"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Morte e Guerra Fria

A bela cidade de Dresden (Alemanha), referência universal da cultura, foi destruída em poucas horas por um intenso e cruel bombardeio aéreo decretado pelos aliados anglo-saxões.

O mundo desenhado nas conferências de Yalta e Potsdam manteve-se por mais de quarenta anos. Somente com a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, as fronteiras delimitadas por Churchill, Roosevelt (depois Truman) e Stalin foram rompidas. À guerra quente sucedeu-se por quatro décadas a Guerra Fria, o choque entre duas concepções de mundo e duas fontes de poder, Washington e Moscou.

O comunismo triunfava no leste da Europa e na Ásia (com a vitória de Mao Tsé-tung na China em 1949, sobre os nacionalistas de Chiang Kai-chek). A Europa ocidental, as Américas e o Japão eram mantidos sob o controle político e econômico norte-americano, fortalecido pelo uso - e pela posse exclusiva até 1949 - da arma final, a bomba atômica. O Exército Vermelho de um lado e os B-29 do outro marcavam a geografia do mundo.

Cabe perguntar: o que, passados cinquenta anos, nos ficou da guerra? Ficaram a divisão em dois mundos, que afetaria a vida de todo o planeta nesse período, o quase conflito total entre as duas novas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, e criação da ideia de conflitos localizados (como as guerras da Coréia e do Vietnã). O mundo do pós-guerra também assistiu ao fim do colonialismo, ao surgimento de dezenas de novos países na África e à eclosão de revoluções e golpes de Estado em quase todos os países da periferia do sistema econômico.

O ano de 1945 deixou também a triste memória do genocídio: depois da descoberta dos campos de extermínio e do julgamento de seus responsáveis, a inocência ética que fizera convenções e mais convenções para criar uma guerra mais "humana" era coisa do passado. O Holocausto não foi a única marca da vergonha absoluta de nosso século, porém. Os cogumelos atômicos de Hiroshima e Nagasaki deixaram à sombra também a consciência dos cientistas. O conhecimento absoluto trouxe a arma absoluta.

Hiroshima, 6 de agosto de 1945, 8h 15, bomba atômica.

Finalmente, o pós-guerra gerou nova divisão do mundo em dois blocos: aquele dos países ricos e o resto. Os países comunistas tentaram durante algum tempo romper esse dualismo, mas finalmente cederam. O desenvolvimento das forças industriais, da comunicação de massa e da sociedade de consumo tornou-se a linha geral da condução do mundo. O Estado de bem-estar social e o American way of life - a ideia de que é possível uma vida de conforto material ilimitado, baseada na competição entre os agentes do mercado - acabaram triunfando. Os soldados norte-americanos levavam a Coca-Cola em suas mochilas. O dólar passou a ser moeda universal, e o inglês, língua de uso corrente.

Com a entrada de milhões e milhões de mulheres no sistema produtivo, substituindo os homens que estavam nos campos de batalha, a face da sociedade mudou. A liberação sexual, a mudança nos hábitos de consumo, as mudanças na família e, principalmente, a velocidade no ritmo das mudanças, tanto sociais quanto técnicas, são fruto da guerra.

O conflito deixou também alguns instrumentos de controle mundial que adquiriram mais força recentemente. O principal instrumento político foi a Organização das Nações Unidas, criada em 1945, que serviu durante décadas de local para o confronto - e a diplomacia - entre União Soviética e Estados Unidos - e agora passou a ser palco das decisões geopolíticas globais. O Fundo Monetário Internacional (FMI), outro produto da guerra, moldou e molda a vida de milhões de pessoas, principalmente nos países economicamente mais atrasados e endividados. A Europa, berço das duas guerras mundiais do século XX, resolveu se unir num grande mercado comum, e agora, numa comunidade das nações (a União Europeia), apesar da manutenção dos ódios raciais e nacionalismos.

No que diz respeito às consequências militares, o conceito de guerra mudou. Até 1939 pensava-se mais no poder de fogo das armas, do que na capacidade de enviar suprimentos para as forças em conflito. Os generais mais prestigiados eram os comandantes de tropa; em 1945, o mais importante general em ação, Eisenhower, era um homem de gabinete, especializado em coordenar esforços para ganhar uma guerra. A guerra moderna implicava no triunfo logístico de um país sobre o outro. Os deuses da guerra não sorriam mais somente para os guerreiros corajosos; preferiam agora a quantidade de tanques.

A característica central da guerra, além dos aspectos puramente militares, foi justamente seu caráter mundial. Depois dela, todas as relações políticas e econômicas do planeta passaram a ser vistas, com clareza, como relações globais, que envolviam a todos.

Manifestação neonazista do Partido Jobbik (Hungria) que defende campos de concentração para os ciganos

Antes da Segunda Guerra Mundial, os homens podiam se considerar seguros se vivessem longe dos locais do conflito. Depois dela, como disse um escritor judeu, onde é possível esconder-se? Muitos acharam que os horrores de Treblinka e Dachau [campos de concentração dos nazistas alemães] eliminariam o preconceito e o racismo do mundo. O ressurgimento da xenofobia na Europa e na Alemanha reunificada mostra que a previsão foi no mínimo ingênua, que muitas das razões profundas desse ódio permanecem. A guerra nos deixou esse legado. Não há como fugir dela, num mundo cada vez mais único e globalizado. Depois de 1945, em certo sentido, todas as guerras são mundiais.

CHIARETTI, Marco. A Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 1997. p. 67-68.

terça-feira, 29 de maio de 2012

"A Aliança das Civilizações"


As correntes do Bósforo são conhecidas por sua força e por terem o sentido inverso na superfície e na profundidade. No entanto, há séculos o povo turco aprendeu a negociar entre estas correntes, na fronteira entre a Europa e a Ásia e entre o mundo islâmico e o Ocidente, o que contribuiu para a sua prosperidade. O relatório "A Aliança das Civilizações" ressalta justamente que a fusão das diferenças, sejam de opinião, de cultura, de credo ou de modo de vida, foi desde sempre o motor do progresso humano. Na época em que a Europa atravessava a idade das trevas, a Península Ibérica construiu seu progresso sob a interação entre as tradições muçulmanas, cristãs e judaicas. Mais tarde o Império Otomano prosperaria graças, sem dúvida, ao seu exército, mas também porque, neste império de ideias, a arte e as técnicas muçulmanas foram enriquecidas pelas contribuições judaicas e cristãs.

Infelizmente, muitos séculos mais tarde, é o crescimento da intolerância, do extremismo e da violência que marca nossa era de mundialização. Longe de semear a compreensão e a amizade mútuas, o estreitamento das distâncias e a melhora nas comunicações têm frequentemente engendrado tensão e desconfiança. Muitos são os que chegam a temer, especialmente nos países em via de desenvolvimento, a existência da comunidade planetária - sinônimo, a seus olhos, de agressão cultural e de sangria econômica. A globalização ameaça tanto seus valores quanto seu bolso.

Os ataques terroristas do 11 de setembro, a guerra e os conflitos no Oriente Médio, as propostas e os projetos mal-inspirados só servem para reforçar este sentimento e provocar tensão entre os povos e as culturas. As relações entre os fiéis das três grandes religiões monoteístas foram fortemente postas a prova. [...] 

No momento em que as migrações internacionais levam um número sem precedentes de pessoas das mais diversas religiões e culturas a viver lado a lado, os radicalismos e estereótipos que sustentam a ideia de "choque das civilizações" são cada vez mais propagados. Alguns grupos parecem impacientes para fomentar uma nova guerra de religiões, desta vez em escala mundial. E indiferença ou até mesmo desprezo que os outros manifestam em relação a suas crenças ou símbolos apenas lhes facilita a tarefa.

Em suma, a ideia de uma aliança das civilizações não poderia chegar em melhor hora, visto que não vivemos em mundos diferentes, como acontecia com nossos ancestrais. As migrações, a integração e a técnica têm aproximado as diferentes comunidades, culturas e etnias, fazendo cair velhas barreiras e desvendando novas realidades. Nós vivemos como jamais seria possível antigamente, lado a lado, submetidos a várias influências e ideias diferentes.

A demonização do "outro" revelou-se o caminho mais fácil. Neste século 21, continuamos reféns de nossa própria percepção da injustiça e de nossos direitos. Nosso discurso tornou-se a nossa prisão. Para muitas pessoas ao redor do mundo, em particular os muçulmanos, o Ocidente é uma ameaça a suas crenças e valores, interesses econômicos e aspirações políticas. Qualquer prova em contrário está condenada ao desdém e ao descrédito. Do mesmo modo, muitos ocidentais consideram o Islã como uma religião de extremismo e violência, mesmo sabendo que os dois mundos mantêm há muito tempo relações nos quais o comércio, a cooperação e as trocas culturais têm ocupado no mínimo tão importante quanto o dos conflitos. [...]

Inspiremo-nos por uma inscrição que pode ser vista no museu de Arqueologia de Istambul. Ela contém o tratado de paz firmado entre os impérios hitita e egípcio, depois da sangrenta batalha de Kadesh, em 1229 a.C. Tendo colocado um ponto final em décadas de desconfiança e guerra, este acordo marcou uma etapa histórica: os dois campos comprometeram-se a trocar assistência mútua e a cooperar. Esta é, de fato, a representação literal de uma aliança entre duas grandes civilizações. [...]

[Parte do discurso do ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, em Istambul. In: Le Monde Diplomatique: Brasil, São Paulo, fev. 2007.]

domingo, 27 de maio de 2012

Passado Presente: 2ª Guerra Mundial, revisionismo e neonazismo

"Cada homem, cada criança é hoje um sujeito social que, para se posicionar no universo, tem necessidade de se entender como resultado insubstituível de sequências e de misturas, de continuidades, de recuos e de avanços, de dominâncias e de fraternidades, de vida e de morte."
(Suzanne Citron, historiadora)

Pichação neonazista no muro do hospital Emílio Ribas (São Paulo)

Texto 1.  


"Quando certa manhã Gregor Samsa 
acordou de sonhos intranquilos, 
encontrou-se em sua cama
metamorfoseado em
um inseto monstruoso." 
(Franz Kafka, A metamorfose)

O escritor judeu-tcheco Franz Kafka morreu em 1924. Bem antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. Mas seu livro A metamorfose parece uma impressionante intuição do que estava por ocorrer. O mundo, como o personagem Gregor Samsa, despertou na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) transformado numa gigantesca e horrível barata, depois de duas décadas de sonhos intranquilos. Em seis anos, o fogo da guerra exterminou 45 milhões de pessoas e destruiu a falsa imagem de paz criada após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Os traumas não resolvidos da Primeira Guerra Mundial permitiram que o nazismo, um movimento que parecia ridículo em seu nascimento, chegasse ao poder com mão de ferro na Alemanha, o país mais desenvolvido da Europa. E daí, valendo-se da falta de audácia das potências democráticas, incendiasse o mundo. No final de doze anos de regime nazista e seis anos de guerra, povos e grupos inteiros - judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais - haviam sido quase dizimados, pelo simples crime de terem nascido. Milhões de prisioneiros de guerra soviéticos morreram de fome em campos de concentração alemães. A Alemanha estava destroçada. O Japão via seus sonhos de tornar-se o senhor da Ásia sumirem na fumaça de duas bombas atômicas lançadas por aviões americanos. E o mundo redesenhado pelas duas superpotências vencedoras - a União Soviética e os Estados Unidos - duraria até a queda do Muro de Berlim, em 1989, e o "suicídio" da União Soviética, dois anos depois.

[...]

Quando a geração de nossos pais e avós acabou de comemorar o fim do mais terrível conflito da História, restavam duas perguntas no ar: Quem pagaria pelos crimes de uma guerra em que morreram 45 milhões de pessoas - vinte milhões de soviéticos, seis milhões de judeus, seis milhões de poloneses e 4,5 milhões de alemães? E o que seria feito para impedir uma nova guerra, ainda mais mortífera?

Os nazi-fascistas, é claro, foram considerados os grandes responsáveis pela guerra. Em 1946, os Aliados organizaram um grande julgamento em Nuremberg. Hitler e Goebbels e o comandante das SS, Heinrich Himmler, haviam se suicidado. Mas o tribunal julgou líderes de importância, como Hermann Goering. Condenado à morte, ele se suicidou pouco antes de ser enforcado. Outras 25 personalidades do regime, igualmente condenados, foram executadas. Julgamentos realizados em Varsóvia e Praga também condenaram antigas autoridades de ocupação.


Julgamento de Nuremberg

Milhares de oficiais e burocratas do nazismo, que haviam sido presos pelos Aliados, foram inocentados. Os vencedores da guerra tinham pressa em reconstruir os países da Europa como democracias capitalistas, evitando o avanço do comunismo pró-soviético. Quem assumiria os novos postos de importância, senão os sobreviventes do regime destruído?

Empresas alemãs que utilizaram o trabalho escravo de mais de sete milhões de estrangeiros - na maioria vindos do Leste europeu - continuam ganhando dinheiro até hoje. Quanto ao Japão, nunca passaram pelos tribunais aqueles que ordenaram e executaram o extermínio de milhares de chineses, malaios e birmaneses durante a ocupação.

Se tantos crimes dos perdedores da guerra sumiram como fumaça no processo de reconstrução após a guerra, que dizer das barbaridades cometidas pelos Aliados? Não aconteceu como nos filmes que mostram bandidos alemães e japoneses lutando contra os mocinhos aliados. Em um conflito - ainda mais desse porte - a fronteira entre mocinhos e bandidos às vezes é difícil de definir. Os americanos utilizaram bombas incendiárias nos bombardeios às cidades japonesas, aproveitando o fato de que a maioria das casas eram construídas de madeira. Quantos civis morreram nesses ataques? E nos grandes bombardeios aliados às cidades de Dresden e Colônia (esta sem nenhum objetivo militar)? E como esquecer o lançamento das bombas atômicas contra Hiroshima e Nagasaki?


90% do centro da cidade de Dresden foi destruído

Há quem diga que guerra é guerra, vale tudo. Outros afirmarão que cometeram crimes horrorosos apenas porque seus chefes ordenaram. Afinal, homens normais, que adoravam seus filhos, cuidavam de animais e davam dinheiro a campanhas de caridade transformaram-se em verdadeiros monstros. Resta saber se as horríveis condições da guerra criaram esses monstros, ou apenas os libertaram de dentro da fachada "civilizada" do homem.

[...]

O fim dos regimes socialistas de partido único parecia consolidar de vez a democracia. Nazismo e fascismo soavam como sombra de um passado esquecido. Mas as aparências enganam. O fim do comunismo fez vir à tona grupos neonazistas, em especial nos antigos países socialistas, como a Rússia, a Romênia e a Alemanha Oriental. Esses grupos defendiam a volta à "era de ouro de Hitler", para populações desesperadas com a perda do emprego garantido e das expectativas de futuro, após o colapso do comunismo. O alvo dos porretes e coquetéis molotov dessa nova extrema direita não eram tanto os judeus e sim os imigrantes de países como o Marrocos e a Turquia. O argumento dos racistas era que esses "sub-homens" roubaram empregos dos europeus. Bobagem, porque em geral os estrangeiros aceitam submeter-se a trabalhos pesados, aos quais os "nacionais" não se sujeitam. Mas em tempo de crise, essa arenga racista convenceu muita gente.

Na Iugoslávia, onde o fim do comunismo deu origem a uma sangrenta guerra civil, generalizou-se a "limpeza étnica". Os sérvios, majoritários na Bósnia-Herzegovina, passaram a tentar eliminar os bósnios muçulmanos dessa república. Nada mais parecido com a "solução final" dos nazistas.

Na esteira da falência do comunismo e de outras propostas de esquerda, também ganharam força os escritores revisionistas, que negam os crimes de Hitler e seus comparsas. Aqui no Brasil, o gaúcho S. E. Castan, em seu livro Holocausto, judeu ou alemão?, nega o morticínio de judeus. Auschwitz e Treblinka, em suas palavras, transformaram-se quase em campos de veraneio.

Destruir a memória é o primeiro passo para a repetição de antigos crimes, e contra isso devemos estar sempre atentos. Este texto começou com uma citação de A metamorfose, de Franz Kafka. E vai terminar com outro trecho de Kafka, do livro A colônia penal. Nele, o autor fala sobre uma prisão tropical, cujo comandante acredita na tortura e no assassinato como formas de impor a disciplina, acima de tudo - até da própria inocência do condenado. O comandante morre e, em seu túmulo, é inscrita a seguinte frase:


Meu princípio é este:
a culpa é sempre
indubitável. Crede
e esperai. O antigo
comandante retornará...

BRENER, Jaime. A Segunda Guerra Mundial: o planeta em chamas. São Paulo: Ática, 2005. p. 4, 58-59, 62-63. (Col. Retrospectiva do Século XX.)

Texto 2. 

[...] A crise e a chegada dos estrangeiros despossuídos impulsionaram os perigosos sentimentos de racismo e intolerância, que se transformam em neofascismo e neonazismo. [...]

Os governos da Comunidade Europeia endureceram suas leis de imigração, assustados com o avanço eleitoral dos partidos de direita, que insistem na tecla de uma "invasão bárbara". Ciganos, turcos, africanos, asiáticos, latinos, todos "miseráveis" e "mal-educados", estariam pondo em perigo a alta civilização europeia. [...]

Os preceitos das "tribos" do mal chegam ao Brasil em segunda mão, numa versão absolutamente perversa, como só poderia ser. E inventa-se até uma "raça" onde ela não existe, ao inserir-se no cardápio de exclusões os nordestinos que migram para o Sul em busca de trabalho. Filhos da baixa classe média ou operários, os "carecas" brasileiros, como os alemães, "atacam os que têm menos ainda". [...]

Os neonazistas podem estar mais organizados e estruturados em todo o mundo do que há uma década, mas ainda assim não passam de pequenos grupos, se comparados às demais forças políticas nos respectivos países onde atuam. Mas nem por isso são menos perigosos. Sobretudo se levarmos em conta que constituem parte de uma realidade histórica e filosófica muito mais ampla. Uma realidade de intolerância, de rejeição às diferenças [...].

SALEM, Helena. As tribos do mal: o neonazismo no Brasil e no mundo. São Paulo: Atual, 1995. p. 81-3.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Os regimes totalitários: ataque à razão e à liberdade

Guerra, Lasar Segall

A GUERRA

Um avião que surge de repente
Carregado de mísseis assassinos
As cidades em chamas ardendo

Matando meninas e meninos.

Fogem os sobreviventes
Sobre os corpos caídos por terra
Fogem do horror da guerra.

Não há tempo para velórios
Outra bomba os enterra
Mutilados em seu próprio solo
As pobres vítimas da guerra.

A GUERRA É ESTÚPIDA E INÚTIL
Massacra quem não faz guerra
É o poder e a ganância fútil
Pela terra que nos enterra.

Se eu pudesse...
Eu mataria a guerra.

Roseli Passos, poetisa e artista plástica. In: http://roselipassospoemas.blogspot.com.br/


Detalhe do triângulo rosa usado para identificar os homossexuais na Alemanha nazista. 
[Milhões de judeus, ciganos, eslavos, homossexuais, testemunhas de Jeová, liberais, democratas, socialistas, artistas, intelectuais... foram barbaramente aprisionados e executados pelos nazi-fascistas nos campos de concentração espalhados pela Europa dominada pela barbárie.]

Auschwitz

"Demoraria muitos anos para que toda a história do custo moral da guerra aparecesse, mas um sinal vivo - e do que fora conquistado - se tornou imediatamente visível e aterrorizador quando os exércitos aliados avançaram na Alemanha e na Europa Central. Descobriram-se invadindo campos onde a brutalidade sádica e a negligência desumana foram muito além do que alguém algum dia concebera. Os prisioneiros ali durante anos sofreram tortura, fome e trabalho forçado. Passaram por isso às vezes por serem opositores políticos ao nazismo, às vezes porque eram reféns ou trabalhadores escravos, às vezes simplesmente como prisioneiros de guerra. Mas isto não era o pior. A maioria dos que sofreram eram judeus, condenados a um tratamento desumano e à morte simplesmente por sua raça. Os nazistas fizeram esforços especiais para eliminar os que eles supunham ser geneticamente indesejáveis. [...] cinco ou talvez seis milhões de judeus pereceram nas câmaras de gás dos campos de extermínio ou em fábricas e pedreiras onde morreram de exaustão e fome, ou no campo, onde eram cercados e fuzilados por destacamentos especiais de extermínio. Derrubar o sistema que fez isto acontecer foi uma conquista grande e nobre, uma vitória da civilização e da decência. [...] O único guerreiro ideológico da luta do início ao fim fora Hitler, e os objetivos que buscara  eram moralmente abomináveis." [J. M. Roberts. O livro de ouro da História do Mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 727-728]


* A Europa depois da guerra. A Primeira Guerra deixou um rastro de desilusão entre as populações. Alguns valores de referência no mundo ocidental ficaram, ao seu final, profundamente abalados. Para muitos, a Europa esteve, durante o conflito, muito mais próxima de um barbarismo perverso do que dos valores propagados por sociedades civilizadas. À desilusão na capacidade humana de resolver problemas de modo racional somavam-se as dificuldades materiais. As instituições liberais sofreram fortes abalos. A reconstrução social, em seus aspectos espirituais e materiais, precisou de tempo para se realizar. A violência, experimentada nos campos de batalha e instigada pelas propagandas oficiais, colocando uma nação contra outra, tornou-se um componente habitual da vida dos jovens que voltaram da guerra.


Campo de concentração de Wobbelin. 
"Em sua luta para derrubar o Estado liberal, os líderes fascistas despertaram os impulsos primitivos, ressucitaram velhas fidelidades tribais e usaram mitos e rituais para mobilizar e manipular as massas. Organizando campanhas de propaganda com o rigor de uma operação militar, os fascistas inicitaram e dominaram as massas e confundiram e minaram a oposição democrática, desencorajando sua vontade de resistir." [MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 565-566]

Desesperados pelo difícil retorno, muitos desses jovens aderiram aos movimentos extremistas e nacionalistas, que, em vez de soluções políticas encaminhadas pela ação de instituições liberais, propunham um salvacionismo baseado na ação e no terror.

A crise iniciada nos Estados Unidos em 1929 com a queda da Bolsa de Nova Iorque estimulou ainda mais a tensão social e a adesão a movimentos radicais na Europa.

* O totalitarismo. No âmbito político, a crise do capitalismo foi acompanhada pelo enfraquecimento do Estado liberal. Os ideais democráticos burgueses passaram a ser questionados, as liberdades e os direitos individuais caíram em descrédito, e a livre manifestação do pensamento deu lugar à censura e à repressão.


Campo de concentração de Buchenwald. 
"Os instrumentos da moderna tecnologia - rádio, filmes cinematográficos, discursos públicos, telefone e teletipo - possibilitaram ao Estado doutrinar, manipular e dominar seus súditos numa escala até então inimaginável." [MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 566]

Essa inversão de valores caracterizou o totalitarismo, fenômeno bastante complexo e que ganhou matizes próprios em cada país. De modo geral, no entanto, as práticas totalitárias tiveram traços comuns em todos os lugares onde foram implantadas.

O pluripartidarismo foi substituído pelo sistema de partido único, e os órgãos legislativos, quando existiam, eram totalmente subjugados pelo poder Executivo. Os mecanismos de coerção ganharam enorme importância - o que equivale a dizer que a violência se tornou prática institucionalizada -, e a propaganda nacionalista intensiva foi o grande instrumento de mobilização das massas.


Prisioneiros do campo de Mauthausen, Áustria. 
"Universidades, escolas, restaurantes, farmácias, hospitais, teatros, museus e campos de atletismo foram gradualmente fechados aos judeus." [MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 581]

Nos regimes totalitários, a ação do Estado se deu sempre no sentido de anular a dimensão individual dos cidadãos e de procurar integrá-los em um corpo comum - a nação. Os conflitos de caráter ideológico locais, ou entre as classes, tendiam a ser totalmente diluídos por meio da pregação de um líder político carismático, que, a pretexto de conduzir a nação para o seu destino, exacerbava o sentimento nacionalista, estimulando o belicismo e, consequentemente, o confronto armado entre países.


Forno crematório do campo de Buchewald.
"Com a guerra, o genocídio tomou dimensões catastróficas. Na Alemanha e nos países ocupados, os campos de concentração, administrados pela SS, foram implementados, visando à escravização e ao extermínio daqueles que, aos olhos dos nazistas, deveriam ser eliminados do corpo social. Fábricas instaladas nas imediações das cidades exploravam o trabalho dos que ainda tinham vigor. Experimentos médicos de congelamento e a aplicação de vírus e bactérias eram realizados nos prisioneiros." [MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 196]

Sobrevivente de Auschwitz.  
"Desde a chegada, por meio de violência e ameaças, visava-se despojar todos de sua identidade. Os maus-tratos, o desnudamento total, a raspagem dos cabelos, os uniformes listrados e o número impresso na pele indicavam a tentativa de criação de uma subumanidade. Os prisioneiros recebiam identificações diferenciadas para se evitarem laços de solidariedade entre os grupos. A violência física e moral e a destruição cientificamente organizada faziam parte do cotidiano do sistema concentracionário nazista". [MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010. p. 196]

Esses regimes tiveram sucesso sobretudo em países onde a crise econômica, o atraso tecnológico e as tensões sociais eram particularmente graves. Sustentados e financiados pelos setores economicamente poderosos, contaram também com a importante colaboração dos setores empobrecidos, que buscavam uma saída para sua difícil situação.

MARVIN, Perry. Civilização ocidental: uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
MORENO, Jean; VIEIRA, Sandro. História: cultura e sociedade. O contemporâneo: mundo das rupturas. Curitiba: Positivo, 2010.
REZENDE, Antonio Paulo; DIDIER, Maria Thereza. Rumos da história: história geral e do Brasil. São Paulo: Atual, 2005.
ROBERTS, J. M. O livro de ouro da História do Mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Mitologia dos povos pré-colombianos

Xolotl, deus da mitologia asteca

sol 
e a lua
(mito asteca)
O primeiro sol, o sol de água, a inundação levou. Todos os que moravam no mundo se converteram em peixes.

O segundo sol, os tigres devoraram.

O terceiro, uma chuva de fogo, que incendiou as gentes, arrasou.

O quarto, o sol de vento, a tempestade apagou. As pessoas se transformaram em macacos e se espalharam pelos montes.

Pensativos, os deuses se reuniram em Teotihuacán.

- Quem se ocupará de trazer o amanhecer?

O Senhor dos Caracóis, famoso por sua força e por sua formosura, deu um passo adiante;

- Eu serei o sol - disse.

- Quem mais?

Silêncio.

Todos olhavam para o Pequeno Deus Sifilítico, o mais feio e desgraçado dos deuses, e disseram:

- Tu.

O Senhor dos Caracóis e o Pequeno Deus Sifilítico se retiraram para os montes que agora são as pirâmides do sol e da lua.

Depois os deuses juntaram lenha, armaram uma fogueira enorme e os chamaram.

O Pequeno Deus Sifilítico tomou impulso e se atirou nas chamas. Em seguida emergiu, incandescente, no céu.

O Senhor dos Caracóis olhou a fogueira com o cenho franzido. Avançou, retrocedeu, parou. Deu um par de voltas. Como não se decidia, tiveram de empurrá-lo. Com muita demora subiu ao céu. Os deuses, furiosos, o esmurraram. Bateram em sua cara com um coelho, uma e outra vez, até que mataram seu brilho. Assim, o arrogante Senhor dos Caracóis se transformou em lua. As manchas da lua são as cicatrizes daquele castigo.

Mas o sol resplandecente não se movia. O gavião de pedra voou até o Pequeno Deus Sifilítico:

- Por que não andas?

E respondeu o desprezado, o purulento, o corcunda, o manco:

- Porque quero o sangue e o reino.

Este quinto sol, o sol do movimento, iluminou os toltecas e ilumina os astecas. Tem garras e se alimenta de corações humanos.

O milho
(mito maia)
Os deuses fizeram de barro os primeiros maias-quichés. Duraram pouco. Eram moles, sem força; desmoronaram antes de caminhar.

Depois, tentaram com madeira. Os bonecos de pau falaram e andaram, mas eram secos; não tinham sangue nem substância, memória ou rumo. Não sabiam falar com os deuses, ou não encontravam nada para dizer a eles.

Então os deuses fizeram de milho as mães e os pais. Com milho amarelo e milho branco amassaram sua carne.

As mulheres e os homens de milho viam tanto como os deuses. Seu olhar se estendia sobre o mundo inteiro.

Os deuses jorraram um hálito e os deixaram com os olhos nublados para sempre, porque não queriam que as pessoas vissem além do horizonte.

A cidade sagrada
(mito inca)
Wiracocha, que tinha afugentado as sombras, ordenou ao sol que enviasse uma filha e um filho à terra, para iluminar o caminho aos cegos.

Os filhos do sol chegaram às margens do lago Titicaca e começaram a viagem pelas quebradas da cordilheira. Traziam um cajado. No lugar onde afundasse o primeiro golpe do cajado, fundariam um novo reino. Do tronco, atuariam como seu pai, que dá a luz, a claridade e o calor, derrama a chuva e o orvalho, empurra as colheitas, multiplica as manadas e não deixa passar nenhum dia sem visitar o mundo.

Por todas as partes tentaram enterrar o cajado de ouro. A terra recusava, e eles continuavam buscando.

Escalaram picos e atravessaram correntezas e planaltos. Tudo que seus pés tocavam ia se transformando: faziam fecundas as terras áridas, secavam os pântanos e devolviam os rios a seus leitos. Na alvorada, eram escoltados pelos gansos, e pelos condores ao entardecer.

Por fim, junto ao monte Wanakauri, os filhos do sol enterraram o cajado. Quando a terra o tragou, um arco-íris ergueu-se no céu.

Então o primeiro dos incas disse à sua irmã e mulher:

- Convoquemos as pessoas.

Entre a cordilheira e o altiplano o vale coberto de arbustos. Ninguém tinha casa. As pessoas viviam em buracos e ao abrigo de rochedos, comendo raízes, e não sabiam tecer o algodão nem a lã para defender-se do frio.

Todos o seguiram. Todos acreditaram neles. Pelos fulgores das palavras e dos olhos, todos souberam que os filhos do sol não estavam mentindo, e os acompanharam até o lugar onde os esperava, sem ter ainda nascido, a grande cidade de Cuzco.


GALEANO, Eduardo. Nascimentos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

As subversivas e sedutoras amazonas


A mitologia colocou em cena esse povo estranho, formado por mulheres-soldados aguerridas, que recusavam a autoridade masculina e encarnavam o avesso do que pregava a sociedade antiga
por Catherine Salles*

Amazona fugindo. Vaso ático, 510-500 a.C.

As amazonas pertencem ao domínio da transgressão. Essas guerreiras mitológicas simplesmente desprezavam os valores femininos vigentes na Antiguidade. Por isso, os gregos as viam como um desafio a qualquer “lei natural” ou social. Mais ainda, como um mal encarnado e ambíguo, que causava repulsa e, ao mesmo tempo, seduzia os homens. De fato, elas tinham em si uma centelha revolucionária, capaz de virar pelo avesso todas as certezas da sociedade grega.

Relevo de mármore do século IV a.C. retrata guerreiras atacando um combatente heleno


No mundo real, a mulher era sempre um ser menor, e sua função essencial era parir os futuros cidadãos da Grécia. O homem e a mulher eram complementares, mas sua natureza, de acordo com a vontade dos deuses, era essencialmente diferente, daí serem considerados unicamente viris o trabalho no campo, a caça, o treino desportivo e a guerra. Por extensão, as gregas também eram alijadas do poder político.

As virtudes femininas eram a obediência e o pudor. Um texto de Aristóteles evoca bem o modo como os gregos justificavam pela ordem natural as relações entre sexos e define por antítese o que seria impossível para a mulher: “A natureza criou um sexo forte e um sexo frágil. O primeiro, em razão da sua virilidade, está mais apto a afastar os adversários, o segundo está mais apto a realizar-se sob a guarda masculina, devido a uma tendência natural para o medo. O primeiro traz para o domicílio os bens do exterior, o segundo vela sobre o que está em casa”.

O texto prossegue da seguinte forma: “Na divisão do trabalho, o primeiro, menos afeito ao descanso, encontra prazer no movimento. O segundo está mais apto a levar uma vida sedentária e não tem forças suficientes para a vida ao ar livre. Enfim, se os dois sexos participam na geração das crianças, o bem destas últimas irá exigir de cada um dos pais um papel particular: a mulher terá a função de alimentá-las, o homem, a de educá-las”.

A amazona é aquela que recusa essa distribuição de competências, pois pura e simplesmente eliminou os homens de sua estrutura política e social. Na Ilíada, essas guerreiras são chamadas por Homero de antianeira (anti-homem). O prefixo grego anti, nesse caso, pode ter o sentido de “contra” o homem, mas também de “igual” a ele.


Representadas sempre como guerreiras e caçadoras, desde pequenas montavam cavalos (com as pernas abertas) e aprendiam a manejar o arco, o dardo, a espada e o machado de combate. Para atirar melhor, elas cauterizavam (ou cortavam) o seio direito, o que, para Hipócrates, “desloca toda a força e desenvolvimento para o ombro e braço”.

A deusa Ártemis (Diana para os romanos) era venerada pelas amazonas, pois, como elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos homens e se dedicava à caça


O nome das fabulosas criaturas vem dessa prática: a-mazos significa “sem seio”. Por alguma razão, porém, a iconografia disponível costuma mostrá-las com os dois seios intactos. Além do significado prático, a mutilação do seio tem um aspecto simbólico: elas permaneciam mulheres pelo lado esquerdo e tornavam-se homens pelo direito.

Amazona ferida, Franz von Stuck

As guerreiras veneravam Ártemis, que, como elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos homens e dedicava seus dias à caça. Os relatos antigos sobre esses lendários seres informam que sua sociedade era dividida geralmente em duas tribos, cada qual com sua rainha. Enquanto uma estava ocupada com a guerra, a outra permanecia sedentária, para proteger seu povo. Sua hipotética “cidade” chamava-se Themiscrya, situada além do mar Negro, às margens do rio Termodonte.

As amazonas podiam fazer longínquas incursões. São atribuídas a elas invasões na Ásia Menor e na Grécia. Em uma delas, Myrina, à frente de 20 mil guerreiras a cavalo e 3 mil a pé, declarou guerra aos habitantes de Atlântida, tomou conta da cidade, massacrou os homens, prendeu mulheres e crianças. Elas eram temidas por andarem armadas e em bandos, mas também porque, não aceitando a presença de homens em seu meio, acasalavam como os animais, desprezando as regras do casamento entre humanos. Uma vez por ano, se entregavam aos povos vizinhos e obrigavam os homens a ter relações com elas. Tudo acontecia aleatoriamente, na escuridão, de modo que não pudessem reconhecer seus parceiros. Eram elas que violentavam e “usavam” os homens.

Amazonas saem a cavalo, Johann Heinrich Wilhem

Quando nasciam as crianças, conservavam as meninas e matavam os meninos. Recusavam-se a amamentar as filhas, com medo de deformar os seios, e criavam-nas com leite de égua.


Não conheciam a navegação nem a cultura dos cereais – daí vem a outra etimologia proposta para seu nome, a-maza também quer dizer “sem cevada”. Alimentavam-se de carne crua.


* Catherine Salles é doutora em letras clássicas. In: Revista História Viva.

sábado, 19 de maio de 2012

A exploração da Amazônia e as drogas do sertão

Durante o primeiro século da Colonização, a região amazônica permaneceu praticamente inexplorada. Isso se explica em função dos interesses dos colonizadores portugueses, fixados principalmente no litoral açucareiro. Além disso, segundo os limites estabelecidos no Tratado de Tordesilhas, a maior parte do vale amazônico não pertencia a Portugal e sim à Espanha.

Na prática, porém, os portugueses e os bandeirantes, através das expedições de caça ao índio e busca de metais preciosos, foram penetrando no interior do Brasil e assim "vergaram a vertical de Tordesilhas", como escreveu um poeta. [...]

É assim que vamos encontrar, já em 1616, na foz do rio Amazonas, um estabelecimento português, o Forte do Presépio, origem da cidade de Nossa Senhora do Belém do Grão-Pará (atual Belém). A presença dessa fortificação portuguesa na foz do Amazonas explica-se sobretudo pelo objetivo de expulsar os franceses e outros estrangeiros que exploravam ilegalmente as riquezas da região - o que somente foi conseguido com a viagem de Pedro Teixeira, que, em 1637, subiu o Amazonas, alcançando Quito, no Equador. [...] por ocasião dessa expedição, Portugal e Espanha encontravam-se governados por um mesmo Rei, espanhol, devido à União Ibérica (1580-1640). Essa condição facilitou a expansão da Colonização portuguesa por terras que, de direito, pertenceriam à Espanha.

A conquista do Amazonas, de Antonio Parreiras

Somente na segunda metade do século XVII se iniciou, de fato, a exploração das riquezas do vale amazônico. E como isso ocorreu? Ocorreu devido à ação das Ordens religiosas. Sim, devido à ação dos sacerdotes, sobretudo jesuítas e carmelitas, embora houvesse também franciscanos, mercedários e outros. E qual foi a base econômica da ocupação da região? As riquezas naturais da floresta: o cravo, a canela, a castanha, a salsaparrilha e outras plantas medicinais, o tabaco, o algodão e, principalmente o cacau. São as chamadas Drogas do Sertão, isto é, todos os produtos da flora amazônica, que serviram de base para a exploração econômica e a conquista da região. Eram plantas medicinais e aromáticas, além de muitas espécies de cipós e raízes.

Esses gêneros naturais, além das madeiras e produtos da caça e da pesca, tinham grande valor comercial na Europa. As Drogas do Sertão eram semelhantes às especiarias do Oriente, que agora não eram mais comercializadas pelos portugueses, e sim pelos holandeses. E como fazer para localizar, colher e transportar pelos rios até os portos do litoral as Drogas do Sertão? Qual a mão-de-obra utilizada?

Ora, pense bem: quem conhecia a floresta, o difícil caminho dos rios amazônicos, nas épocas de cheia, os caprichos da correnteza, os lugares perigosos a evitar? Quem sabia exatamente onde encontrar as plantas e os gêneros nativos, e sabia colhê-los? Lembre-se de que, na floresta equatorial, as árvores, as plantas medicinais e outras encontram-se muito dispersas. Quem era exímio remador e possuía embarcações apropriadas à navegação dos rios amazônicos? Quem, desde muito tempo, dedicava-se ao extrativismo - à caça, à pesca, à coleta de frutos e raízes? Isso mesmo, você acertou! A mão-de-obra utilizada na coleta das Drogas do Sertão foi a indígena.

O caçador de escravos índios,  de Debret

E os padres e colonos se aproveitaram da mão-de-obra dos indígenas, que, numerosos na região, viram-se recrutados para a tarefa de modo violento ou "pacífico". Veja bem: não era muito fácil conseguir os índios necessários à exploração das Drogas do Sertão, pois eles resistiam aos colonizadores. Foi necessário organizar expedições militares, as tropas de resgate, que percorriam a região procurando índios e aprisionando-os. Entretanto, os indígenas aprisionados fugiam ou rebelavam-se, e começaram a surgir lutas contínuas. Tornava-se necessária uma maneira "pacífica" de recrutá-los para o trabalho da coleta de drogas. E quem se encarregou dessa tarefa foi a Igreja, através das Missões religiosas.

Os padres, sobretudo os da Companhia de Jesus, catequizavam e reuniam os índios em aldeias chamadas Missões. Nessas aldeias, os indígenas recebiam geralmente um lote de terra para cultivar: durante uma parte do ano, trabalhavam para o seu próprio sustento e o de sua família; e outra parte, na exploração das drogas. A coleta das drogas era uma atividade necessariamente nômade e dispersa, mas os índios ficavam ligados às Missões através da terra e do casamento...

Com o tempo, os jesuítas foram ficando cada vez mais poderosos e influentes no Reino português e no Brasil. Na Colônia, além de explorarem as Drogas do Sertão na Amazônia e a erva-mate no Sul, ainda possuíam muitas fazendas de gado. Em 1759, o Marquês de Pombal, ministro do Rei D. José I, de Portugal, conseguiu a expulsão dos jesuítas de Portugal e seus domínios, inclusive e principalmente do Brasil. Com isso, os aldeamentos missionários caíram nas mãos dos administradores da Coroa, e estes se tornaram os novos exploradores do trabalho indígena.

Não demorou muito e a exploração das Drogas do Sertão entrou em declínio. A Amazônia permaneceria economicamente inexpressiva até os últimos anos do século XIX, quando ocorreu o período de valorização da borracha.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et alli. Fazendo a História: as Sociedades Americanas e a Europa na Época Moderna. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1990. p. 127-129.

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Ameríndia, morte e vida

Índios Puris, Giulio Ferrari


Eu sou América,
sou o Povo da Terra,
da Terra-sem-males,
o Povo dos Andes,
o Povo das Selvas,
o Povo dos Pampas,
o Povo do Mar...

Eu tinha uma cultura de milênios,
antiga como o sol,
como os montes e rios
[...]
Eu plantava o milho e a mandioca.
Eu cantava com a língua das flautas.
Eu dançava, vestido de luar,
enfeitado de pássaros e palmas.
Eu era a cultura em harmonia
com a Mãe Natureza.
[...]

Eu respeitava a Natureza
[...]

Eu vivia na pura nudez,
brincando, plantando, amando,
gerando, nascendo, crescendo,
na pura nudez da vida.

[...]

Eu vos dei
o milho da espiga apertada e repartida,
o bulbo generoso da mandioca,
[...]
o guaraná cheiroso da floresta, 
o caldo assossegante do chimarrão do Sul.
[...]
A canoa, voadora nas águas.
[...]

Eu vivia embriagado na alegria
A aldeia era uma roda de amizade.
Meus chefes comandavam,
servidores do Povo,
com a sabedoria e o respeito
de quem se reconhece igual ao outro.


Festa de beber dos coroados, E. Meyer

[...]

Eu era toda América,
eu sou ainda América,
eu sou a nova América!


Caravelas do Lucro,
viemos navegando,
para vender a Terra
para explorar lucrando.


E nós de destruímos
cheios de prepotência,
negando a identidade
dos Povos diferentes,
todos Família Humana.


E nós te violamos
ao fio das espadas,
no fogo do arcabuz
queimamos teu sossego.
E nós te escravizamos.
E nós te sepultamos
nas fendas dos garimpos.


[...]


E nós te revestimos
com roupas de malícia.
Violamos tuas filhas.
Te demos por Moral
a nossa Hipocrisia.


E nós te missionamos
infiéis ao Evangelho,
cravamos em tua vida
a espada de uma Cruz.
Sinos de Boa Nova
num dobre de finados!


[...]


E nós te depredamos,
desnudando as florestas,
calcinando teus campos,
semeando veneno
nos rios e no ar,
a Terra generosa
separando por cercas,
os homens contra os homens:
para engordar o gado
da fome nacional,
para plantar a soja
da exploração escrava.


[...]


E nós abrimos estradas,
estradas da mentira,
estradas da miséria,
estradas sem saída.
E fizemos do Lucro
o caminho fechado
para o povo da Terra.


[...]


E nós te mergulhamos
nos vírus, nos bacilos,
nas pestes importadas.
[...]


Um pueblo indígena, Thomas Moran


[...]


Tenho o coração lavrado
pelo fogo dos bandeirantes,
dos bugreiros,
dos caçadores de escravos.


Sou a boca aberta de milhões,
o grito de homens sem armas,
a ferida aberta na carne
da História.


[...]


CASALDÁLIGA, Pedro; TIERRA, Pedro. Ameríndia, morte e vida. Petrópolis: Vozes, 2000.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O Oráculo de Delfos

Templo de Apolo, Delfos

"Ó homem, conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo"
(Inscrição no Oráculo de Delfos, atribuída aos Sete Sábios, c. 650-550 a.C.)

Segundo a tradição, o Oráculo de Delfos foi originalmente o Oráculo da Terra (Gaia), como relataram Ésquilo e Eurípides.

O que caracterizava a inspiração délfica era o estado de transe da pítia ou pitonisa, profetisa de Apolo, que, em momentos de exaltação produzida pela exalação de vapores de um grotão sobre o qual se achava a sua trípoda, proferia seus oráculos. Dionísio não era o patrono deste oráculo, mas o seu nome ficou a ele associado, por causa das bacanais que se tinham estabelecido no monte Parnaso.

Solenidades rituais acompanhavam a consulta do oráculo. Três dias antes, a pítia se preparava pelo jejum e banhos na fonte Castália, na qual também deviam banhar-se os que vinham consultar o oráculo. A pítia era escolhida entre as virgens de Delfos. A princípio, era uma só em função; mais tarde, foram duas.

A admissão dos consulentes era determinada por sorte, a não ser nos casos de precedência por direito, como quando veio a Delfos o rei Creso, da Lídia. Antes da consulta, eram efetuados sacrifícios de animais de grande ou pequeno porte. Se os presságios eram favoráveis, a pítia queimava folhas de louro e cevada, no fogo permanente do altar, e, vestida de Apolo, sentava-se no alto da trípoda, que continha as vértebras de Píton (cobra), ao lado da estátua de ouro de Apolo. Um intérprete chamado "profeta" era encarregado de explicar as palavras, os gritos e as atitudes da pítia em linguagem inteligível. Era este intérprete escolhido entre os membros das famílias nobres de Delfos. A princípio, as respostas eram dadas em versos hexâmetros, mais tarde em prosa. Sonhos também eram interpretados.

A Sibila de Delfos, de Michelangelo

A história parece provar que os oráculos de Delfos sempre deram aos gregos conselhos sábios e favoráveis. Combinaram o sentido misterioso das coisas com a energia individual, correspondendo assim a uma necessidade de confiança que tinham os consulentes. Delfos apoiou as reformas de Licurgo e de Sólon, animou o espírito colonizador dos gregos, aconselhou os espartanos a poupar a vida dos hilotas revoltados no monte Itome e a libertar Atenas do despotismo de Hípias, durante as guerras pérsicas.

CARVALHO, Delgado de. História Geral 1: Antiguidade. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 164.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Um viajante vai a pé da Europa até a Ásia

Museu Santa Sofia, Istambul

Depois de um pouco mais de três horas de vôo, um viajante francês vindo de Paris desembarca em Istambul (antiga Constantinopla), uma cidade bem grande. Ele está na Turquia e na Europa. Em Istambul, atravessa um braço de mar estreito ao transpor uma ponte de algumas centenas de metros, e o viajante ainda está na Turquia, mas não está mais na Europa, e sim na Ásia. Ele passou a pé, em alguns minutos, da Turquia da Europa para à Turquia da Ásia.

De Istambul, nosso viajante vai até a Rússia. De Moscou, dirige-se de avião ou de trem, em poucas horas, até a cadeia de montanhas situada a leste, os montes Urais. Ele começa a subir as montanhas. Quando sobe, ele está na Rússia e na Europa. Quando desce, ainda está na Rússia (mesmo se essa parte da Rússia chame-se Sibéria), mas não está mais na Europa, está na Ásia. Ele passou a pé, em poucas horas, da Rússia da Europa para a Rússia da Ásia.

O que é a Europa? Um continente - respondem os geógrafos -, isto é, um conjunto massivo de terras bem definido por fronteiras naturais, em geral por mares. É o caso da África, da América, da Oceania - mesmo que esta seja composta de muitas e muitas ilhas, grandes, como a Austrália, ou pequenas, como o Taiti. Mas a Europa, de onde se vai a pé de forma mais ou menos fácil até a Ásia, é um continente como os outros?

Em Istambul, nosso viajante ouviu falar turco, bebeu café em um copo ou em uma panelinha com a borra do café não coado no fundo; comeu espetinhos de carne, principalmente de carneiro; viu edifícios religiosos com cúpulas e com torres altas - os minaretes - de onde, em determinadas horas, um homem, segundo as regras da religião muçulmana, chama para a oração; e ele tirou seus sapatos para visitar a mesquita. Percorreu, maravilhado, os imensos mercados compostos de pequenas lojas onde admirou, especialmente, os tapetes, as jóias, os objetos de couro e respirou o odor inebriante das ervas, das especiarias e dos perfumes com cores cintilantes.

Na Rússia, nosso viajante ouviu falar russo; deram-lhe um álcool muito forte para beber, a vodka, e, várias vezes durante o dia, uma infusão de chá em um grande bule de metal, o samovar; ele comeu, em vez de pão, crepes frescos de farinha, os blinis; entrou nas igrejas onde aconteciam longas cerimônias em uma liturgia com belos cantos e padres vestidos com ornamentos brilhantes. Aquilo se parecia com os ofícios religiosos católicos (mas, antes de entrar, mesmo permanecendo com os seus sapatos, ele tirou o seu chapéu), porém o cristianismo da ortodoxia grega era diferente, e uma grande parte dos ofícios não acontecia na presença dos fiéis: os padres oficiavam atrás de uma divisória revestida de imagens piedosas coloridas, a iconóstose. Enfim, disseram-lhe que, se fosse permanecer durante o inverno, deveria se prevenir contra o frio e comprar principalmente um belo chapéu de pele, uma chapka. E ele pagou-a na moeda do país, em rublos.

Nosso viajante foi em seguida até a Grã-Bretanha. Seu avião de Paris a Londres levou menos de uma hora e, caso volte a Londres, ele poderá agora ir de trem pelo túnel sob o Canal da Mancha em aproximadamente três horas. Doravante, portanto, a Grã-Bretanha não é mais uma ilha. Ela está ligada ao continente europeu por esse túnel, o que, geograficamente, torna-a muito mais europeia. Em Londres, serviram-lhe com frequência pratos com um molho de menta e ele apreciou o café-da-manhã original, o breakfast, mais farto (muitas vezes servido com ovos e bacon) e mais saboroso do que o café-da-manhã europeu, dito continental. Ele ficou surpreso quando viu que os automóveis andam na faixa da esquerda e não na da direita, como nos outros países da Europa (menos na Irlanda, antiga possessão britânica) e que as distâncias não são medidas em quilômetros, mas em milles; uma mille vale 1,609 quilômetros. Alguns amigos ingleses o levaram para ver uma partida de seu jogo preferido, o criquete, que se joga com um taco, uma bola e uma baliza. Este jogo, que não é jogado em qualquer outro país europeu, lhe pareceu bem estranho. A religião praticada pela maioria dos ingleses é uma variante da religião protestante, originária de uma divisão (cisma) do cristianismo no século XVI. Essa religião se assemelha muito ao catolicismo, mas não reconhece o papa como chefe; a Igreja Anglicana é uma igreja independente, e, uma coisa bem estranha para um francês e para a maior parte dos outros europeus, o soberano (o rei ou a rainha) é o seu chefe. Outra diferença surpreendente, no comando da Grã-Bretanha não há um presidente da República, mas um rei ou uma rainha. E, em todo lugar, evidentemente, ele pagou com a moeda do país, a libra-esterlina, e ouviu falar uma outra língua, o inglês.

Nosso viajante francês também poderia ir facilmente aos outros países europeus, nenhum deles é muito distante. No momento, vamos nos contentar em acompanhá-lo até Roma, na Itália. Primeiro ele ficou impressionado com o número de igrejas, de padres e de religiosos. É que Roma é tanto a capital da República Italiana quanto a de um pequeno Estado independente realmente extraordinário que se reduz a uma pequena porção da cidade de Roma, o Vaticano. Este Estado tem em seu comando um chefe religioso, o papa, que é o chefe da Igreja Católica. Fora do Vaticano, o papa é o chefe espiritual de todos os católicos, inúmeros na Europa, principalmente na Europa do Sul, e no mundo. Por toda a Itália, nosso viajante foi convidado em várias ocasiões a tomar café em bares onde um excelente café, bem concentrado, era servido em pequeníssimas xícaras, ele é produzido por brilhantes máquinas que já espalharam pela Europa esse café bem "forte", o espresso. Ele também comeu muita massa e lhe ensinaram a comê-la pouco cozida, al dente. Viu mais monumentos e obras de arte do que nos outros países da Europa - mesmo na França e na Espanha, que possuem, no entanto, muitas obras. Observou que aqui se fala outra língua, o italiano, mas esta tem semelhanças com o francês. Por exemplo, os dias da semana: em italiano se diz lunedi (lundi), martedi (mardi), mercoledi (mercredi), giovedi (jeudi), venerdi (vendredi), sabbato (samedi), domenica (dimanche). Ele se lembrou que o francês e o italiano fazem parte de um conjunto de línguas europeias vizinhas, as línguas românicas (francês, occitiano, italiano, catalão, espanhol, português, romeno), que provém de uma antiga língua falada numa parte importante da Europa, o latim.

Dessa forma, ele visitou, em menos de cinco horas de vôo (e muitas vezes, excetuando-se a Rússia, em menos de três horas) ou em algumas horas de trem, países onde as pessoas falam línguas diferentes, não comem e não se vestem da mesma maneira, praticam religiões diferentes e se dizem turcos, russos, ingleses, alemães, noruegueses, poloneses, italianos ou espanhóis, mas quase nunca europeus. E, no entanto, eles são europeus. Então, nosso viajante se pergunta: A Europa existe? Ser europeu, o que isso quer dizer?

LE GOFF, Jacques. Uma breve história da Europa. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 11-17.