"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Rebeldias e sublevações na América espanhola: os negros

Negro cimarrone. Gravura do século XVIII

As manifestações de rebeldia negra vão desde a atitude permanente individual até a fuga em grupos e as insurreições coletivas. Individualmente, o negro expressa sua resistência à escravidão tentando trabalhar da maneira mais lenta possível, destruindo os instrumentos de trabalho. Recorre aos seus deuses ancestrais na procura de socorro e faz suas orações invocando os espíritos contra seus amos. Se há oportunidade, comete atentados contra o senhor e seus capangas, levado por um acesso de fúria ou mesmo de maneira sigilosa e fria.

Na Venezuela, a primeira concentração de escravos africanos é encontrada na mina de ouro de Buria, em 1550. Logo se rebelam, fogem do acampamento mineiro, criam um pequeno exército e, em conjunto com os índios, avançam sobre Barquisimero. Nas minas colombianas, entre 1750-1790, os escravos deflagram o que Jamillo Uribe define como uma verdadeira guerra civil. Um dos resultados desse movimento é o surgimento de vários palenques, redutos de negros livres, equivalentes aos quilombos brasileiros. Mas, o surgimento dos palenques é anterior a esse movimento. Em 1599/1600 o escravo Dionisio Bicho funda palenque San Basilio, que se prolonga no tempo e durante o século XVIII chega a ter existência oficial.

Em 1749, em Caracas, correm rumores de que os negros preparam uma rebelião. A autoridade reprime violentamente. Em 1795 começa a rebelião em Coro, comandada por José Leonardo Chirino [...]. Ainda na Venezuela e em 1810 [...] o número de negros (mas também o de índios e mestiços) fugitivos é maior que dos que estão sob controle. As rebeliões e fugas formam uma população flutuante que vive nas  montanhas; são os chamados cimarrones que em 1721 são calculados por volta de 20.000, isto é, 10% ou mais da população africana existente na Venezuela.

Nas montanhas da região fronteiriça entre o São Domingos espanhol e Saint Domingue (depois Haiti) francês, existem comunidades de fugitivos (cimarronas) de ex-escravos. Originam-se do lado francês da ilha e são chamados Negros do Maniel. Durante 50 anos é impossível fazê-los abandonar seu refúgio. Em 1786, a monarquia espanhola dá a anistia e eles aceitam viver num povoado perto da fronteira, onde lhes é permitido viver em liberdade. Em troca das concessões outorgadas pela Coroa, os Negros de Maniel se comprometem a entregar à autoridade os fugitivos que daí em diante cheguem ao povoado. Mais ainda: receberão 50 escudos por escravo fugitivo que entregarem.

No Cabo Beata, ainda em São Domingos, uma comunidade de negros também vindos de Saint Domingue mantém uma economia regular de subsistência, com cultivos e criações de aves e animais domésticos. A autoridade francesa solicita à espanhola que esta permita o envio de uma tropa para "caçar" os fugitivos. Mas a reação da população branca vizinha do lugar os impede. Generosidade? Muito mais seu interesse em manter os negros ali: mão-de-obra barata (bastante escassa) e, em algumas ocasiões, sem pagamento algum. Os negros das plantações de cana da colônia francesa que fogem para o lado espanhol, são recebidos como verdadeiro presente do céu pelos criadores de gado e outros fazendeiros brancos que os acolhem como diaristas ou como simples agregados em troca de trabalho que, como já foi dito, é menos penoso do que o trabalho nas plantações de cana e engenhos. Com os chamados negros Minas, da mesma origem, forma-se a aldeia de San Lorenzo de Minas em 1692, com uma população que oscila entre 400 e 500 habitantes.

O [...] Abade Raynal lembra que na Jamaica, quando os espanhóis são obrigados a deixar a ilha nas mãos dos ingleses, grande número de negros e mulatos aproveita a ocasião para fugir para as montanhas e nelas encontrar a liberdade que lhes é negada entre os brancos. Plantam milho e cacau e enquanto as plantações crescem, descem à planície para roubar alimentos. "A política - diz o Abade - que tem olhos mas não coração, exige que se extermine esse bando de fugitivos", referindo-se aos cinquenta ou sessenta negros que conseguem sobreviver à intensa repressão. As tropas enviadas ao seu encalço, logo sentem a fadiga de um combate contra fantasmas escorregadios que fazem das montanhas e florestas um refúgio que desespera seus perseguidores. A autoridade renuncia a continuar a busca: o risco de uma sublevação das suas próprias tropas não recompensa os eventuais benefícios da captura. Mas os fugitivos aumentam em número. Em certas ocasiões, fogem em grupos matando seus amos, roubando as casas e incendiando-as. A repressão renova-se: emprega assalariados que recebem 900 libras por negro massacrado, cuja cabeça deve ser apresentada como prova para o recebimento do dinheiro prometido. Tudo em vão. Os ingleses constroem fortes, usam artilharia, militarizam toda a colônia, e todos os seus recursos são colocados a serviço da imposição da paz dos cemitérios. Os negros continuam incendiando as plantações e nem os selvagens índios mosquito que são usados contra eles conseguem alguma coisa de efetivo. A Jamaica, todo o Caribe, as Guianas, a Terra Firme, são povoadas pelos fugitivos. São milhares. Formam comunidades. Organizam sua vida. Produzem e se defendem. Procuram recuperar uma parte da humanidade que lhe foi roubada.

A fuga massiva de africanos para áreas mais distantes amplia o cruzamento com mulheres índias. As tribos guerreiras do distrito de Esmeraldas, sob a jurisdição da Audiência de Quito (Equador), e as da Costa de Mosquito na Nicarágua, são produtos deste cruzamento.

A América espanhola está cheia de "vagabundos". As autoridades se queixam, reclamam, reprimem, mas a vagabundagem aumenta. Negros e mestiços se introduzem nas aldeias índias. Criam conflitos. Como têm de viver, apossam-se das terras dos índios. Nas planícies do Orenoco surge um tipo de marginal com alta porcentagem de sangue africano: o habitante das planícies. Na fronteira do sul do Chile, região de gado, prosperam os desocupados; o mesmo se verifica nas planícies argentinas da região de Buenos Aires e nas áreas da fronteira do norte do Uruguai e parte do Rio Grande do Sul, no Brasil. A economia pecuária da região do México chamada El Bajio atrai grande quantidade desses errantes. Certamente, e não casualmente, em 1810, nessa região, há a rebelião popular que inicia a guerra da independência encabeçada por Allende e pelo padre Hidalgo.

[...]

POMER, León. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 124-125.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Rebeldias e sublevações na América espanhola: os índios

Trabalho compulsório indígena. Detalhe de mural do pintor mexicano Diego Rivera.

Índios e negros lutaram de formas distintas contra amos europeus e seus descendentes. O historiador chileno José Toribio Medina publicou documentos dos tribunais da Inquisição que relatam processos por feitiçaria exercida contra os dominadores. Serviçais, tanto homens como mulheres, são acusados de envenenar seus patrões com filtros mágicos, orações. Muitos são os brancos persuadidos de que suas doenças, mal-estares e desventuras têm origem nas ações secretas e diabólicas de seus dependentes e subordinados.

À parte a imaginação dos supersticiosos conquistadores e colonizadores, não há dúvida de que negros, índios e mestiços com acesso direto a seus amos, tenham aproveitado a oportunidade para matá-los com poções venenosas; para praticar contra eles artes malignas, de cuja eficácia pode-se, obviamente, duvidar.

Há ocasiões em que a rebelião começa sob o aspecto de uma reforma religiosa. É o que acontece em 1712 entre os maias dos altos de Chiapas (sul do México), em meio a profunda crise do sistema colonial. Após a imensa depressão que caracteriza o século XVII há um renascer da economia mercantil. Crescem as exigências tributárias e novas terras em poder dos índios lhes são expropriadas. O primeiro bispo natural da região, Alvarez de Vega, na cidade de San Cristóbal, antes mesmo de ocupar seu cargo decide, na Guatemala de onde é originário, aumentar os direitos que as paróquias têm a obrigação de oferecer ao bispado. Isto obriga os sacerdotes - geralmente indivíduos de origem humilde e pouca renda - a aumentar a pressão sobre os fiéis. Quem não tem dinheiro, deve oferecer milho, cacau e peças de tecidos. Assim, o bispo organiza o comércio em grande escala dessas mercadorias. Os nativos denunciam a espoliação a que estão sendo sujeitos. A esta situação, soman-se espanhóis e crioulos de San Cristóban que, compulsoriamente, vendem roupas, utensílios e vários produtos aos indígenas, sem preocupar-se se podem ou não pagar. Os devedores vêem seus bens embargados, perdem suas terras e gados. O intercâmbio forçado provoca um verdadeiro marasmo.

O movimento de 1712 inicia-se a partir da descoberta de uma "imagem que fala" da Virgem Santíssima, feita por um jovem da comunidade de Cancuc. A instabilidade psicológica gerada pela crise - diz Henri Favre - se canaliza em termos religiosos. Não tarda o surgimento da insurreição armada.

Na região de Tucumán (hoje Argentina), entre 1657 e 1665, os índios calchaquís se sublevam, liderados por um aventureiro espanhol chamado Pedro Bohorquez, o qual reclama para si a coroa incaica. O falso inca instala sua capital e organiza sua corte; tenta discutir com a autoridade colonial usando seu poder. Entre os antecedentes deste movimento, cuja importância certamente não foi subestimada pelos contemporâneos, cita-se a sublevação dos índios diaguitas e calchaquís na mesma região, entre os anos 1630-1635.

No Peru, entre várias rebeliões, citaremos duas. A primeira começa em 1743 quando o índio Juan Santos se proclama o "último inca", e nas montanhas de Chanchamayo passa a usar o prestigioso nome de Atahualpa II, rei dos Andes. Os revoltados ocupam o forte de Quimirí e enforcam os soldados prisioneiros. A resposta não tarda e o forte é bombardeado pelos espanhóis. A rebelião se arrasta. Seis anos mais tarde, corre o rumor que Juan Santos foi assassinado por seus partidários. Os índios que vivem nas cidades - e até esse momento silenciosos simpatizantes do rei dos Andes - começam conspirar abertamente. Em Lima, as reuniões se realizam na colina de Amancaes, e o número de conspiradores ascende a mais de dois mil. Os planos da insurreição são revelados por um mestiço chamado Jorge Gobea, traindo o movimento e o governador prende os chefes, entre os quais há alguns negros. Logo após as torturas (capazes de "fazer um mudo cantar") seis dos chefes são enforcados e esquartejados e suas cabeças expostas publicamente.

O Vice-rei persuadiu-se de que a repressão terrorista servira para inibir futuras tentativas. Equivocou-se. Em 29 de setembro de 1749 em Huarochiri, quase às portas de Lima, mais de 20 mil nativos estão em formação de combate. Em maio de 1750, após árdua luta - na qual a traição tem um papel relevante -a acaba tudo. A divisão e a anarquia entre os sublevados, aliadas à traição, foram decisivas para a derrota.

A outra insurreição [...] acontece no Peru em novembro de 1780. Seu chefe é José Gabriel Condorcanqui, que se dizia bisneto do décimo-sexto inca, executado em 1571 em Cuzco. José Gabriel passa a usar o nome do seu bisavô, Tupac Amaru; é cacique da província de Tuita e foi aluno brilhante em Colégio de Nobres. Ainda que tenha traços de origem indígena, Condoscanqui se veste como um cavalheiro espanhol e mostra um comportamento e uma cultura refinados. Seu movimento é claramente social: é contra a brutal exploração do índios nas minas e nas oficinas artesanais; contra os castigos físicos executados pelos amos e autoridades coloniais; contra a violência; as cobranças e multas dos corregedores, temíveis funcionários; contra os tributos abusivos.

A sublevação de Tupac Amaru, que conta também com o apoio de outros líderes como Tomás Catari e Tupac Catari [...], sacode o império espanhol e seus ecos chegam a Buenos Aires e Santiago do Chile. As massas nativas do Peru, de grande parte da Bolívia e de regiões do norte argentino, somam-se ao movimento. Após intensas batalhas, nas quais os índios mostram grande valentia, mas também indisciplina, o poder espanhol triunfa e José Gabriel tem seu corpo esquartejado por quatro cavalos. Previamente, cortaram-lhe a língua. Depois de morto, cortaram-lhe a cabeça. Pedaços de seu corpo foram levados no lombo de mulas aos lugares onde a insurreição fora mais forte. Ficaram expostos para lição daqueles que pretendessem seguir seu exemplo. Não obstante, três anos mais tarde, a rebelião ressurge novamente, desta vez liderada por Felipe Velazco, que adota o nome de Tupac Amaru Yupanqui. Entre o povo, corre o boato de que Tupac Amaru não está morto.

Os historiadores discordam sobre os objetivos finais do formidável movimento de Tupac Amaru. O autor do mais importante trabalho sobre o assunto, Boleslao Lewin, opina que o objetivo perseguido é a total expulsão dos espanhóis e a instauração de um Estado indígena.

POMER, León. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 122-123.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

China antiga 中國

Figurino de uma serva. Dinastia Tang

O ar de superioridade sustentado por gregos e romanos encontrou sua imagem espelhada na China, onde as pessoas olhavam para o mundo e viam apenas bárbaros. Chineses instruídos sabiam da existência das civilizações mediterrâneas, e os gregos e romanos tinham conhecimento da China, mas não o suficiente para minar sua autoestima. A visão de mundo chinesa estava resumida no nome - Zhongguo - pelo qual se referiam ao seu próprio país. Em tradução literal, significava "o reino do meio", mas o sentido subjacente era "o centro do mundo".

O fascínio chinês com o jade criara um comércio de longa distância com os povos da Ásia Central, onde a pedra era encontrada. Esses povos centro-asiáticos também mantinham laços comerciais com os habitantes da Mesopotâmia, que nutriam um caso de amor similar com o lápis-lázuli, encontrado apenas no Afeganistão. Essas estradas oriente-ocidente acabaram se juntando para compor os 6.500 quilômetros da Rota da Seda. Por ela, mais ou menos a partir de 100 a.C., caravanas de camelos transportaram tecidos destinados às ricas senhoras romanas, louças por sedas, no primeiro estágio de uma jornada através da terra e do mar de quase 15 mil quilômetros. Quando chegava a Roma, o pano era desfiado e refeito para criar o tecido semitransparente ao gosto dos romanos. Às vezes, chegava literalmente a valer seu peso em ouro.


Figurino de uma senhora. Dinastia Tang


A Rota da Seda tornou-se a via de transporte não só dos artigos têxteis do oriente, mas também de lã, prata e ouro vindos do ocidente, e para a troca de ideias em ambas as direções. Mas era um comércio conduzido por intermediários, deixando as civilizações dos dois extremos num estado de ignorância sobre as realizações de ambos os povos.

Assim como a Revolução Agrícola na China ocorreu mais tarde do que a do Crescente Fértil, igualmente se deu com a ascensão das vilas e cidades. Quando enfim surgiram, foi como resultado da introdução de irrigação em arga escala. A cultura baseada na lavoura do painço na região do rio Amarelo se originara nas encostas dos vales, onde a água da chuva podia ser retida com as plantações em terraços. Durante o primeiro milênio a.C., o aumento populacional e a propriedade de terras em larga escala tornaram possível a construção de um sistema de diques e canais através da planície aluvial do rio, resultando em notável expansão da terra fértil e sua utilização como áreas produtivas pela primeira vez.

Enquanto a transformação econômica nas margens do rio Amarelo estava em curso, uma mudança ocorreu no modo de produção agrícola do Yangtze, 650 quilômetros ao sul. O processo foi semelhante ao ocorrido com a abertura do vale do Nilo. Ali, também,  a floresta densa e pantanosa [...] exibia clareiras que revelavam um solo fértil, nutrido pelas cheias. [...] O cultivo básico da região, o arroz, tinha até então de ser feito em terras altas secas inundadas com água da chuva ou em tanques rasos construídos pelo homem. A partir de 500 a.C., aproximadamente, um novo método de cultivo foi desenvolvido, usando variedades que prosperavam com uma menor profundidade de água.

O surgimento dessa nova cultura de arrozais encharcados coincidiu com a Idade do Ferro na China. A mudança para uma sociedade baseada nesse metal exerceu impacto primeiro nas ferramentas e equipamentos usados na vida cotidiana. A guerra continuou a ser uma atividade de combate pessoal entre aurigas aristocráticos, mas, conforme novas armas de ferro eram inventadas, o equilíbrio de forças perdeu em favor dos exércitos com infantaria disciplinadas, como ocorrera no Mediterrâneo.

De 481 a.C. a 221 a.C., no que ficou conhecido como período dos Estados Combatentes, a guerra era uma característica permanente da vida chinesa. [...] Nesse estágio, o Estado mais a oeste - Qin (pronuncia-se "Tchin") - que, conseguira evitar em grande parte se envolver nas lutas precedentes, partiu numa campanha de conquista, que terminou em 221 a.C. É a partir dessa data que enfim podemos usar o termo "China" como significativo de uma unidade política e cultural, não como mero rótulo geográfico.

[...] As guerras civis que interromperam períodos de governo estabelecido foram em geral iniciadas por rebeliões de um campesinato faminto e oprimido. Mas, durante todas as sublevações, a consciência de uma cultura e de uma história compartilhada permaneceriam dando à China um senso de continuidade com o passado distante que até hoje é uma poderosa força.

Um elemento central nesse senso de continuidade histórica foi propiciado pelos ensinamentos de um grande filósofo que nasceu em 551 a.C. [...]. Seu nome era K'ung Fu-Tzu, ou como é conhecido fora da China, Confúcio. [...] Inspirado pela mãe viúva, tornou-se um estudioso incansável e professor brilhante. [...]

Embora Confúcio fosse um reformador, não era um revolucionário. O princípio motriz de seu pensamento era a busca do que fosse bom nas tradições e práticas do passado, de modo que pudessem ser conservadas como normas de procedimento para a ação no presente. Sua principal preocupação era a ordenação correta da sociedade e as qualidades exigidas dos que aspiravam a governá-la. Ele insistia em que apenas os que haviam recebido uma educação apropriada estavam aptos a exercer a autoridade sobre o próximo. Essa proposição mais tarde formaria a base de uma das características mais duradouras da sociedade chinesa: a classe mandarim de funcionários públicos, selecionada por exames competitivos e respondendo diretamente ao imperador, em vez de servir aos interesses de uma aristocracia local. Esses mandarins muito bem pagos, contudo, eram recrutados em grande parte das classes de proprietários de terras, e em termos sociais eles e a aristocracia representavam uma única classe, tanto física como intelectualmente muito distantes das massas camponesas de quem coletavam impostos. [...]

Esse sistema de administração exercida por funcionários de carreira altamente instruídos tinha vários pontos fortes, mas continha em si a própria fraqueza. Era uma máquina altamente eficaz para conduzir os assuntos cotidianos de um grande império. Mas as consequências da ineficiência eram severas, e inevitavelmente gerou uma atitude conservadora que não se limitou apenas a dominar a administração pública, mas também contaminou o modo de pensar sobre a vida de maneira geral. O conservadorismo resultante de exaltar constantemente o passado não constituía obstáculo ao progresso nas questões práticas, mas estagnava a especulação essencial para o progresso científico. [...]

[...]

No século I a.C., os chineses incrementaram a capacidade de trabalho de seus cavalos concebendo o arreio em colar que é utilizado nos animais de carga até hoje. [...]

Esse período assistiu, também, à invenção da manufatura do papel [...]. 

[...]

Algumas atividades industriais empreendidas na China desse período são de tirar o fôlego. Um exemplo que ilustra a escala e a ambição da antiga indústria chinesa foi a prática de perfurações profundas para se obter água salgada e gás natural. Por volta do século I a.C., os chineses eram capazes de utilizar brocas de trinta centímetros de diâmetro, com uma tubulação de bambu, a profundidades de cerca de 1,5 quilômetros. [...]

[...]

Para as massas camponesas, vivendo próximas à subsistência, o crescimento populacional não se fazia acompanhar de uma melhoria correspondente no padrão de vida. Colheitas malogradas e fome eram ameaças permanentes. Quando as safras efetivamente sumiam, o desespero levava a revoltas. A maioria era implacavelmente subjugada, mas algumas eram tão explosivas que derrubavam uma dinastia. [...]

O descontentamento de um campesinato oprimido não era o único problema que os governantes da China tinham de combater. Havia ainda a constante ameaça de inimigos além das fronteiras imperiais. [...] Uma das primeiras ações do imperador Shih Huang Ti, da dinastia Qin, em 221 a.C., fora desarmar o império [...] e fundir as armas confiscadas para a fabricação de sinos e estátuas. Tendo desse modo neutralizado toda potencial oposição doméstica, ele voltou sua atenção para a ameaça externa e ordenou a construção de uma "Longa Muralha". [...] Completada em 214 a.C., era tanto uma cadeia de torres de vigilância dominando as estepes de onde um possível ataque podia partir quanto uma afirmação para os estrangeiros de onde ficavam as fronteiras do império.

[...]

Rebeliões camponesas e invasões nômades não foram os únicos infortúnios enfrentados por essa grande civilização ao longo dos séculos. O enorme aumento da população - de menos de 20 milhões em 400 a.C. a mais de 60 milhões no ano 100 - refletiu-se no crescimento de grandes cidades, nas populações dessas cidades e na frequência de viagens entre elas. A consequência foi uma série de epidemias devastadoras, à medida que os exércitos chineses se aventuravam por regiões fronteiriças e uma sucessão de novos vírus e bactérias abriam caminho por concentrações urbanas de pessoas que não haviam adquirido imunidade. [...] Na China, como em outros lugares, a domesticação de animais e a invenção da vida urbana revelaram um lado muito mais sombrio do mundo.

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 111-120.

domingo, 25 de novembro de 2012

Índia antiga भारत

Buda, período Gupta

Por volta de 1500 a.C., um povo invasor entrou na Índia pelo noroeste. Eram pastores nômades com pele clara e que chamavam a si mesmos de arianos. Falavam um idioma pertencente à família linguística indo-europeia [...]. Por vários séculos após sua chegada, os arianos mantiveram um estilo de vida nômade baseada na criação de gado, e não foi senão por volta de 1000 a.C. que passaram a estabelecer povoamentos agrícolas. [...]

[...] O Mahabharata  [...] expõe a aventura mítica dos primeiros estágios da conquista da Índia. O Ramayana conta a história de um herói semidivino (Rama) e [...] (Sita), que é raptada por Ravena, o rei demônio do Sri Lanka. Ambos datam da mesma época dos épicos gregos [...].

Os outros grandes monumentos da antiga literatura indiana são os textos litúrgicos conhecidos como Vedas. Eles são o mais sagrado dos livros santos do hinduísmo, a primeira a surgir entre as grandes religiões mundiais. [...] Todos os Vedas foram escritos em sânscrito, uma língua clássica [...]. 

À medida que os invasores arianos se estabeleceram nessas novas terras, o desenvolvimento de sua cultura espelhou o dos gregos. Eles começaram a fabricar ferramentas e armas de ferro por volta de 1000 a.C. [...]. Eles se fixaram primeiramente no vale do Ganges, mas por volta de 400 a.C. seus povoamentos se estendiam bem mais ao sul, até o rio Godavari. O vale do Ganges tinha um clima mais úmido do que o do Indo, de modo que o cultivo básico era o arroz [...]. Agricultura fixa e tecnologia do ferro tornaram possível um substancial aumento na população. Por volta de 500 a.C., o conflito entre reinos tribais rivais resultara na consolidação de cerca de meia dúzia de Estados, cada um centrado em uma pequena capital defendida por muitos muros feitos com tijolos de lama.

Foi durante esse período de Estados em guerra que os livros sagrados da religião hindu assumiram a forma escrita. Até lá, seu conteúdo havia sido transmitido através das gerações de brâmanes, uma classe sacerdotal hereditária que constituía um dos patamares mais elevados no sistema de castas. A casta é uma rígida divisão em camadas da sociedade, remontando aos primórdios da invasão ariana [...].  O contato entre os membros de diferentes castas era limitado e estritamente controlado pelas normas sociais. Casamento entre pessoas de castas diferentes era raro. [...]

[...]

O hinduísmo é uma religião complexa e sutil. [...] Por ser mais antiga que outras, houve mais tempo para se desenvolver tal complexidade. [...] No imediatamente visível, o hinduísmo é uma complicada reunião de rituais e celebrações, permitindo a adoração de diversos deuses locais. Mas a religião tem outra face, que não é vista pelo observador casual. É a tradição filosófica de 3 mil anos, originada nos Upanixades, uma coleção de comentários sobre os Vedas, cujo tema é a busca pela verdade suprema e uma base para a moralidade. Para muitos hindus, essa busca é a essência de sua religião, não uma dada série particular de observâncias.

Por volta do século V a.C., outra religião surgiu no nordeste da Índia para se tornar uma das mais praticadas do mundo. Trata-se do budismo. Sua origem remonta aos ensinamentos de um príncipe do norte da Índia cuja família tinha por sobrenome Gautama. [...]

As opiniões e os ensinamentos de Gautama eram produtos da época e do lugar em que ele foi criado. O príncipe nasceu em uma sociedade em que o conceito de reencarnação [...] era um aspecto fundamental da crença religiosa. [...]

Diz a lenda que, quando estava com cerca de trinta anos, Gautama largou a esposa e o filho recém-nascido e partiu no meio da noite. Diz-se também que viajou por sete anos, vivendo uma vida austera e simples, na esperança de encontrar uma resposta para o problema do sofrimento por meio da meditação. A iluminação que finalmente afirmou experimentar levou-o a ser chamado de Buda ("o desperto").

Gautama aceitara inicialmente a ideia de que uma vida humana individual era somente um estágio em um ciclo sem fim, envolvendo o renascimento em diferentes formas. Mas ele acabou acreditando que o sofrimento e a desilusão eram consequências de desejos insatisfeitos, e de que o espírito humano podia escapar do perpétuo ciclo de renascimento sobrepujando o desejo [...]. Outra ideia pre-existente que foi incorporada pela doutrina do budismo era o de carma [...]. 

Um aspecto central do ensinamento de Gautama era a busca pelo Caminho do Meio: uma via entre os extremos da mundanidade absoluta e a autonegação estrita. Ele pregava a importância da meditação na busca do nirvana, um estado de paz e bem-aventurança, em que o espírito é capaz de ascender acima da dor e das desilusões da vida cotidiana. [...]

O budismo era basicamente uma religião sem deus, mas a necessidade que muitos seres humanos têm de alguém, ou algo, para adorar, posteriormente levaria à veneração de seu fundador como uma espécie de divindade. [...]

Nada promove mais uma religião do que a conversão de um soberano poderoso. No caso do budismo, esse impulso veio da notória conversão de um dos maiores soberanos da história indiana [...]: o imperador Asoka [...]. 

[...] A característica mais importante de seu reinado foi o infatigável empenho em persuadir pessoas de todas as crenças a trabalhar unidas em tolerância pelo bem geral [...]. Durante os 35 anos [...] no poder, ele se devotou à paz de seu reino e ao bem-estar de seu povo.

A admiração de Asoka pelo budismo não levou à criação de uma religião de Estado [...]. Tampouco conseguiu tomar o lugar do hinduísmo, muito mais antigo. Mas o prestígio associado ao encorajamento de um imperador, e o apoio ativo que ele proporcionou a seus missionários, resultou nas centenas de milhões de seguidores espalhados hoje pela Ásia Central, pelo Sudeste Asiático e pela China.

[...] O budismo ao qual aderiu manifestamente [...] pregava uma moralidade política que incluía a obrigação de combater a pobreza e a insegurança. Asoka tentou com afinco cumprir essa tarefa. Substituiu o princípio de conquista militar  por "conquista pelo darma" (o princípio da vida correta). Reduziu enormemente o tamanho de seu exército e direcionou os recursos excedentes para um grande programa de obras públicas: poços e tanques de banhos; hospitais (para pessoas e animais); hospedarias para os viajantes; e fontes de água para o gado. Promoveu a instrução feminina. Apoiou um regime de tolerância a todas as religiões e viajou amplamente por seus domínios, para observar por si mesmo a vida de seus súditos e assegurar a consecução de suas políticas. Designou comissários regionais, cujos deveres eram escutar queixas e prestar atenção especial às necessidades de mulheres e grupos minoritários. [...]

[...]

A dinastia Maurya, que terminou com Asoka, governou o mais populoso, e um dos mais prósperos, império que o mundo já vira. Na época de sua morte, a população da Índia girava em torno de 50 milhões de pessoas. [...]

[...]

No ano de 320, grande parte da Índia estava reunida sob uma nova dinastia, os Guptas. Os dois séculos que se seguiram foram um período de comércio ativo com países distantes, que renderam riquezas e luxos para os que se encontravam no topo da pirâmide social. Significaram também uma era dourada de realizações artísticas, com obras de arte à altura das que foram feitas por qualquer outra civilização na história. Entre elas figuravam magníficas esculturas de pedra e belíssimos objetos de cobre e bronze. [...]

A dinastia Gupta não foi notável apenas por suas realizações artísticas; foi também um importante ponto de escala na história da ciência. Ela testemunhou o reflorescimento das universidades que haviam trazido glória ao reinado de Asoka. Daí surgiu uma produção escrita que mais tarde inspiraria a cultura científica do islamismo, e por intermédio do islamismo a Revolução Científica na Europa. Ocupando posição de destaque entre as inovações científicas introduzidas pelos brilhantes matemáticos desse período está o sistema de notação que chamamos de algarismos arábicos. [...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 103-110.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Ifé

Há milhares de anos, na área ao sul, a sudeste e sudoeste dos rios Níger e Benué, habitavam povos de línguas edo, idoma, iorubano, ibo, ijó, igala, nupe, entre outras, originárias da família linguística níger-congo. Esses povos agricultores, produtores de sorgo, milhete, quiabo, feijão, inhame, dendê, organizavam-se fundamentados na linhagem , constituída pela família extensa com um antepassado comum. O conjunto de várias linhagens formava a aldeia, que tinha um chefe como representante político, eleito entre os mais velhos ou por ser descendente do fundador da comunidade. A união das pequenas aldeias compunha, assim, uma espécie de miniestado, inexistindo um poder centralizado.

As decisões referentes à vida coletiva no miniestado eram tomadas em conjunto pelos chefes das linhagens e pelos representantes dos grupos de idade e das associações de titulados. Os homens dividiam-se socialmente em grupos de idade (jovens, adultos e idosos). Os idosos eram os mais respeitados e responsáveis pelas questões políticas, judiciárias e religiosas. Por sua vez, nas associações de titulados, os homens que possuíam uma quantidade maior de bens ligados à terra, como produtos agrícolas e animais, recebiam títulos que apresentavam a sua riqueza e o seu poder na sociedade.

Cada miniestado tinha um chefe (oba, onu, ovie, etsu, oche, nas diferentes línguas faladas na região), escolhido entre aqueles que já haviam percorrido vários estágios nos grupos de idade e nas associações de titulados e pertenciam às linhagens mais importantes. Com o passar do tempo, esses miniestados expandiram o comércio, novos grupos foram fixados, proporcionando o aumento do poder do seu chefe, dando origem a uma cidade-estado.

Os principais reinos nessa região teriam se formado pela pressão de povos imigrantes e fortes militarmente, objetivando a expansão de seus domínios, invadiram e se impuseram aos miniestados, introduzindo instituições políticas novas centralizadas na figura de um rei.

Há indícios  arqueológicos de que Ifé foi formada desde o século VI, por pequenas aldeias agrícolas de modesto comércio. Somente mais tarde tornou-se um centro importante, em razão do desenvolvimento da metalurgia do ferro e também da sua localização geográfica na rota entre o alto Níger e Cotonu, passando a se configurar um entreposto comercial entre a savana, a floresta e o litoral. De Ifé para Gaô (ao norte), para as cidades hauçás e para os povos de Ijebu (ao sul) eram levados ouro, marfim, dendê, sal, pimentas, noz-de-cola, inhame, escravos, contas de pedra e vidro, peixe seco e gomas.

Ifé também era, além de uma cidade-estado, um centro religioso que recebia tributos e congregava outros miniestados, que acreditavam na existência de um ancestral comum - o rei Odudua. De acordo com uma das várias versões para a origem de Ifé, o rei Odudua teria sido filho de um dos reis de Meca e o grande fundador do reino de Ifé, depois de perseguido e expulso da sua cidade natal por rejeitar o islamismo. Outra versão revela que Odudua era líder de um grupo em expansão vindo da Hauçalândia, Bornu, Nupe ou Canem e que conseguiu centralizar o poder em suas mãos e fundar Ifé.

As imagens em bronze, cobre e, sobretudo, terracota produzidas em Ifé, datadas por volta dos séculos XI ao XV, tornaram-se referências da arte subsaariana. Essas esculturas sofreram a influência da cultura Nok, datada do primeiro milênio a.C. As figuras humanas, que, provavelmente, representavam reis e cortesãos, possuíam traços perfeitos, harmoniosos, e eram adornadas com contas e panos em partes do corpo. Algumas esculturas traziam na face sinais, como se fossem linhas, que ligavam os cabelos ao queixo.

Cabeça de homem, provavelmente um servo do rei. Escultura em terracota da civilização Ifé, séculos XII-XIV (Nigéria)

Existiam também cabeças de animais com uma roseta saliente na testa, simbolizando a realeza, feitas em tampas para recipientes de barro utilizados em rituais religiosos. Esses potes eram enterrados, em homenagem a um determinado deus, nos palácios e nas casas, em pátios cobertos por piso de cerâmicas e com altares circulares.

Ifé sofreu um declínio econômico e talvez tenha sido substituída, a partir do século XVI, por Oió nos contatos comerciais entre a savana e a floresta e, por Benin e Ijebu no comércio com o sul. Contudo, continuou a figurar como um importante centro religioso.

MATTOS, Regiane Augusto de. História e cultura afro-brasileira. São Paulo: Contexto, 2008. p. 36-38.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

"Classes perigosas" e polícia

Uma cena na União Westminster, (workhouse), 1878,  Sir Hubert von Herkomer

Uma sociedade que teme as classes subalternas, desconfia sobretudo dos pobres. Na Idade Média, a pobreza era considerada uma virtude; porém, desde o século XVII, começou-se a vê-la como um perigo social. Na maior parte dos países da Europa ocidental, produziu-se o que se chamou "a grande reclusão". Na França, encerraram-se os pobres hospitais gerais, onde rezavam e trabalhavam. Na Holanda, eram anunciados para alugar. Na Espanha, eram enviados forçadamente para remar ou trabalhar na marinha real, quando aptos (sendo que, para isso, não era necessário haver cometido outro delito além de ser pobre). Na Inglaterra, criou-se um sistema de leis dos pobres que se subordinavam à assistência da comunidade, que podia levar o pobre a uma workhouse ou "casa de trabalho", suja e triste, onde realizava tarefas irracionais e inúteis. O guarda da workhouse podia alugá-los a quem os quisesse, embolsando seu soldo em troca da manutenção, de maneira que só os que eram realmente inúteis ficavam internados. Na workhouse seria experimentado o tipo de controle disciplinar do trabalho próprio da fábrica, que seria sua filha direta. Em 1834, a nova lei dos pobres limitava a assistência aos velhos e aos inválidos, determinando que qualquer homem fisicamente apto devia ser obrigado a trabalhar na workhouse, onde as condições eram muito piores que as de trabalho de rua, com a intenção de que só fossem procuradas em caso de extrema necessidade. A trilogia das instituições "domesticadoras" da nova sociedade industrial britânica era integrada pela workhouse, pela fábrica e pelo cárcere, às quais se acrescentaria, mais tarde, a escola. 

Um grupo de crianças na Crumpsall Workhouse, 1895-1897

Na França, o sistema repressivo do Antigo Regime estava integrado pelos bôpitaux généraux, pelos dépots de mendicité e pelas prisões de mulheres. Os bôpitaux tinham uma função mista de prisão, hospital e asilo. Nos dois maiores de Paris, Bicetre para os homens e Salpetrière para as mulheres, havia ao mesmo tempo presos e sifilíticos, mesmo que os presos estivessem numa parte vigiada. Os dépots de mendicité acolhiam pobres e os tratavam mal. Uma mostra da função social que a repressão tinha na França - e uma prova de sua aceitação social - nos dão as "lettres de cachet", por meio das quais o rei, a pedido dos familiares, prendia um homem ou uma mulher de vida irregular no cárcere, com o fim de corrigi-lo, sem investigação preliminar ou julgamento. Anteriormente, acreditava-se que este era um sistema empregado exclusivamente pelas boas famílias, que enviavam os filhos desencaminhados à Bastilha - onde foi parar Sade, por exemplo: porém, verificou-se que inclusive os pobres costumavam utilizá-lo para prender os parentes doentes.

Enquanto os franceses começaram, com Napoleão, a organizar uma polícia encarregada da manutenção da ordem pública, os ingleses tentaram conservar o velho sistema repressivo, que era mais barato e parecia respeitar melhor a liberdade privada. O código sanguinário inglês de princípios do século XIX, com a multiplicação dos delitos que podiam ser castigados com a morte, seria a última tentativa de alternativa repressiva "liberal" e antiestatal.

Porém, desde meados do século XVII, ficava evidente que o Estado britânico era incapaz de conter os delinquentes. O contrabando, estimulado por taxas muito elevadas, era praticado com uma frota de 120 grandes embarcações (que levavam até 100 homens e 14 canhões) e de duzentas menores, com a colaboração de grupos de homens armados que asseguravam o desembarque, enquanto que os funcionários assistiam a tudo, impotentes. No século XVIII, Londres era uma cidade sem lei, onde florescia o crime e onde a captura de delinquentes se confiava aos "caçadores de ladrões" profissionais. Tão frequentes eram os roubos que Jonathan Wild montou um negócio em grande escala: assessorava os ladrões, tinha bandos inteiros a seu serviço, liberava da prisão e da execução quem ia ser condenado, fazendo-lhes o julgamento vendendo os produtos do roubo aos próprios roubados. "Aqui os roubados buscavam audiência do único que lhes podia prometer a restituição; aqui os ladrões se reuniam como trabalhadores numa fábrica para receber o pagamento pelo trabalho realizado". Começou a atuar em 1715; em 1717, promulgou-se uma lei que condenava à morte a quem se fizesse de intermediário entre as vítimas e os delinquentes, porém Wild continuou agindo até 1725, data em que foi condenado por haver cometido o erro de proteger um bandido. Nas cidades, havia, além disso, refúgios que permitiam manter-se fora do alcance da lei: quando, em 1723, suprimiu-se a prisão por dívidas menores de 50 libras, milhares de pessoas saíram do bairro de Londres onde haviam se refugiando e viram-se caravanas de carros, cavalos e gente a pé, como o êxodo de uma tribo de Israel.

Logo se percebia quais eram os riscos desta falta de controle da população urbana: em 1780, por motivo das revoltas de Gordon contra os católicos, Londres ficou durante duas semanas nas mãos dos assaltantes e saqueadores, até que se enviou o exército para estabelecer a ordem. Não é de admirar que, vencendo seus preconceitos "liberais", os ingleses começaram a criar um sistema policial "à francesa", semelhante aos que seriam criados em outros países da Europa depois de 1814, primeiramente com finalidades de política contra-revolucionária, porém, logo, dedicados a vigiar e combater o que a sociedade burguesa definira como as "classes perigosas", integradas principalmente pelos considerados marginais difíceis de integrar, de acordo com alguns estereótipos que pretendiam converter o delito num fato biológico, em criminosos natos, rostos repugnantes, vestimenta peculiar e, muito especialmente, este elemento sempre suspeitoso, por ser diferente, que é o estrangeiro.

FONTANA, Josep. Introdução ao estudo da história geral. Bauru: EDUSC, 2000. p. 285-288.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Do Romantismo ao Realismo

O Violeiro, Almeida Junior

O reinado de Dom Pedro II foi um período de calmaria social. Somente a partir das últimas décadas, começaram a surgir as tensões entre as camadas dominantes, enquanto nos livros de polêmica ou de poesia (nestes últimos, destacando-se a figura de Castro Alves, o último grande poeta romântico) manifestou-se a crise de transição política.

Na Europa, esgotaram-se o tema e a moda do romantismo. A burguesia - já instalada no poderio econômico - passou a ter sua expressão artística numa nova escola denominada Realismo. Artistas plásticos, poetas, romancistas e músicos procuravam livrar-se dos exageros românticos e instaurar uma estética mais adequada às exigências do progresso material que a industrialização trouxera. Paradoxalmente, se este propósito representou, na prosa de ficção, um surto de grandes obras realistas, na poesia o resultado foi o surgimento de um movimento ultraformalista: o Parnasianismo.

Tudo isso ecoou no Brasil. Não podíamos deixar de imitar o que se passava lá fora. E, nesse clima de imitação, evidentemente restava pouco terreno para a criação de obras originais. A produção literária dos últimos anos do império e dos primeiros da república foi marcada pela obra ficcional de Machado de Assis. Nos romances deste mulato genial aparece, de maneira sutil, irônica e mordaz, toda uma situação social de valores em decadência, toda uma crise que se insinuava sob a capa da polidez reinante. Machado refletiu uma contradição bem própria de sua época: como funcionário público que era, não podia assumir posições nitidamente contrárias ao regime, mas sua pena registrava implacavelmente, em artigos e crônicas, nos romances e principalmente nos magistrais contos, a falsidade do moralismo vigente. As histórias machadianas são relatos de adultério, de crise de consciência pequeno-burguesa, enfim, de vidas sem nenhum heroísmo, de homens mesquinhos e mulheres falsas, como o Bentinho e a Capitu de Dom Casmurro. Nesse sentido, além do especificamente literário - com seu estilo "clássico" - Machado de Assis foi realmente um autor original e pode até mesmo ser considerado um dos mestres mundiais d gênero conto.

Ainda na fase final do Segundo Reinado, começou a tomar corpo na literatura brasileira um tema que depois seria importantíssimo para a afirmação da arte nacional: o Regionalismo. Autores como Manuel de Oliveira Paiva (Dona Guidinha do Poço) e Domingos Olímpio (Luzia-Homem), embora pouco conhecidos, são muito importantes por seu caráter de precursores no gênero regional. Outros, mais conhecidos como Bernardo Guimarães (A Escrava Isaura) ou o visconde de Taunay (Inocência), na esteira de José de Alencar (O Sertanejo, O Gaúcho), praticaram um tipo de ficção em que o tema regional servia de pretexto para um moralismo de sabor romântico já ultrapassado.

Esses movimentos, da mesma forma que os das épocas anteriores, tinham pouca ou nenhuma correspondência em outras formas de arte que não a literatura. O próprio teatro (que, depois das comédias de costumes de Martins Pena, entrou num longo período de estagnação da criatividade) era considerado um subgênero das letras. Mesmo assim, Alencar e Machado escreveram comediazinhas que hoje pouco representam para nós. Artur Azevedo, com suas comédias satíricas, foi quem melhor cultivou esse gênero, aparecendo como o único autor expressivo na fase de transição republicana.

Como decorrência do Realismo e levando até as últimas consequências as próprias estéticas do movimento, chegou até nós, nessa mesma época, o Naturalismo, que procurava fazer um registro quase "fotográfico" da realidade social, principalmente de suas mazelas. O Naturalismo brasileiro significou um grande avanço, por ter sido o primeiro movimento literário a colocar como protagonista das narrativas uma camada social que até então permanecera ignorada pelos artistas: o proletariado urbano. Aluísio Azevedo, com o O Cortiço e outros romances, foi um naturalista de primeiro plano.

Na poesia [...] a direção seguida foi inversa. O culto da forma pura, dos sonetos com "chave de ouro" e "rimas ricas" levou a um verdadeiro afastamento da realidade social. Poetas como Olavo Bilac e Alberto de Oliveira buscavam sua inspiração em temas gregos clássicos, isto já no limiar do século XX, com a eletricidade, a industrialização, as novas classes sociais em emergência...

Este período de fim de século, contudo, foi marcado justamente por essa contradição estética que desembocaria em dois caminhos. Por um lado, um tipo de produção artística voltada para si mesma, satisfeita e bem-pensante - a arte e a literatura "sorriso-da-sociedade", o mundanismo e o cosmopolitismo. Por outro lado, um tipo de pesquisa mais séria, que o desenvolvimento dos estudos de nível superior já propiciava, com críticos e historiadores do quilate de um Silvio Romero e um Capistrano de Abreu; e, além disso, uma busca das raízes populares da nossa criação artística, através dos primeiros estudos mais sérios de folclore. Esta segunda vertente, aliás, correspondia ao maior grau de expressão alcançado pela cultura popular urbana. Organizavam-se os grupos de bairro que dariam origem às sociedades carnavalescas, às escolas de samba, aos conjuntos de chorinho. E começava a tomar impulso a prática daquele que seria o nosso grande esporte nacional: o futebol.

ALENCAR, Chico et alli. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 193-195.

domingo, 18 de novembro de 2012

Amor entre iguais no Brasil: dos anos 30 à década de 70

As duas irmãs ou no verão, Eliseu Visconti


E os homens que amavam homens e mulheres que amavam mulheres? Discretos, quando não perseguidos, e vítimas de toda a sorte de preconceitos, esses grupos tiveram de viver seu amor nas sombras, pelo menos até os anos 60. Não faltaram tratamentos médico-pedagógicos sugeridos - agregados à religião -, como remédios para a "inversão sexual". O transplante de testículos, por exemplo, era uma dessas receitas "científicas" para o "problema". Outra era a convulsoterapia, ou injeção de insulina para "curar" o que se considerava, então, um comportamento esquizofrênico. Outra opção era o confinamento em hospícios psiquiátricos. A despeito do sofrimento e da incompreensão a que eram submetidos, homossexuais buscaram espaço para seus relacionamentos e, na medida do possível, para viver seus amores. Ouçamos o depoimento de Zazá, "pederasta", como se dizia na década de 1930, que, menino, vai morar em São Paulo:

"Começei a amar um rapaz moreno, de olhos negros, gracioso! E a minha paixão foi crescendo! Eu ia morrendo de amor. Que coisa sublime o amor! Mais que amor, mais que loucura, eu tinha por ele! Quantos ciúmes!´Até da sua sombra! Se eu brigava e me separava dele, era por umas horas apenas, porque eu não resistia à separação e logo corria a implorar-lhe que não me deixasse. Eu morreria se ele abandonasse a mim".

O interessante, sublinha o historiador James Green, é que entre a década de 1930 e a de 1960, houve alterações significativas na composição e no desenvolvimento das subculturas homossexuais em grandes centros, como Rio de Janeiro e São Paulo, centros que acabavam por atrair migrantes homossexuais de todo o Brasil. A pressão que sofriam em suas localidades de origem, para arrumar namoradas ou casar, levava muitos homossexuais a profundas crises familiares ou de saúde, obrigando-os a partir rumo à cidade grande. Ir para os centros em busca de trabalho, mas, sobretudo, para escapar à pressão familiar, era a meta para muitos.

Em Frederico Paciência, escrito em 1924 e revisto várias vezes antes de sua publicação póstuma em 1947, Mário de Andrade narra a história romântica de dois estudantes que se separaram sem consumar seus desejos, exceto por alguns beijos e abraços furtivos. A distância geográfica porá um fim na relação, permitindo ao autor expressar, em um dos personagens, o alívio diante da possibilidade de ter de se assumir como homossexual. Alívio de muitos que se viam constrangidos por seu meio familiar e social. Alívio, segundo vários autores, autobiográfico.

Nos anos 40, multiplicaram-se as opções de vida noturna, com bares e pontos de encontros exclusivos. No Rio, a chamada Bolsa de Valores, em um trecho da praia de Copacabana em frente ao hotel Copacabana Palace, ou o Alcazar, agrupavam-se os jovens que se exibiam, escolhiam, conversavam e namoravam. Em São Paulo, o Paribar e o Barba-Azul, agregavam jornalistas, intelectuais e estudantes, em uma fauna animada e sem preconceitos. Cinemas, como o Art-Palácio, ofereciam um espaço onde homossexuais podiam encontrar um parceiro para encontro furtivo ou iam "à caça", em territórios como o largo do Arouche e do Paiçandu ou na avenida Nossa Senhora de Copacabana, onde os banheiros públicos abrigavam amores rápidos. Fã-clubes de cantores de rádio e de artistas de cinema aproximavam os casais que iam torcer por Marlene, Nora Ney ou Emilinha Borba. Travestis glamurosos encantavam a imprensa e o público nos bailes de Carnaval. Apesar de poder circular livremente e de desenvolverem uma rede de sociabilidades bastante animada, a "fechação" ou qualquer manifestação de afeto era reprimida em público. Sobravam os pequenos apartamentos onde se recebiam amigos, namorados ou casos.

No verão ou menina com ventarola, Eliseu Visconti


No cenário urbano encontrava-se todo o tipo de parceiro. A preferência pelo bofe ou "homem verdadeiro" que não assumia a identidade homossexual era marcante. "Gosto ainda da praia do Flamengo. Mais bofe, mais homem do que em Copacabana, mais humilde, mais gostoso" - já dizia um homossexual a um pesquisador, nos anos 50. Para muitos, o alvo era o tal "homem verdadeiro", "quente" e o desafio consistia em tentar seduzi-los, com drinques ou dinheiro. Invertendo o papel tradicional de passivos, os homossexuais iam à luta para conquistar sua presa, investindo todo seu potencial sedutor.

Convencer uma pessoa a fazer sexo era apenas uma etapa do processo de sedução. Depois, era preciso encontrar um lugar para ir. Os que não tinham um teto, eram obrigados a usar os espaços públicos. "Não havia hotéis específicos para gays como agora. Transava-se em hotéis improvisados, mas também frequentados por heterossexuais. Hotéis mais baratos sempre permitiam hospedar dois caras por uma noite, às vezes passava-se o fim de semana. Na rua 7 de setembro, lembro, havia um hotelzinho chamado São Tião, a gente ia com muita discrição e ficava hospedado com um cara", narrou um depoente.

Casamentos, nessa época? Em uma obra publicada em 1947, Homossexualismo masculino, texto apresentado em um seminário sobre Medicina Legal, o autor Jorge Jaime, apesar do caráter preconceituoso - "Coitados" Infelizes, só adoram machos e por eles se apaixonam" - propõe algo inédito: os homossexuais deveriam ter o direito de se casar.

"Existem milhares de invertidos que vivem maritalmente com indivíduos do seu próprio sexo. Se fosse concedido o casamento entre homens não se criaria nenhuma monstruosidade: apenas, se reconheceria por um estado de direito, um estado de fato [...]. A união legal entre doentes é um direito que só os países ditatoriais negam. Se os leprosos podem casar entre si, porque devemos negar esse direito aos pederastas? Só porque aos normais repugna um ato de tal natureza?"

Tinha uma lógica curiosa, Jorge Jaime. O casamento entre homossexuais teria outras vantagens, além de sinalizar a anormalidade do casal: evitaria a prostituição masculina, impedindo, ao mesmo tempo, que jovens inocentes se casassem com "invertidos". Em tom liberal, Jaime defende:

"Um uranista só é feliz na convivência dos homens que lhes saciam os instintos. E muitos homens sentem-se mais felizes quando têm relações com uranistas do que com mulheres. Então, por que não os proteger legalmente? O Direito foi posto na Terra para regular interesses recíprocos. Hoje mais do que em época alguma, tem evoluído muito o conceito de família e já se acha mais importante a felicidade que a moral".

Mas a pá de cal não tarda. Jaime prossegue implacável, "Mas haverá realmente felicidade onde existem fissuras anais e líquidos gonococos?". Seus argumentos são os mesmos de seus colegas, da geração anterior. Homossexualismo é doença.

Os rígidos códigos morais da época acentuavam, entre casais e pelo menos até os Anos Dourados, a dupla bofe e boneca. As bonecas estavam em busca de bofes, ou rapazes como parceiros e companheiros, sabendo que a maioria de seus "maridos" acabaria por deixá-los em troca de casamentos e filho. Agildo Guimarães, editor do jornal O Snob, relembra que os bofes não se consideravam homossexuais, e as bonecas estavam interessadas em "homens verdadeiros":

"Em algumas relações de bichas e bofes, o casal se juntava só nos fins de semana, ou se reunia à noite na casa de um amigo ou num hotel para ter relações sexuais. O bofe fazia coisas de homens, consertos. A bicha não fazia porque não sabia ou porque deixava ele fazer. A bicha cozinhava, arrumava a casa. Alguns bofes não eram tão bofes assim e ficaram junto com bichas durante muitos anos. Outros bofes se casaram e mantiveram relações sexuais eventualmente porque eram casados, Gostavam ou da pessoa ou da relação homossexual. Eu acho que eles tinham uma tendência homossexual, só, mas devido à sociedade tinham medo de se declarar".

Nesse mundo de bonecas e bofes a ideia de dois bichas praticando sexo era tão repugnante para as bonecas quanto para a população heterossexual a ideia de casais homossexuais. Era incompreensível para as bonecas que dois homens quisessem se amar. "Bicha era bicha. Bofe era bofe. Bicha não podia ser bofe e bofe não podia ser bicha, Mas conhecemos um casal, onde os dois eram bofes. Era um escândalo, um absurdo. A bicha sempre tinha que ficar passiva", explicava Guimarães sem, aparentemente, se dar conta de que a rigidez dos papéis vigorava, também, no mundo dos amantes heterossexuais. [...]

Ao fim da década de 1960, o binômio bicha e bofe começa a dar lugar a papéis mais complexos. Surge a palavra "entendido" para designar o homossexual que não assumia nem um nem outro papel de gênero, mas que transitava bem de um para o outro. Entendidas eram também como se autodenominavam as tríbades. Cenas de homossexualismo feminino já tinham sido sugeridas em Melle Cinema, romance dos Anos Loucos [...]. Para além da literatura, pouco se sabe sobre o universo amoroso das homossexuais femininas [...]. O preconceito contra a mulher homossexual era brutal: perda dos filhos, no caso das casadas; insegurança econômica, no caso das remediadas, brutal pressão familiar para que arranjassem namorados, noivos e maridos. Mulheres brilhantes, como a arquiteta Lota Macedo Soares e a poetisa americana Elizabeth Bishop, tiveram de viver sua relação às escondidas. Muitas burguesas fugiram para o interior. Petrópolis, no Rio de Janeiro, acolheu alguns casais. Não foram poucas as espancadas por pais, maridos ou filhos revoltados com a situação. Não foram poucos os suicídios em que um bilhete deixado aos parentes revela o desespero de jovens, massacradas com a intransigência familiar. É preciso esperar o fim da década de 1970 para as "enrustidas" começarem a atuar politicamente e a falar de seus amores.

PRIORE, Mary Del. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 296-300.


sábado, 17 de novembro de 2012

Em direção à Polinésia / Ilha de Páscoa / Maoris

Moais, Ilha de Páscoa

O mundo ainda encontrava-se dividido em centenas de minúsculos mundos que eram quase independentes. Enquanto a Europa e a China formavam cada uma grandes mundos, com o tráfego fluindo entre si, a África, as Américas e a Australásia consistiam de vários mundos pequenos e isolados [...].

[...] Em toda a história humana, houve somente três grandes passos que cruzaram os mares para povoar grandes terras desabitadas: um foi a migração, há mais de 50.000 anos atrás, da Ásia para a Nova Guiné e Austrália, outro foi a migração da Ásia para o Alaska há mais de 20.000 anos, seguido pela lenta ocupação de todo o continente americano; o terceiro, em tempos bem recentes, foi a migração dos povos da Polinésia para uma extensa faixa de ilhas desabitadas dos oceanos Pacífico e Índico. Uma das marcas de que essa migração é recente é que ela aconteceu na era cristã [...].

[...]

A lenta migração em direção às ilhas começou no sul da China, de clima tropical e coberta de florestas. [...] Uma vez em terra, eles estabeleciam seus modos de vida [...]; faziam suas próprias ferramentas de pedra, sabiam fazer o tipo de cerâmica na época comumente usada na China e, provavelmente criavam porcos, galinhas e cães. Não há dúvidas que eram hábeis na navegação. [...]

Sua sucessão de viagens lentamente movia-se para o leste, intermitentemente, de ilha em ilha. Nos mil anos que se seguiram, esses povos do mar chegaram às ilhas das Filipinas, das quais pedaços de terra foram limpos para plantações. [...] Nesses lugares, os habitantes existentes foram derrotados em guerra, reduzidos por novas doenças, empurrados para as colinas menos favoráveis ou simplesmente absorvidos nas classes dos povos invasores.

[...]

As viagens desses povos, apinhados em suas canoas, seguiam um tipo de lógica. Aventurando-se rumo ao leste, eles tinham a probabilidade de descobrir ilhas, habitadas ou não, de clima tropical e vegetação como a que tinham acabado de deixar para trás. Na fase inicial da migração, os ventos também foram favoráveis. [...]

A lenta rota da migração equatorial chegou à ilha de Nova Guiné, já há muito povoada, ocupando algumas partes da costa por volta de 1600 a.C. Em seguida, entrou na região das ilhas tropicais, onde nenhum ser humano vivia. Em 1200 a.C., as velas marrons de seus barcos já se encontravam nas vilas costeiras de Nova Caledônia, Tonga, Fiji, Ilhas Salomão e Samoa. Em 500 d.C., seus barcos foram vistos em torno do Havaí e da Ilha de Páscoa. [...]

Ao longo de uma linha de ilhas que formavam um tipo de Via Láctea cruzando o Pacífico, esses marinheiros deixaram para trás evidências eloquentes de suas origens. Mesmo hoje, desde as partes isoladas das montanhas de Taiwan até a Ilha de Páscoa e a Ilha Pitcairn, a leste, a família de línguas austronésias sobrevive.

Para os polinésios, o fato de encontrarem a presença de vulcões na Ilha de Páscoa foi um triunfo especial. Era um mero ponto no oceano, a 1600 quilômetros da terra habitada mais próxima. Um dia densamente arborizada, tornou-se tão desmatada pelos novos colonizadores que, no final, seus imponentes monumentos não eram antigas árvores, mas estátuas de pedra, em torno de seiscentas delas no total. [...] Na língua e na sociedade, os habitantes da Ilha de Páscoa eram polinésios, mas suas estátuas e sua forma de escrita sugerem um antepassado ou influências diferentes.



Os polinésios iam desde tribos que viviam em conflito entre si a fortes monarquias que governavam muitas ilhas. O Havaí, com talvez 200.000 mil habitantes ou mais, era praticamente uma monarquia na época da chegada dos primeiros europeus. [...]

Durante essa longa temporada de migrações, outros exploradores alcançaram a imensa ilha desabitada de Madagáscar. A nordeste de Madagáscar, o mar contínuo se estendia até o arquipélago indonésio, a cerca de 5000 quilômetros de distância. [...]

A primeira viagem a Madagáscar, favorecida pela monção de nordeste, aconteceu quando a cidade de Roma estava em rápido declínio, por volta de 400 d.C. [...]

Madagáscar e Nova Zelândia foram as últimas áreas habitáveis de tamanho considerável a serem descobertas e colonizadas pela raça humana. [...] Triunfos na história das navegações humanas eram parte de uma saga de descobrimentos e migrações que praticamente se findaram por volta de 1000 d.C.


Dança de guerra maori, Nova Zelândia, Joseph Jenner Merrett

[Maoris] Do mar, os vilarejos fortificados dos primeiros maoris devem ter sido facilmente avistados. Alguns ocupavam promontórios estreitos e, portanto, eram rodeados nos três lados pelo mar, sua primeira linha de defesa. A subida íngreme e geralmente perpendicular da praia ou dos rochedos até o forte era a segunda linha de defesa. A terceira linha de defesa ainda mais alta era uma cerca de mourões resistentes bem construída, com uma fileira de piquetes de madeira entre si, fincados no chão em espaçamento regular. [...]



Discurso de guerra, Augustus Earle.
 Um chefe Maori em pé numa canoa encalhada, abordando uma multidão de guerreiros, principalmente sentados, com alguns em pé. Duas outras longas canoas estão na praia, e uma com vela está no mar. Um cão (kurī) fareja o chão em primeiro plano. A maioria dos homens estão armados. Uma cabaça e kit de linho são centralmente posicionados entre um grupo de homens.  Earle diz: "um grupo de guerreiros tinha coletado na Baía das ilhas com a finalidade de fazer uma visita hostil a uma tribo de Hauraki. Eles foram detidos por ventos contrários; e por vários dias estavam constantemente envolvidos em ouvir os discursos de seus chefes, que lhes de uma canoa transportada na praia... uma [canoa], que eu medi, tinha 70 metros de comprimento e carregava cem homens a lutar." Augustus Earle

Nos pontos mais altos do vilarejo havia residências de madeira, com depósitos espalhados em alguns lugares. Os depósitos ficavam sobre plataformas para que os ratos não pudessem roubar alimentos [...]. As casas em si, com seus telhados inclinados feitos de sapê, não tinham paredes e deixavam entrar a brisa do mar. [...]

Taupiri, George French Angas

[...]

Uma enorme extensão de terras no interior era necessária para abastecer cada tribo ou vilarejo com alimentos. Os pomares eram cavados com pedaços de pau compridos, de formato semelhante a um pé-de-cabra. A camada superficial do solo era, então, empilhada em fileiras perfeitas com uma pá de madeira e o solo removido plantado com tubérculos. A kumara era o mais valioso desses vegetais. Semelhante a um inhame ou batata doce bem comprido, com uma das pontas ligeiramente grossa e a casca externa rosa-avermelhada, plantava-se a kumara em dias ditados pela fase da lua.


Harriet, esposa de Heke, Hona Heke e Kawiti. Joseph Jenner Merrett

[...] Nas ilhas do Norte e do Sul, o enorme pássaro moa, capaz de correr com grande velocidade, mas incapaz de voar, era uma presa fácil dos caçadores maoris. [...]

Os maoris caçaram o moa com tanto vigor que, por volta de 1400 ou 1500, a espécie estava praticamente extinta. As águias de asas compridas que caçavam os filhotes de moa também estavam condenadas; já não se viam mais águias sobrevoando a região quando os primeiros colonizadores europeus ali chegaram.


Casa de Otawhao, construído por Puatia, para comemorar a tomada de Maketu.  Mostra uma casa esculpida, chamada de wharepuni ou wharenui. George French Angas e J. W. Giles

Não possuindo cerâmica, os maoris usavam a casca externa das cabaças que, no verão, cresciam das trepadeiras que se esparramavam nos telhados das casas ou pelos pomares plantados. Não tinham rebanhos [...]. A pedra tinha de ser usada em vez do metal, e era modelada ou manufaturada com habilidade de artesão [...]. 

Os europeus que viram os polinésios, quando seu modo de vida estava prestes a mudar, ficaram impressionados com sua coragem. Os observadores também notaram a violência dos polinésios: os sacrifícios humanos e o canibalismo. [...]

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 101-106.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Cultura popular e vida cotidiana na Europa moderna

O Renascimento, que marcou a cultura europeia da época moderna, impregnou-a de valores eruditos e elitistas.

Até por volta da segunda metade do século XX, a historiografia tradicional nem sequer levantava questões sobre a vida das pessoas comuns. Atualmente, porém, as questões envolvendo a vida, as ações, os sentimentos e as concepções de homens e mulheres comuns constituem um dos principais campos de estudos históricos, gerando novos temas, como a história dos oprimidos, excluídos, marginais e vencidos. Isso indica um tipo de avaliação qualitativa sobre o sentido histórico da expressão povo em oposição à história dos grandes homens, isto é, os vencedores, dominantes, opressores e heróis.

Essa nova abordagem requer, também, a utilização de novos tipos de documentos e/ou uma nova leitura dos documentos tradicionais. Nesse sentido, há dois tipos de fontes fundamentais: as obras de arte - literatura e artes visuais -, que em geral registram a vida das pessoas comuns, incluídas no conjunto da sociedade; e os documentos jurídicos e inquisitoriais, entre os quais se encontram processos contra os transgressores das normas vigentes, isto é, os oprimidos e marginalizados.


A leiteira, gravura de 1510 do artista holandês Lucas de Leyde.

* Homens e mulheres comuns. Os grandes (como os reis) eram poucos e quase todos aparentados. Podem, assim, ser conhecidos em suas individualidades. Já o povo, formado pelos mais diversos grupos e categorias sociais - que em muitos casos nem a mesma língua falavam, é mais facilmente conhecido por meio de tipos, componentes de uma multidão (camponeses, soldados, artesãos).

Dois setores fornecem alguns tipos mais significativos da cultura popular e do modo de vida de homens e mulheres comuns, na época moderna: o trabalho e a feitiçaria.

* Trabalho e cultura popular. O trabalho era o principal elemento de identificação da parte da população conhecida como povo. Na Europa moderna, 80 a 90% dessa categoria ainda era constituído por camponeses. Entretanto, a importância dos trabalhadores urbanos foi crescendo gradualmente.

Na época moderna, o campo e a cidade partilhavam de uma identidade popular comum, conferida por sua posição frente aos poderosos. Para estes, o trabalhador, do campo ou da cidade, seria o povo e, como tal, alguém a ser sobretudo controlado.

Embora partilhassem de uma identidade comum, camponeses e cidadãos (habitantes da cidade) hostilizavam-se. Ou melhor, os cidadãos desprezavam e discriminavam os camponeses.

- A vida nos campos. Entre os camponeses havia uma diversidade muito grande, conforme as regiões que habitavam e as atividades que desenvolviam. Os homens do campo eram agricultores, artesãos, pastores, mineiros. Entre eles havia muitas diferenças culturais e antagonismos.

Os agricultores estavam ainda muito marcados pelas estruturas feudais, algumas das quais persistiram durante toda a época moderna. Entre os pastores, porém, eram raros os servos da gleba; já os artesãos levavam vida itinerante, praticando seu ofício em diferentes aldeias.

Cada grupo desenvolvia culturas distintas e próprias. As canções, poesias, danças e outras manifestações populares revelam uma extraordinária diversidade de condições de vida e visões de mundo.

De modo geral, a cultura popular camponesa apresentava profundos vínculos com as tradições pagãs, notadamente nos aspectos religiosos. Muitos mitos e práticas rituais cristãs eram adaptações ou mesmo transposições de cultos e lendas referentes às antigas divindades e seres sobrenaturais. Por isso, no imaginário popular moderno, o espaço do campo era habitado por seres fantásticos (duendes, anões, gnomos, fadas, bruxas, magos e prestidigitadores de toda sorte) que interagiam e interferiam na vida dos seres humanos. Acreditava-se que percorriam os campos e as aldeias, às vezes auxiliando, mas quase sempre causando medo e prejuízos aos habitantes.

Esses seres eram considerados poderosos, podendo ser conjurados por meio de mágicas e sortilégios, tanto para fazer o bem quanto para provocar malefícios.

- O cotidiano nas cidades. Embora ainda vigorassem instituições e normas feudais na regulamentação dos ofícios e da prática do comércio, as atividades nas cidades eram cada vez mais desenvolvidas de acordo com as novas exigências capitalistas. O trabalho assalariado tornou-se predominante, e a produção manufatureira submeteu-se às necessidades do comércio, ficando mais sob o controle de quem vendia as mercadorias do que de quem as produzia.

A cultura popular nas cidades apresentava-se, mais do que no campo, extremamente diversificada. Apesar das modificações das formas de trabalho, os artesãos urbanos continuavam organizados em corporações ou guildas que, além de defender os interesses da categoria, eram responsáveis por manifestações culturais específicas.

As festas, a arte, a religião ensejavam os mais diferentes tipos de manifestações culturais da população urbana, cujos registros - alguns recolhidos bem posteriormente - compõem uma espécie de patrimônio constituído de poemas, canções, pinturas e peças de teatro que representam a modernidade tanto quanto as belas-artes clássicas do Renascimento.

* Feitiçaria e Inquisição. O crescimento da massa trabalhadora, do qual dependia o desenvolvimento econômico das nações modernas, e as mudanças em sua condição de vida eram ensejos para muitas situações de conturbação da ordem e conflitos, sobretudo quando havia carestia ou escassez dos gêneros de subsistência. Ou, no contexto das reformas religiosas, quando havia contestação às igrejas oficiais.

Nessas ocasiões, os trabalhadores eram tratados como transgressores, tanto da ordem social como da ortodoxia religiosa.

Dentre os diversos tipos de transgressores, os praticantes da feitiçaria - ou mais especificamente as feiticeiras - eram apontados como os principais perturbadores da ordem terrena e divina.

O desenvolvimento da modernidade tinha por fundamentos o humanismo e o uso da razão, do discernimento crítico. No entanto, isso não foi capaz de conter, e talvez tenha até estimulado, um dos mais violentos e irracionais processos de perseguição a pessoas cujo crime era ser diferente, estranho, isto é, pessoas consideradas o outro.

A instituição que chamou a si o encargo e o presumido direito de exercer o controle sobre o pensamento e a ação das pessoas, vigiando, coibindo e punindo os desvios e as contestações, foi a Inquisição.

As pessoas identificadas como hereges eram consideradas "perigosas e ameaçadoras" para as instituições e a sociedade organizada. Dois grupos foram os principais enquadrados nessas categorias: os cristãos-novos (judeus) e os praticantes de feitiçaria. Entre estes últimos, embora houvesse homens, a grande maioria era de mulheres. Herdeiras da misoginia medieval, também eram muito discriminadas na época moderna.

A perseguição inquisitorial aos judeus convertidos ao catolicismo foi típica, quase exclusiva, dos países da península Ibérica, estendendo-se às suas colônias na América. As feiticeiras foram caçadas em toda a Europa. O período compreendido entre o século XV e meados do século XVI foi marcado pela caça às bruxas.

Além da violência da execução, os processos inquisitoriais admitiam o uso da tortura como meio de obter a confissão das acusadas. Mesmo que escapasse da morte, a mulher não estava livre dos tormentos.

O tribunal religioso recebia as denúncias, interrogava e concluía pela culpa ou não dos acusados. Os considerados inocentes (raros) eram liberados, depois de pagas as custas do processo. Os condenados a cumprir penitência eram mantidos em prisão perpétua pela Igreja.

Os culpados de falta grave, os que não confessavam sua culpa e os reincidentes eram entregues ao poder laico, que, depois de um novo julgamento meramente formal, estabelecia e executava a sentença de morte. A condenação e a execução deviam ser assumidas pelo Estado, pois a Igreja, generosa e caridosa por definição, não podia sujar as mãos com o sangue dos cristãos.

* Expansão do mundo moderno e o outro. A modernidade europeia foi múltipla e diversificada. Foi uma época marcada pelas criações fulgurantes da arte renascentista e pela intolerância em relação ao outro - diferente e, por isso, inimigo -, reafirmada pela renovação religiosa. Nesse período a Europa expandiu suas fronteiras continentais pelo mundo, sem reconhecer limites, como afirmam os versos de Camões, em Os Lusíadas:

Por mares nunca dantes navegados
Nossos mundos ao mundo ião mostrando
E mais mundo houvera lá chegara.

Mas nos novos mundos havia outros povos, diferentes dos europeus. Para cada novo e estranho povo, tratado como o outro, o inimigo, não faltaram fogueiras... e outras penitências!

NEVES, Joana. História Geral - A construção de um mundo globalizado. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 265-269.