica - e sua origem era atribuída ao imperador Constantino, quando na verdade esse texto emanava de um clérigo de nível inferior que queria glorificar sua própria Igreja.

Hoje, o papado é uma força moral e política considerável, e seria levantar um tabu lembrar aos papas de nosso tempo que uma parte de seu poder, ou de sua autoridade, repousa sobre um erro grosseiro.

Uma espécie de tabu reina igualmente sobre as origens míticas do Estado e da realeza na França. Redigidas a partir do século XIII, as Grandes Croniques de France [Grandes crônicas de França] evocam as origens troianas e cristãs do povo francês, recorrendo a dois acontecimentos lendários: a queda de Tróia e a conversão de Clóvis. Por ter demonstrado que os reis de França não descendiam dos príncipes de Tróia, mas que eram herdeiros de simples guerreiros francos a que Roma dava o nome de bárbaros, Nicolas Freret, um erudito, foi encarcerado por Luís XIV na Bastilha: o que prova que este historiador não tinha o senso da História...

Sobre as origens do poder bolchevique, em outubro de 1917, reina igualmente um verdadeiro tabu, que não se refere, na verdade, à base de dados que relatam o levante, mas que não é menos revelador, simultaneamente, do comportamento de Lenin e do comportamento ulterior dos historiadores soviéticos, ou mesmo dos comunistas de outros países.

E onde se aninha esse silêncio opaco?

Ninguém duvida que, considerada globalmente, a insurreição de outubro de 1917 foi um movimento de massa insuflado pelas organizações revolucionárias e por outros soviéticos, majoritários em Petrogrado e na maior parte das grandes cidades russas. Em sua liderança estava, com frequência, o partido bolchevique que, desse modo, colocou fim a uma situação onde um governo sem Estado - Kerensky - deixava uma prova de força para um Estado sem governo - os comitês e os sovietes. Foi a ação de Lenin que levou o partido bolchevique a sustentar o princípio de uma insurreição, da qual aparentemente não tinha necessidade, visto que no II Congresso dos Sovietes seria majoritário; mas esse movimento permitiu prevenir uma ação que poderia impedir a reunião do congresso. Aí é que reside o primeiro silêncio da História tradicional, esse pequeno golpe de Estado cometido por Lenin, que escreveu de próprio punho, sem consultar ninguém, uma proclamação que anunciava, antes do Congresso, a derrubada do governo provisório pelo comitê revolucionário provisório, uma instituição controlada pelo partido que constituía o braço militar do soviete de Petrogrado. Esse comitê não fora minimamente legitimado para substituir o soviete de Petrogrado e, menos ainda, o Congresso dos Sovietes. Sua função era a de "proteger o Congresso", não a de tomar o poder, em seu lugar. Além disso, Lenin, em uma primeira versão manuscrita da proclamação que figura nos arquivos oficiais, havia escrito: "O comitê convoca nesse dia, para as doze horas, o soviete de Petrogrado. Medidas imediatas são necessárias para a constituição de um poder soviético". Em seguida, Lenin rasurou sua frase. Este ato falho é significativo: Lenin desconfia da legalidade revolucionária do soviete de Petrogrado - quer dizer, de Trotski - e do espírito democrático de alguns de seus amigos bolcheviques do soviete, tal como Kamenev [...]. Lenin [...] desautoriza o soviete de Petrogrado e o Congresso que não tem mais nada a homologar. [...]

[...] nenhum historiador soviético, de Trotski a Mints, as comentou. É bem compreensível o incômodo que teriam sentido os edis do regime soviético com o reconhecimento de que o poder atribuído ao partido repousava em parte sobre um erro.

No tempo da cristandade, o exemplo do cemitério de Auvezines, no Tarn, era edificante. Tal exemplo comprova que negar as crenças da fé é um tabu, e que o tabu, nesse caso, se junta ao mito.

Em Auvezines, então, há alguns anos, figurava na porta do cemitério uma placa onde estava escrito: "Em 1211, aqui, foram massacrados 600 cavaleiros teutônicos". Este grande fato, ligado à cruzada dos Albigenses, faz evidentemente alusão à batalha de Montgey, mas o cemitério em questão é minúsculo. Encontra-se ali a síndrome histórica do cerco de Alésia, cujas plantas mostram bem que a praça forte não podia certamente abrigar 80 mil gauleses. Em Auvezines, se o termo "teutônico" faz referência aos exércitos do rei Luís VIII, esta denominação representa bem o abismo que separa os occitânicos dos "bárbaros do norte"; assim o número de mortos revela um desses milagres que contam os relatos sobre as cruzadas: por exemplo, na estrada de Jerusalém, o corpo de Castelnau, morto por numerosos golpes de espada, é reencontrado intacto; na estrada daqueles que vão para Albi, o pão é semeado, também milagrosamente. Desse modo, apenas os homens de Deus não morrem!

Em um país comunista, os crentes também julgam sacrilégio todo questionamento sobre um deus. Uma crença quirguiz, curiosa e irônica, pergunta ao professor de fé inabalável que anunciava aos alunos que o capitalismo iria morrer logo:

- E Lenin, vai morrer também?

O mestre a fuzila com o olhar: a criança havia quebrado um tabu.

O tabu exerce muitas vezes uma função de autodefesa. Sempre, na tradição cristã, essa função aparece na ocasião das guerras religiosas. A História tradicional evocou essas guerras sob essa denominação, omitindo o fato de que na época não eram chamadas assim. [...] Porque a tradição quer fazer crer que os protestantes se sublevaram somente pela liberdade de sua fé, em nome de um princípio sagrado - o da livre leitura da Bíblia - e de uma melhor prática religiosa. Os católicos creditam ao rei a ordem de deflagração da noite de São Bartolomeu - até onde podem provar -, mas não acham que foi verdadeiramente sua responsabilidade e que ele agira sob a influência de sua mãe, uma "estrangeira", italiana, ou de um grupo de fanáticos [...]. Tentam deixar passar a ideia de que, certamente, o rei cometera o gesto que acelerou ou aprofundou o processo dos massacres, mas que, pessoalmente, ele era inocente. E sua defesa, assim, é assegurada.

Esses dois modos de apresentação são ilusórios. Na verdade, embora sem dizê-lo, os protestantes desejavam instaurar uma república à la Calvino: eles não podem admiti-lo porque supostamente se batem pela liberdade da fé. [...] Os protestantes esconderam suas aspirações por trás da exigência de uma pureza religiosa que não era necessariamente o caso deles. No século XVI, o corpo protestante se compõe em geral de pessoas instruídas ou de nobres e, mesmo nessa época, eles não representavam os grupos sociais mais inclinados a querer, de fato, ler a Bíblia textualmente. Até mesmo alguns se manifestaram sinceramente hostis à Igreja por múltiplas razões, entre elas a de que esta não merecia mais ser o guia dos cristãos. [...] E, quanto aos católicos, estes criticavam a monarquia, fingindo defender o rei. Na tradição histórica, eles dizem que o rei não era verdadeiramente culpado das violências cometidas durante essas guerras, mas, na realidade, eles censuravam sim, há algum tempo, a monarquia por não ser mais subordinada à Igreja e ao papado [...]. Existe ainda uma espécie de combinação involuntária entre católicos que glorificam  o rei, enquanto querem diminuir sua autoridade, e protestantes que, em nome de diversas liberdades, sonham com uma república à moda de  Genebra, quando não há regime mais autoritário do que aquele instaurado por Calvino. Eis aí o exemplo de um duplo tabu, sutil, do qual a tradição histórica não se deu conta. É verdade que a plebe, em sua maioria católica, luta em nome da religião.

Ao lado dos tabus de origem cristã ou monárquica, a república segrega igualmente os seus. [...]

A tradição histórica faz da Revolução de 1789 a mãe e a matriz do projeto republicano. Mas omite a existência dessas repúblicas "aristocráticas", como a de Veneza, ou "patrícias", como a de Genebra. E também relega a revolução americana, facilmente definida como uma guerra de independência.

[...]

Na França, a tradição republicana faz do país a encarnação da revolução, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, dos direitos do homem e da civilização no quadro expansionista colonial. [...] Os diferentes países da Europa deveriam, por isso, olhar a França com inveja - e o regime republicano constituiria para os franceses uma espécie de modelo no qual deveriam necessariamente se inspirar os outros povos. [...]

[...]

Diferente por sua formulação, mas exercendo igualmente uma função de exorcismo, também há o tabu da historiografia negra no Caribe anglófono. Não querem saber que o tráfico e a escravatura tiveram por vítimas essencialmente os negros. No livro Our Heritage [Nossa herança], destinado aos estudantes, é lembrado que, na cidade de Alger, no século XVIII, havia escravos brancos e negros, o que é verdade. E que, em algum momento de suas histórias, todos os povos tiveram de ser escravos, o que poderia ser verdade. Mas o que há de mais bonito, enunciado a seguir, é que os ingleses foram, evidentemente, escravos dos romanos, e que de lá vem seu nome: dos anges. E, além disso, a única ilustração do capítulo sobre escravidão mostra duas crianças inglesas sendo levadas por um centurião romano.

Dizer que os negros foram as principais vítimas do tráfico e da escravidão é humilhante, por isso o silêncio, e por isso também é que, na conferência de Durban (2001), que tratava da questão da indenização dos descendentes de africanos vítimas do tráfico nos séculos XVII e XVIII - como foi feito com os judeus no século XX -, houve delegações que se recusaram a comparecer e associar-se a tal reivindicação.

Entre os armênios, o tabu funciona de modo diverso. Sua tradição histórica é polarizada pela ideia de que são um povo mártir. Há trinta anos, eles tomaram o lugar dos judeus, antes que os curdos lhe fizessem concorrência, assim como os bósnios etc. Hoje, quando a ideologia dos direitos do homem tomou conta dos estados-nações, cada povo inventaria os crimes de que foi vítima. Assim, a memória armênia atual faz da história desse povo um longo martírio do qual o "genocídio" de 1915 foi o apogeu. Lembra, no entanto, que os armênios constituíram o primeiro estado cristão da História, antes do Império romano: desse modo, glorificação e martírio fazem dos armênios um povo maravilhoso.

Os historiadores armênios não insistem, entretanto, na surpreendente prosperidade das comunidades armênias nos séculos X e XVIII: Fernand Braudel descreveu-a em seu livro Méditerranée, mas os armênios se recusam a lembrá-la. Mártires, sim; ricos, não. Esses historiadores não gostam de lembrar tampouco que no final do século XIX, com os búlgaros, eles inauguraram a prática do terrorismo, sobretudo contra as instituições do Estado otomano, como o Banco de Istambul. [...]

[...]

Outro tabu dentro do mundo dos comunistas [...], dos anticomunistas do Ocidente e dos anti-semitas é a importância do número de não-russos e de judeus - todos agnósticos, apesar de reconhecidos como judeus - no movimento revolucionário: dos 264 bolcheviques mais notórios, recenseados por Granat em 1920-1924, 119 são alógenos, e perto de um sexto deles é originário do gueto. Mas Zinoniev, Radek, Kamenev ou mesmo o menchevique Martov não são tidos como judeus. [...]

Quanto a Lenin, um tabu reinava sobre as origens de sua família, mas havia uma anedota no fim do regime comunista: "Seus ancestrais? Alemães, judeus, tártaros...". Os três inimigos da Rússia.

[...]

FERRO, Marc. Os tabus da história. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. p. 25-40.

domingo, 23 de dezembro de 2012

As prostitutas na História


Salão na Rue des Moulins, Toulose-Lautrec

Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão "mais antiga do mundo", todos sabem. E, desde que o mundo é dito civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura, e também já foram associadas a deusas - manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. As "mulheres da vida" sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu status passou de respeitável à condenável.

Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. "Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função", diz Maria Regina.

Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

Por volta de 3.000 a.C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. "Foi nesse momento da história humana, em torno do segundo milênio a.C., que a instituição da prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na escrita", explica Nickie.

As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder. "Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas", escreve Nickie Roberts.

Foi nesse período, quando os homens começaram a tomar o poder, que também surgiu a hierarquia entre as mulheres do templo, com um escalão de prostitutas de classe alta, que mantiveram seus antigos poderes e privilégios. As harimtu, que trabalhavam fora dos templos, foram as primeiras prostitutas de rua. Ainda assim, a conexão entre sexo e religião persistia, pois as meretrizes da rua continuavam a ser vistas como sagradas, protegidas de Ishtar.

A divisão das mulheres em prostitutas e esposas vem desse início da história patriarcal. Foi na antiga Suméria, por volta de 2.000 a.C., que surgiram as primeiras leis segregando as duas. "Nessa época, já começava a ampliar a lacuna entre as 'boas'- dóceis e obedientes - esposas e as 'más' - sexualmente autônomas - prostitutas", diz Nickie.

A autora explica que a forma patriarcal de casamento, em que o marido literalmente é dono da esposa e dos filhos, aprofundou mais ainda o abismo entre a esposa e a prostituta, na medida em que as instituições religiosas e políticas masculinas foram crescendo. "Ao mesmo tempo, as leis que cercavam as prostitutas e o seu trabalho tornaram- se mais opressivas", conta Nickie. Segundo ela, durante toda a história da Mesopotâmia e do Egito, o sexo era ainda considerado sagrado e, apesar das leis, não havia uma moralidade puritana a estigmatizar as mulheres que se sustentavam vendendo sexo.

Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode ser inferida pelas imagens das iconografias. "Pela análise da iconografia, a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada. Há contos iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela religião", diz Gralha.

Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras. "As principais religiões patriarcais que se seguiram - o cristianismo e o islamismo - reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e regulamentação das mulheres", explica Nickie Roberts.

A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram mais tarde, por volta de 2.000 a.C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus, divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente do culto anterior.

A negação total do poder da mulher na sociedade grega é decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a existir as "boas mulheres", submissas, e as outras.

Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas prostitutas - tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da legislação de Sólon. "Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo cafetinadas - oficialmente. (...) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem estatal e privada", afirma Nickie.

Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade, já que a agricultura não absorvia mais a todos. "Para que os estrangeiros não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis", explica a coordenadora do NEA. Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes, daí vem a palavra pornografia.

As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas, depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas, estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.

Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica Maria Regina. "As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas, trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos templos", diz Nickie.

A prostituição sagrada também sobreviveu, embora timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a Grécia, especialmente em Corinto - dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas, por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram homenageadas pelos clientes. [...]

Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a prostituição não era tão disseminada no território romano. "Roma ainda era muito provinciana, fechada", explica Ronald Wilson Marques Rosa, historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos. Antes desta expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.

Após a expansão militar e territorial, "os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade", diz Ronald Rosa.

De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente muito permissiva. "Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até então", afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora. Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores romanos.

"Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras", comenta Nickie. A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.

Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas. A maior parte não se registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era escassa.

Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. "As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento - o erótico e os demais - desapareceram durante a Idade das Trevas. (...) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre", afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprimi a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.

Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou "uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus", explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, "pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel".

Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função. Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.

A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à "crise do Renascimento". Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. "Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável", explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.

Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, "aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas", afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. "A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas", diz Rossiaud. Para o autor, foi o "duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma" que fizeram parecer "decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval."

Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de Os Prazeres da Noite, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. "Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação", diz Margareth.

Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. "Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta", afirma Margareth.

De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. "O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta", explica Margareth. "Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia", diz Margareth.

Para a autora de Os Prazeres da Noite, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: "Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres", diz Margareth.

Patricia Pereira. As prostitutas na História - De deusas à escória da humanidade. In: Revista Leituras da História.

sábado, 22 de dezembro de 2012

A família, a infância e a escola em Roma

Mulher romana tocando cítara

Os romanos usavam a palavra familia, que em português é a mesma, para falar de algo muito mais amplo do que nós. Os romanos chamavam de família tudo o que estava sob o poder do pai de família e que dividiam em três grupos: os animais falantes, os mudos ou semifalantes e as coisas. Assim, o pai possuía mulher, filhos e escravos como animais falantes, vacas e cachorros como animais semifalantes e suas casas e mobília como coisas. Em princípio, o pai tinha direito de vida e morte sobre os membros de sua família ainda que, na prática, houvesse algumas limitações. Um pai de família tinha também muitos clientes [...], pessoas mais pobres do que ele e que lhe ofereciam apoio em troca de benefícios diversos, como dinheiro para comprar roupas, por exemplo. O patriarca era chamado de pater familias, "pai de família", proprietário de todos os bens: esposa, filhos, escravos, animais, edifícios, terras e tudo girava em torno dele, daí derivando o patriarcado, uma instituição cujo legado está conosco até hoje, um regime social em que o pai exerce autoridade preponderante. As ligações familiares eram naturalmente menos fortes nas famílias plebéias. Entretanto, o pai exercia, igualmente nessas famílias, grandes poderes sobre sua mulher e seus filhos, que, mesmo quando se casavam, continuavam sob o domínio formal do pai.

Como constituir uma família? Nas famílias ricas, em geral os pais dos noivos acertavam o casamento de seus filhos. O noivo era, normalmente, um homem experiente, entre trinta e quarenta anos de idade, enquanto a noiva era bem mais jovem, entre 12 e 18. O casamento era selado por um contrato de matrimônio e por um aperto de mão dos noivos. Os noivos não se beijavam na ocasião e isto se explica facilmente, pois o matrimônio era apenas uma união de famílias, não se pensava no amor entre os noivos.

Como era uma cerimônia de casamento da elite? Segundo podemos deduzir das fontes, quando se celebrava o noivado, havia uma festa, na qual se elaborava o contrato de casamento. Como parte do contrato, o pai da moça devia dar um dote (o preço para comprar um marido). Na véspera do casamento, os noivos dedicavam seus brinquedos aos deuses familiares, que haviam abençoado sua meninice. A casa era decorada com flores e os bustos dos ancestrais eram trazidos para a ocasião. No dia do casamento, a noiva vestia-se de branco. A cerimônia começava com um sacerdote que buscava saber se um casamento naquele dia seria bem-sucedido, por meio de rituais que lhe diriam se o dia era fasto (propício) ou nefasto (impropício) ao casamento. Em caso positivo, os noivos assinavam um registro de casamento, diante de testemunhas, davam-se as mãos e rezavam juntos para que o matrimônio fosse feliz. A noiva prometia ao noivo: "aonde você for, eu vou junto", e a cerimônia terminava com um sacrifício em honra aos deuses.

A nova família de elite tinha como objetivo a reprodução de herdeiros e os filhos não tardavam a nascer. O parto era em casa, com a ajuda de escravas e parteiras. A mãe ou as escravas com leite amamentavam o bebê, o pai podia às vezes carregar o filho, ainda que normalmente houvesse escravos para fazer isso. O recém-nascido tomava banhos em bacias e logo que crescia um pouco ganhava brinquedos, bonecas e miniaturas de animais e de carros de corrida.

Já mais crescidinho, o menino aprendia a ler e começava a ter aulas, tanto em casa, com professor particular, como em uma escola mantida pelo Estado. Estas eram pouco numerosas e não atingiam a maioria das crianças. O aluno devia levar uma malinha com o material escolar: tinteiro, penas, cadernos de madeira para os exercícios e encontrava na escola livros que devia estudar. Os alunos iam para casa almoçar e voltavam à tarde para continuar o estudo. Havia, também, brincadeiras e uma das mais comuns era "par ou ímpar", jogado com castanhas que eram escondidas por um dos dois jogadores, para que o outro descobrisse se eram em número par ou ímpar. Brincava-se com bolas e uns carregavam aos outros nas costas. [...]

Como saber o que as crianças aprendiam nas escolas? Ápio Cláudio Cego, o primeiro escritor latino que se conhece, compôs, no século IV a.C., algumas frases poéticas que continham ensinamentos morais e eram decoradas pelos alunos:

Manter a alma equilibrada para que não possam surgir
o engano, a maldade, a violência;
Quando vês um amigo, te esqueces do sofrimento;
Cada um é fabricante de sua própria sorte.

Também fábulas eram aprendidas, como esta, reportada por Fedro, contador de histórias latino nascido em cerca de 30 a.C.:

Casualmente, a raposa viu a máscara.
- Que bonita! Exclamou. Mas não tem cérebro!
Isto foi dito para quem a Sorte
Deu honra e glória, mas tirou o juízo.

As crianças tinham um estatuto jurídico específico. [...] O Direito romano distinguia três categorias de crianças e jovens, de acordo com a idade, as crianças, os impúberes e os menores de vinte e cinco anos. A criança é aquela que não fala, o que nós chamamos de bebê. O impúbere, antes da puberdade ou nascimento dos pelos, estava, necessariamente, sob a autoridade do pai ou de um tutor. A partir daí até os vinte e cinco anos, era quase um adulto. [...]

A maioria dos romanos, na verdade, era pobre e suas famílias eram bem diferentes. Os humildes casavam-se, não por arranjos de família, mas para poderem se ajudar no trabalho. A diferença de idade entre marido e mulher era, em geral, menor que entre os casais ricos, e a família humilde tinha poucos ou nenhum escravo. Desde cedo, os filhos tinham que ajudar os pais no ganha-pão e aprendiam a ler e escrever com os pais e com professores também pobres, escravos ou libertos.

Enquanto os meninos ricos aprendiam a oratória, para que pudessem falar bem em público, os humildes estavam interessados em dominar um pouco da escrita e das contas. Meninos de posses aprendiam, desde muito cedo, o grego, que deviam falar e escrever perfeitamente, assim como escreviam em latim muito elaborado. [...] Já os outros meninos sabiam do grego apenas aquilo que era necessário para o dia a dia e falavam e escreviam um latim vulgar.

Os objetivos do ensino primário eram o domínio da língua latina e o aprendizado de algo de matemática, enquanto o ensino médio e superior voltavam-se para o domínio da composição literária, com ênfase para a gramática latina, métrica da poesia e literatura. O ensino superior preparava o jovem para a eloquência e a atuação nos tribunais e na vida política, o que mostra bem como a instrução era eminentemente masculina, ainda que houvesse mulheres educadas.

Para os jovens de famílias ricas influentes o treinamento militar iniciava-se desde cedo: disciplina, adestramento físico, prontidão e habilidade no manejo das armas faziam parte do cotidiano daqueles que frequentavam o Campo de Marte, local onde eram realizados os exercícios de arremesso de disco e de dardos, equitação e natação. Essa educação com vistas à guerra contribuiu [...] para a expansão do Império, na medida em que dela resultaram militares competentes.

Os romanos com pretensões sociais deviam dominar, ao mesmo tempo, a oratória, para atuar em reuniões, e a arte militar, para poder se destacar no comando de tropas. [...] Neste quadro, a educação das meninas era pouco considerada, pois as mulheres não podiam ter participação na vida pública nem no exército. No entanto, sabemos que muitas meninas humildes também eram alfabetizadas e que houve entre o povo romano algumas poetisas e intelectuais.

FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo: Contexto, 2011. p. 98-103.