"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 30 de abril de 2012

A civilização céltica

Guerreiro. Esta silhueta ameaçadora de arenito vermelho é um guerreiro. O capacete é encimado por chifres que se assemelham a grandes orelhas. Glauberg, Alemanha, século V a.C.

Os testemunhos sobre a arte céltica dizem respeito a zonas geográficas muito vastas e a épocas muito diferentes. Correspondem ao estabelecimento dos celtas em ondas sucessivas, desde os Bálcãs até as ilhas Britânicas, do século IX ao I a.C. Contudo, é possível encontrar elementos constantes nas peças descobertas nas diferentes regiões da Europa. No trabalho dos metais, os celtas têm técnicas muito avançadas. Sabem tirar partido da forma de um objeto utilitário para transformá-lo num animal ou num ser humano. Os ourives têm uma destreza notável para trabalhar o ouro ou realizar espetaculares jóias ornadas de motivos curvilíneos repetidos, de plantas e de animais. O trabalho da pedra é mais rudimentar. As cabeças e as estátuas, muitas vezes grosseiramente talhadas, exprimem, no entanto, uma força inegável. Os artistas celtas têm em comum o estro de estilizar ao extremo suas representações humanas ou animais. O alongamento das formas e a insistência em privilegiar e em acentuar certos detalhes dão um vigor expressivo a peças, que muitas vezes são de tamanho muito pequeno.

SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas. São Paulo: Larousse, 2006. p. 214.

sábado, 28 de abril de 2012

Os hebreus

Yahweh, em grafite hebraico do século VIII a.C., com a inscrição "Eu te abençoo por Yahweh de Samaria e sua Asherah". Península do Sinai

Os hebreus desenvolveram sua civilização no primeiro milênio a.C. Ela não tem, portanto, a antiguidade da civilização egípcia ou mesopotâmica, embora tenha convivido de maneira estreita com essas duas civilizações (na proto-história dos hebreus, Moisés tira o seu povo do Egito no século XIII e Nabucodonosor da Babilônia destrói o templo de Jerusalém em 586). [...]

A religião judaica moderna, originária daquela praticada pelos hebreus antigos, tem um calendário que já chega perto dos 6 mil anos. 

[Os hebreus] se constituem em ponte entre as civilizações do Oriente Próximo e a nossa, a civilização ocidental. Por meio deles conhecemos mitos e ciência, práticas sociais e valores de povos de toda a região. Estudos que utilizam a Bíblia não de forma dogmática, mas como fonte de informações históricas, obtiveram referências que descobertas arqueológicas depois confirmaram.

[...]

O estudo dos hebreus é importante também, e principalmente, por causa do monoteísmo ético que surge e se desenvolve entre eles, constituindo-se em ponto de partida do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

[...]

* Saindo de Ur, na Caldéia. As origens dos hebreus localizam-se na Mesopotâmia. Isso é contado na Bíblia e comprovado por diversas evidências. O hebraico é uma língua semita, pertencente ao mesmo grupo do aramaico e de outras línguas faladas na Mesopotâmia [...].

Notável mesmo é verificar a utilização de mitos mesopotâmicos entre os hebreus. [...] 

O dilúvio sumério fala de Ziusudra construindo um enorme barco, da inundação varrendo as cidades, de tempestades de vento, , do barco jogado em todas as direções, da luz finalmente aparecendo no céu, do sacrifício que faz Ziusudra e da reconstrução do mundo. [...]

E o que dizem os hebreus?

Falam de uma arca construída por Noé, de quarenta dias e noites de chuva, da cheia superando os montes mais altos, da arca resistindo a tudo, até que "cerraram-se as janelas dos céus e a chuva dos céus se deteve". Noé sacrifica um animal a deus e a reconstrução se inicia.

Coincidência? Não.

O mito é mesopotâmico e foi apropriado pelos hebreus, para os quais o importante não era a história, mas a moral da história. Nem teria muito sentido um mito sobre dilúvio desenvolver-se numa região onde as chuvas são limitadas [...], os rios insignificantes [...] e não há degelo de montanhas nevadas.

Já na Mesopotâmia os rios pregavam constantes sustos, ora mansos, ora violentos, em vista do degelo em sua origem, nas montanhas da Armênia. Até os deuses nos dão conta da instabilidade dos rios e do temor que os habitantes tinham de sua variação.

Por tudo isso é de se acreditar na origem mesopotâmica dos hebreus.

* O início do povo hebreu. É preciso ter presente que a Bíblia tem um compromisso básico com a unidade do povo hebreu e não com a narrativa fiel de acontecimentos. Hoje em dia até autores religiosos, cristãos e judeus, duvidam, senão da existência física dos três patriarcas (Abrahão, Isaac e Jacó), ao menos da genealogia que estabelece a sucessão entre eles. (Abrahão pai de Isaac pai de Jacó). O fato de questionarmos a historicidade de alguma personagem não significa que não possam tirar da história contada informações que nos interessam. O narrador acaba referindo-se a costumes e padrões de comportamento que caracterizam uma época e dizem respeito também a mitos que derivam de uma região. Assim, não há contradição entre questionar a historicidade de personagens bíblicos, colocar em dúvida alguns dos fatos milagrosos ali narrados e utilizar o material como fonte para o trabalho do historiador.

A questão da historicidade dos patriarcas tem a ver com a própria questão de quem teria sido o primeiro hebreu, isto é, de quando poderíamos datar a existência dos hebreus como povo. [...]

A Bíblia fala de José, filho de Jacó, indo para o Egito, aprisionado e depois funcionando como ponta-de-lança para a vinda de toda a família. Isso bateria bem com a presença de clãs semíticos durante um certo tempo no delta do Nilo, documentada em material egípcio. [...]

Ramsés II reinou de 1290 a 1224 e teria sido ele o faraó da história de Moisés. De qualquer forma, há uma referência aos apirus ou abiru trabalhando para Ramsés II. Abiru e ibri ou ivri (hebreu, em hebraico) devem ser o mesmo povo. Como saíram do Egito, por que e quantos não sabemos, mas a ideia de entrada de um grupo de tribos na Cananéia lá por 1230/1220 é apoiada em documentos. Pouco depois, por volta de 1190 estabeleciam-se os filisteus, derrotados por Ramsés III, e ocupavam as cidades litorâneas como Ascalon, Asdob e Gaza. Convém lembrar que da palavra filisteu (plishtim, em hebraico) deriva o termo Palestina, uma das várias denominações da região.

As tribos que se instalaram em Canaã seriam as mesmas que de lá haviam saído tempos antes, ao ir para o Egito? É de acreditar que não. Quando para lá se transferiram, premidas pela fome, não foram sozinhas, mas no bojo de um largo movimento de povos famintos. Uma parte dos descendentes de Jacó teria talvez ficado lá, outra teria-se miscigenado. O nome de Moisés, tipicamente egípcio, mostra bem certa preocupação com a assimilação que as tribos instaladas no Egito tinham. Também o grupo levado por Moisés a Canaã não era homogêneo, como reconhece a própria Bíblia. Bastava o líder voltar as costas, que a turma adorava outros deuses. Tanto assim que o grupo, não sendo ainda um povo ou uma tribo, foi denominado "geração do deserto", tendo de caminhar durante anos até adquirir alguma solidariedade grupal.

Assim, embora reconhecendo as origens dos hebreus nos descendentes de Jacó (José e seus irmãos, na narrativa bíblica), só podemos aceitar o início do povo hebreu a partir do momento em que se instalam na região de Jericó algumas tribos que lutam juntas, sob a chefia de Josué, para conquistar um espaço onde possam viver.

Com isso, inaugura-se o ciclo de mais ou menos duzentos anos que vai até o início da monarquia, com Saul, em 1030.

* Juízes e reis. De 1200 a 1030 os hebreus desenvolvem um sistema tribal com a ausência de propriedade particular de bens de produção. Governantes existiram só de passagem e por ocasião de guerras, quase sempre contra os filisteus. Sansão terá sido o mais conhecido dos juízes, denominação dada a esses líderes que não diferiam de outros chefes militares instituídos por federações tribais. [...]

[...] os anciãos de Israel vêm a Samuel, juiz na ocasião, e solicitam um rei "como o têm todos os povos". Samuel conversa com o seu deus, que discorda da ideia, alegando uma série de mazelas que iriam ocorrer com a instituição da monarquia: o rei se apropriaria dos jovens do povo, transformando-os em soldados e cocheiros, em "lavradores dos seus campos e segadores de suas messes"; exigiria dízimos, expropriaria servos e animais e os colocaria a seu serviço. E, finalmente, colocaria o próprio povo a seu serviço, em servidão.

Trata-se de uma preciosa descrição da transição de uma sociedade tribal sem poder central e métodos coercitivos de trabalho para uma monarquia centralizada, cuja organização exige mão-de-obra disciplinada a serviço da organização que precisa alimentar muitas bocas destinadas a tarefas não produtivas.

O cronista que escreveu esse trecho da Bíblia (I Livro de Samuel) teria sido um profeta se não tivesse escrito isso tudo alguns séculos depois de os acontecimentos terem ocorrido. É como se alguém, sabedor de um fato, relatasse-o e colocasse uma data bem anterior para dar a impressão de ter antevisto a história. Isso é muito utilizado como recurso narrativo na Bíblia, que, ao contrário do que muita gente pensa, não foi escrita na ordem cronológica que aparece agora. No caso, nosso cronista foi um profeta do passado.

Com Saul, instaura-se a monarquia entre os hebreus. Mas já nessa ocasião havia uma divisão entre as tribos do norte (Israel) e as do sul (Judá) e Saul fracassa na tentativa de atrair Judá ao seu reino. Morre nessa tentativa fracassada.

Davi tem mais sucesso. Começa organizando o pequeno reino de Judá, constituído da tribo de Judá e de cineus, iemareus e outros povos não-hebreus, sediados na cidade de Hebron. Bom soldado e líder carismático, Davi estende seu poderio derrotando os arquiinimigos filisteus e conquistando a cidade de Jerusalém, a qual transforma em capital do reino.

Manda construir um palácio e verifica que falta algo muito importante ao seu reino e a Jerusalém: o prestígio religioso. Descobre, ou manda fazer, em algum local o que afirma ser a arca da aliança e a traz, com muita pompa. Com isso, legitima o seu poder "pela graça de deus", fortalecendo-o mais e mais.

A organização do Estado torna-se mais complexa e cara; os mercenários, que constituíam parte importante do exército de Davi, tinham de ser pagos, assim como tinha de haver recursos para as construções que edificava com bastante luxo. A solução era manter o expansionismo, conquistar e saquear, o que passou a ser feito com considerável sucesso.

Mesmo no seu momento máximo, o reino de Davi era insignificante se comparado aos grandes impérios egípcios, babilônicos ou hititas. Mas era o máximo que se edificara na região em séculos. Aos olhos dos hebreus, então pouco mais que beduínos, aquilo devia ser considerado uma coisa de outro mundo e Davi é o símbolo do poder político dos hebreus, na Antiguidade e, por extensão, no moderno Estado de Israel. O historiador Adolphe Lods lembra, a propósito, que a primeira referência de caráter messiânico entre os hebreus foi a esperança da volta à idade de ouro dos tempos do rei Davi.

* Salomão e o templo. Salomão foi um soldado inferior a seu pai, Davi, mas compensou essa deficiência com uma grande habilidade política. Logo que subiu ao poder, perdeu algumas terras. Compensou-as com acordos e casamentos em que recebia como dote cidades inteiras. Foi amigo de faraós e reis fenícios, possuiu um enorme harém, construiu palácios e fortalezas.

"Porém, para sustentar a política de grandes construções e o luxo da corte, Salomão instituiu impostos opressivos e criou um corpo de funcionários encarregados da fiscalização e cobrança dos tributos. Além disso, os camponeses eram recrutados à força para trabalhar nas obras públicas. Tais medidas geraram descontentamentos e acarretaram revoltas sociais." BRAICK, Patrícia Ramos; MOTA, Myriam Becho, História: das cavernas ao terceiro milênio. Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010. p. 83.

Descobriu com os fenícios que o comércio podia dar mais lucro que a pilhagem, mas não deve ter tido um sucesso muito grande nisso, já que foi obrigado a cobrar taxas de seus súditos, o que lhe proporcionou muita impopularidade. Figura das mais mitificadas, a ele são atribuídas tanto textos filosóficos como eróticos (Cântico dos Cânticos) [...] Ao mesmo tempo que julgava com extrema sabedoria, era amante voraz e sofisticado - consta que tinha setecentas esposas princesas e trezentas concubinas (I Reis, 11, 3). Além de opções noturnas, elas representavam uma extensa rede de alianças políticas.

A mitificação de Salomão decorre do fato de ter sido ele o construtor do famoso templo de Jerusalém, ponto de referência espiritual e material do povo, tanto na época em que foi construído como depois. O templo passou a funcionar como uma espécie de símbolo nacional; da mesma forma como Jerusalém, metaforicamente, tinha o significado de Israel toda, o templo significava Jerusalém. Até hoje, judeus religiosos pedem a Deus a honra de estarem "o ano que vem em Jerusalém" para poderem rezar junto ao muro ocidental, o único que restou do templo.


Parte do muro ocidental

Com o templo, Salomão dá um novo local a Iavé, o deus dos hebreus, a quem tinham sido atribuídas diversas residências antes.

Inicialmente, Iavé morava nos desertos do sul (Juízes 5, 4). Depois, aos poucos, Iavé mudou para a terra de Canaã, passando a possuí-la toda, mas não saindo dela. Um deus "nacional" que não fazia prosélitos, nem gostava de ser adorado fora de seu país, pois terra estranha não é local adequado, por ser impuro. A ligação material com a terra era tão forte que quando Naaman, general arameu, foi curado por Eliseu e quis dar graças a Iavé, transportou para o seu país, no dorso de duas mulas, um pouco da terra de Canaã, sobre a qual construiu um altar (II Reis, 5, 17); para todos os efeitos, ele se erguia sobre território de Iavé...

Pode-se inferir, pela leitura de alguns textos, que Iavé habitava os santuários e depois, de forma especial, o santuário do templo. E em outros fala-se no céu como habitat de Iavé. Salomão, ao levantar o templo, buscava localizar fisicamente Iavé, encarcerá-lo em seu palácio e submetê-lo aos interesses da monarquia.

As regras da religião tinham sido bastante livres até então; cada qual dialogava com Iavé da sua maneira e sem intermediários. A instauração de sacerdotes para fazer os sacrifícios segundo determinadas normas inacessíveis aos simples mortais visava estabelecer uma forte relação de dependência entre povo e poder político, por meio da ritualização da religião.

* O monoteísmo ético. Apesar dos esforços de Salomão, seu reino não sobreviveria após sua morte. O novo rei, Roboão, só consegue governar Judá, já que as tribos de Israel se desmembram. Pressionados pelos pequenos Estados em volta e pelos grandes impérios próximos, nunca mais haveria um Estado forte e independente na região. Os reinos perderam poder, mas seus governantes não perderam a arrogância e a vontade de conservar a suntuosidade a que estavam acostumados. Isso lhes custou desobediência civil e questionamento de sua autoridade.

O reino de Israel sobrevive até o ano 720, quando é destruído pelos assírios, os quais removem grande parte da população para outras partes do seu império. O reino de Judá vais se mantendo, aos trancos e barrancos, até o ano de 586, quando Nabucodonosor destrói Jerusalém e o templo, símbolo do deus nacional e da ligação entre a divindade e o poder político.

As tribos de Israel acabam assimilando os hábitos e a cultura dos povos vizinhos e perdem totalmente sua identidade com Iavé. [...] Os israelitas ou judeus, descendentes dos hebreus, tomam a herança cultural e, por meio de uma série de transformações, carregam-na até agora.

[...]

Entre os hebreus, Iavé evoluiu de um deus tribal para um deus universal, de um deus de guerra, senhor de exércitos, para um juiz sereno, consciência social e individual, exigente de justiça social.

Os profetas sociais, Amós e Isaías, principalmente, foram os grandes responsáveis por esse passo.

Vivendo no século VIII, os profetas sentiam o peso da monarquia sobre o povo, o luxo dos poderosos convivendo com a miséria dos camponeses e criadores, palácios ao lado de palhoças. Utilizando-se de antiga tradição do templo dos cananitas, a tradição de prever o futuro em nome de uma entidade superior inspiradora, os profetas lançam suas negras profecias sobre os que tratam tão mal o pobre, pensando apenas em si mesmos.

É possível que no seu discurso estivesse presente o grito de liberdade de um povo de criadores, livre por excelência, preso agora a obrigações de pagar impostos a um governo que pouco lhes dava em troca.  Deviam os profetas representar o inconsciente coletivo do inconformado grupo com a perda de campos de pastagens, insatisfeito com a centralização monárquica, desconfiado daquele templo que exigia tributos.

O povo tinha nostalgia do período tribal: o olhar para o passado sem injustiças sociais, sem opressão, sem impostos para sustentar a nobreza e o exército inúteis acabou se constituindo em mensagem para o futuro.

Vejam o que diziam os profetas:


De que me serve a multidão de vossas vítimas? Diz o senhor
Já estou farto de holocaustos de cordeiros
e da gordura de novilhos cevados [...]
Deixai de pisar nos meus átrios.
De nada serve trazer oferendas [...]
Vossas mãos estão cheias de sangue, lavai-vos, purificai-vos.
Tirai vossas más ações de diante de meus olhos.
Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem.
Respeitai o direito, protegei o oprimido:


Fazei justiça ao órfão, defendei a viúva.


(Isaías, 1, 2-7)

O texto é claro no seu anti-ritualismo, na sua crítica aos sacrifícios do templo - prática incorporada à religião -, na sua crítica àqueles que, por meio de uma religião formal, buscavam a divindade. Isaías diz que Iavé não quer oferendas nem rezas, quer que as pessoas ajam de forma correta, isto é, pratiquem a justiça social.

O que fica dos hebreus não é, portanto, o som da lira de Davi ou o discutível e limitado poder político; não fica também o deus tribal nem o Senhor dos Exércitos. Fica a mensagem por uma sociedade mais justa, utopia sem a qual é difícil imaginar o sentido das próprias sociedades humanas.

PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. São Paulo: Contexto, 2010. p. 105-118.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Túmulos reais: mastabas, pirâmides, hipogeus

A arquitetura funerária foi uma das primeiras manifestações da arte egípcia. Ela se destaca especialmente nos túmulos reais que, em geral, são monumentos. Há três tipos: mastabas, pirâmides e hipogeus.

Pintura mural da mastaba de Ptahiruca

* Mastabas. A mastaba (túmulo de reis e de nobres) é uma câmara funerária, coberta por uma singela construção de tijolos, de base retangular, com paredes inclinadas. As mastabas foram aumentando de altura, acrescentando-lhes vários andares, em degraus (pisos escalonados); e, assim, evoluíram lentamente para a forma piramidal.

Pirâmide em degraus de Sakkara

* Pirâmides. Foram erguidas mais de 70. A sua construção processou-se no período do Antigo Império. As pirâmides mais famosas - pelo seu gigantesco tamanho - são as de Gizé (perto de Mênfis), mandadas erguer pelos faraós Quéops, Quéfren e Miquerinos (IV dinastia).

A maior das pirâmides, a de Quéops, tinha uns 147 m de altura e uns 234 m de lado (da base). [...]

Para a construção da pirâmide de Quéops - dizem as crônicas - foram empregados 100.000 homens, durante 20 anos. Seus blocos de pedra (2.300.000, com um peso médio de 2.500 kg por unidade) estão ajustados com extraordinária precisão. "Em alguns lugares, a largura das juntas não ultrapassa 25 micromilímetros."

A pirâmide de Quefrén é apenas 3 metros mais baixa que a de Quéops. Está ligada por um longo corredor a um pequeno templo, à cuja direita se ergue a Esfinge, estátua monstruosa com o corpo de leão e cabeça humana.

A grande esfinge de Gizé

O hábito de construir pirâmides foi abolido com a VI dinastia (2423 a 2300 a.C.).

* Hipogeus. No período tebano apareceu um novo tipo de túmulo real: o hipogeu, túmulo subterrâneo, cavado no flanco das montanhas, formado por uma série de câmaras onde se depositavam os esquifes.

BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 35-36.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

"O sertão vai virar mar": Canudos, Contestado, Juazeiro, Caldeirão, Pau de Colher


Castigados pela fome e marcados pela varíola, dezenas de sertanejos ouviam com atenção o profeta de barbas longas. Não era um cangaceiro. Em vez da espingarda papo-amarelo, empunhava um crucifixo. Não usava camisa listrada, nem calça de brim cáqui, como Lampião, mas uma túnica de algodão azul. Na mão não havia nenhum punhal de 78 cm de lâmina: apenas um velho cajado. O "santo" anunciava um mundo novo:

- Em 1898 há de rebanhos mil correr da praia para o sertão. Então o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão! Em 1899 ficarão as águas em sangue. Há de chover uma grande chuva de estrelas e aí será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes!

As profecias eram feitas por Antônio Mendes Maciel, o Antônio Penitente, o Antônio Beato, o Antônio Conselheiro. Um cearense que caminhava pelos sertões anunciando o fim do mundo e o "novo século", um santo que todos queriam ouvir.

Antônio Conselheiro

Na feira semanal de Bom Conselho, uma cidadezinha do interior baiano, Conselheiro aconselhou:

- Ninguém deve pagar imposto pro governo da República! Deus é o nosso verdadeiro Rei, só a Ele devemos prestar contas!

Quem já não acreditava nas autoridades seguiu o Conselheiro. Muita gente! Gente que sentia que era preciso mudar a vida. Antônio Conselheiro dava asas aos sonhos dos miseráveis do sertão. As águas do rio Vaza-Barris virariam leite, suas barrancas seriam transformadas em pão-de-milho... Delírio na cabeça, pé na estrada: homens e mulheres abandonavam fazendas e juntavam-se ao beato andarilho.

- Não podemos tolerar esses elementos perniciosos. Vão ter que obedecer as leis e as autoridades constituídas!, dizia enfurecido o presidente do Estado da Bahia.

A primeira tentativa de chamar os penitentes à ordem foi mal-sucedida. Trinta praças da polícia foram derrotados.

Depois desse choque, o Conselheiro e seus seguidores decidiram ocupar uma fazenda abandonada, junto ao rio Vaza-Barris. Nascia o povoado de Belo Monte ou Arraial de Canudos. Nele chegaram a viver 30 mil sertanejos. Como no Quilombo dos Palmares, duzentos anos antes, os sertanejos construíram sua própria comunidade, plantaram, criaram, fizeram trocas com as cidades vizinhas.

O Arraial de Canudos

O governo não podia tolerar esse "mau exemplo"! Mandou uma tropa com cem soldados. Morreram dezenas de sertanejos, mas o batalhão foi rechaçado. [...]

Começava a guerra do fim do mundo. Em sua segunda investida contra Canudos, o governo mandou seiscentos homens, soldados, armados até com canhão. Foram novamente vencidos e ainda deixaram o canhão.

A terceira expedição foi comandada pelo coronel Moreira César [...].

- Avança, fraqueza do governo!, gritavam os defensores de Canudos.

A força armada do governo avançou e perdeu, mais uma vez...

[...]

O famoso coronel foi derrotado com seus mil e trezentos homens. As autoridades do governo não entendiam onde aqueles "fanáticos, ignorantes e preguiçosos" arranjavam tanta força para resistir.

As vitórias dos "fanáticos" não eram, porém, obra da sorte. O Arraial de Canudos organizava-se a cada dia [...].

Mas o governo dispunha de recursos muito maiores que os sertanejos: tinha um exército profissional e armas modernas e poderosas como os canhões...

[...]

Em 1897, o Ministro da Guerra, marechal Carlos Bittencourt, organizou a quarta e mais bem equipada campanha contra Canudos: oito mil soldados e diversos canhões. No mês de outubro, as tropas concluíram o cerco ao arraial, bombardeando-o, horas seguidas, com seus canhões... Canudos foi arrasado. Mulheres e crianças, vendo os homens caírem, pegaram em armas e investiram cegamente sobre os pelotões de soldados armados até os dentes. Tudo em vão: a vila santa ficou em ruínas. O rio por onde corria leite e mel ficou com suas águas turvas de sangue. Os prisioneiros foram degolados.

[...]

Ainda na República Velha, poucos anos depois do extermínio de Canudos, estourou um outro conflito. No Sul do Brasil também havia gente inconformada:

- A monarquia é uma coisa do céu: o primeiro governo que nós sabia que tinha era o Império, e esse é que estamos esperando!

Foi a Guerra do Contestado.

O nome foi esse porque a região - rica em erva-mate e madeira - era disputada pelo Paraná e por Santa Catarina. Nessa região tão cobiçada viviam milhares de pessoas pobres. Eram posseiros, que cultivavam a terra sem ter o título de propriedade. Na sua maioria, vinham de fazendas ou das linhas de estrada-de-ferro que estavam sendo construídas.

Esse povo pobre começou a ser pressionado a sair da região. A terra era propriedade da Southern Brazil Lumber & Colonisation, que queria montar suas serrarias! E também da Brazil Railway, que queria o progresso com seus caminhos-de-ferro!

Para os sertanejos do Contestado isso não era justo:

- Nóis não tem direito de terra e tudo é pras gente da Oropa!

O governo estava do lado das Companhias e dos coronéis, que também queriam tirar os posseiros de lá. Os padres da Igreja Católica preferiram ficar do lado dos poderosos, e alguns pagaram por isso. [...]

[...]

No lugar dos padres, o povo do Contestado seguia os monges, gente saída de seu próprio meio, que defendia seus interesses, principalmente o direito à terra. Como Antônio Conselheiro, os monges prometiam, para breve, a criação de um reino de justiça, fartura e paz para os irmãos.

Assim foi José Maria, o monge líder da primeira irmandade rebelde. Ele morreu porém, nos campos de Irani, na área contestada, depois de um ataque das tropas do governo do Paraná.

Monge José Maria

Reagrupados em Taquaraçu, em 1913, os irmãos não tiveram mais sossego: sofreram ataques do Exército, da polícia e dos jagunços dos coronéis.

Mas em Caraguatá, onde se fixaram, eles se tornavam tão numerosos que conseguiram interromper, por algum tempo, o tráfego da estrada-de-ferro. Lá eles organizaram uma comunidade onde as crianças eram consideradas santas e as procissões eram acompanhadas por um intenso foguetório. Vez por outra, os posseiros saqueavam alguma grande fazenda e promoviam festas, com fartura para todos.

A alegria dos pobres durou pouco. Uma força de seis mil soldados, apoiada pela aviação de bombardeio, aniquilou os rebeldes. Em 1916 foi preso Adeodato, o último líder dos sertanejos.

Vou pedi meu Padim Ciço
Vou pedi com devoção
Padim Ciço neste mundo
É a nossa sarvação
Cura espinhola caída
Sabe fazê oração
Tira demonho do corpo
Afugenta tentação

Vou pedi meu Padim Ciço
Pra minha água rezá
Tirá quebranto da égua
Outras mazela tirá
Vou pedi meu Padim Ciço
Pra minha égua benzê
Ela anda descadeirada
D'oio direito não vê

Os romeiros pediam com a boca, com os olhos, com as mãos. E tinham, no sul do Ceará, quem velasse por eles: o padre Cícero Romão Batista. Não era um Lampião, não era um Conselheiro, não era um José Maria ou um Adeodato. Era um homem da lei e da ordem, amigo dos coronéis, prefeito de Juazeiro, vice-presidente do Ceará, líder político da República Velha.

O "Padim Ciço" era, no entanto, um padre que não ficava na sacristia e, por isso, conhecia as misérias e crendices de sua gente. Curava doentes, encomendava defuntos, fazia rezas. Milagreiro!, dizia o povo.

Padre Cícero

A Igreja Católica não aceitou esse padre - ele foi excomungado no final da década de 1920. Mas os políticos casacas sempre o exaltaram. A fortuna também andou ao seu lado: no seu testamento constavam cinco fazendas, trinta sítios e mais de quinhentos prédios, inclusive o da cadeia de Juazeiro...

O beato Lourenço, admirador do padre Cícero, não seguiu inteiramente o seu mestre. Organizou sua irmandade no sítio do Caldeirão e construiu ali um pequeno mundo de maior igualdade entre seus membros. Os dois mil moradores do Caldeirão ergueram barragens, um engenho, um tear para fazer suas roupas. E plantaram milho, arroz, mandioca, cana, feijão e algodão. Criaram cavalos, vacas, porcos e até aves raras. [...] O produto era dividido igualmente [...].

Para o governo, a experiência do Caldeirão não prestava: estava tirando mão-de-obra das fazendas de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Piauí, Maranhão e do próprio Ceará, diziam.

Por isso, foram enviadas tropas para a região, que ficava próxima à cidade do Crato. A população retirou-se pacificamente, e os soldados queimaram centenas de choupanas.

Depois de perambular sem terra e sem teto, os penitentes se estabeleceram em Pau de Colher, no interior da Bahia. Um novo líder, Severino Tavares, não tinha a mansidão do preto Lourenço. Jamais abandonaria aquele chão sem resistir!

- Esmaguem os fanáticos!, ordenou o Ministro da Guerra, depois que dez soldados foram mortos a golpes de facão e foice no Arraial de Pau de Colher.

No sertão baiano, no mesmo ano (1938) em que Lampião e seus cangaceiros foram dizimados, quatrocentos seguidores dos beatos Lourenço e Severino eram mortos.

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 2: a República. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 30-35.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

As mui ricas horas do duque de Berry c. 1413-1489

Considerado por muitos como o mais belo manuscrito ilustrado, As mui ricas horas do duque de Berry é um exemplo perfeito de um Livro de Horas medieval. Esses livros devocionais continham um texto para cada hora litúrgica do dia, além de um calendário, orações, salmos e missas para certos dias santos. As mui ricas horas do duque de Berry foi encomendado por Jean, duque de Berry (1340-1416), um nobre francês que também era irmão do rei Carlos V da França. O duque era um grande conhecedor medieval das artes visuais e um bibliófilo apaixonado. Ele contratou os irmãos Limbourg - Paul (Pol), Herman e Jean (Jannequin) - para que pintassem as belas iluminuras que ilustram os textos. Os três artistas, juntamente com o patrono, morreram antes que o Livro das Horas fosse concluído.


Esta é a ilustração feita para o mês de outubro do calendário, a parte mais famosa do Livro. Em primeiro plano, camponeses aparecem trabalhando na lavoura, enquanto, a distância, podem-se ver os membros da nobreza caminhando ou conversando ao longo do rio Sena, em frente ao palácio real. A imponente estrutura do Louvre é retratada com tantos detalhes que, ao longo dos anos, vários pesquisadores estudaram a imagem a fim de compreender melhor qual era a aparência original da construção. Os elementos aparentemente contraditórios do campo e o luxo da corte são expressos com cores brilhantes, aplicadas com pinceladas delicadas e pigmentos caros.

Bryan Doubt. As mui ricas horas do duque de Berry. In: FARTHING, Stephen. (Org.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 132-133.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Impérios de bronze

Cena de caça em um punhal. Túmulo em Micenas, século XVI a.C.

Bronze é uma liga de cobre e estanho, feita pelo aquecimento de metais combinados. É mais duro que o cobre, mas tem um ponto de fusão mais baixo, e é mais fácil de moldar. O cobre é obtido de minérios como a calcopirita (uma combinação de cobre, ferro e enxofre), mas é ocasionalmente encontrado em estado puro - por exemplo, em meteoritos. Muitas sociedades da Idade da Pedra estavam familiarizadas com ele, e o metal era muito procurado para a confecção de ornamentos e joias. Mas sua raridade e maleabilidade eram desvantajosas quando se tratava de fazer ferramentas e armas. No terceiro milênio a.C., as pessoas descobriram como produzir cobre aquecendo minérios de cobre além do ponto de fusão do metal. Aprenderam também a combinar cobre com estanho para aumentar a dureza. A liga resultante - o bronze - revolucionou a manufatura de ferramentas. E levou a uma revolução ainda maior na confecção de armas.

Ponta de dardo de bronze gravada, Lagash, 3º milênio a.C.

O bronze foi produzido pela primeira vez por volta de 3000 a.C., mas por centenas de anos permaneceu escasso, pois era difícil obter estanho. Não foi senão com a descoberta de ricas reservas de estanho, como as da Espanha e da Anatólia, que o bronze pôde ser utilizado em larga escala. Quando isso ocorreu, as armas de bronze transformaram as práticas de guerra. Uma lança de bronze era mais forte que uma pedra. Era feita de uma única peça, ao passo que uma lança de pedra tinha a força somente de sua haste e das amarras que a prendiam à haste. O mesmo pode ser dito da adaga de bronze. A espada de bronze não tinha equivalente na Idade da Pedra. A arma que mais se aproximava de sua eficiência era a clava de pedra.

Capacete de bronze

Armas e ferramentas de bronze não só eram mais eficazes como também mais fáceis de fazer. Ferramentas de pedra produzidas a mão, demandavam tempo e exigiam habilidade considerável. Objetos de metal podiam ser produzidos em massa. Um único modelo feito a mão podia ser usado para fazer centenas de moldes, cujas fornadas podiam ser enchidas com uma concha de metal. Quando o metal esfriava, o trabalho envolvido em desbastar as aparas do molde bruto levava uma fração do tempo envolvido na produção de uma ferramenta ou uma arma de pedra.

Essa mudança na tecnologia da paz e da guerra teve lugar no cenário das transformações da sociedade humana. Uma das consequências de guerras recorrentes foi a redução no número de cidades-Estado, à medida que as derrotadas eram absorvidas pelas fronteiras de suas rivais vitoriosas. Algumas das vitoriosas, por sua vez, eram conquistadas posteriormente, abrindo caminho para Estados ainda maiores. Em 2334 a.C., os exércitos de Sargon da Acádia, na Mesopotâmia setentrional, conquistaram o reino da Suméria, que somava apenas 16 anos de existência mas já possuía mais de um milhão de pessoas. Ao fazê-lo, ele criou o primeiro império do mundo. Mas não estava destinado a durar muito. Os mil anos seguintes na Mesopotâmia testemunharam um processo de ascensão e queda de impérios sucessivos, conforme os povos nas regiões circundantes se deslocavam, e cada um, respectivamente, cobiçava a abundância e as amenidades do rico território.

Essa longa competição entre impérios rivais originou uma melhoria continua na tecnologia de guerra. A eficácia das armas de bronze, e sua facilidade de manufatura, constitui apenas parte da história. O que de fato mudou a guerra foi o uso de armas e armaduras de bronze combinado com outra invenção que surgira na mesma região: o cavalo de batalha.

Cavalos haviam sido domesticados por volta de 4000 a.C. por nômades do leste da Europa e da Ásia Central, mas por muito tempo permaneceram apenas como fonte de alimento. Eles forneciam carne e leite, mas seus donos mais antigos os consideravam montaria tanto quanto teriam pensado em montar uma vaca. Não foi senão por volta de 2000 a.C. que os cavalos foram montados com um propósito sério, e o lugar onde a prática se originou parece ter sido o norte do atual Irã. Assim que a habilidade foi dominada, sua utilidade para o combate logo se tornou aparente, e a tradicional prática de procriação para obter docilidade foi invertida, na medida em que a ênfase recaiu sobre a força e a velocidade. Por volta de 1500 a.C., tropas montadas eram um componente padrão dos exércitos por todo o Crescente Fértil, e a cavalaria nômade instilava o terror nas comunidades de fazendeiros do leste da Europa ao oeste da China. Desse modo, tiveram início recorrentes incursões a cavalo aos territórios povoados da Europa e da Ásia, que continuariam pelos 3 mil anos seguintes. Nesses conflitos, os nômades errantes do leste da Europa e da Ásia Central  contavam com uma arma secreta imbatível: grama. Era algo que os cavaleiros das estepes tinham em abundância, e isso facilitou aos povos nômades manter grandes bandos de cavalos e, mais do que tudo, criá-los visando aprimorar a velocidade e o vigor físico. Uma vida sobre a sela também significava que todo homem e rapaz eram potenciais cavaleiros, capazes de ser mobilizados de um momento para outro.

A combinação de cavalo e metal tornou possível o carro de batalha. Essa invenção foi um avanço comparável à introdução do tanque de guerra no século XX. Assim que os construtores de carros passaram a contar com um material duro e fácil de trabalhar como o bronze, as vantagens do metal sobre a madeira na construção de veículos militares tornaram-se óbvias. Entre 2000 a.C. e 1500 a.C., muitos povos do sudoeste da Ásia desenvolveram algum tipo de carro de batalha. Mas a versão leve dois-homens-duas-rodas criada pelos nômades das estepes foi uma arma de guerra muito mais eficaz do que os desajeitados carros de quatro rodas usados pelos povos das planícies. Esse carro leve e os arqueiros a cavalo, capazes de disparar flechas cavalgando em alta velocidade, criaram um novo tipo de guerra. Exércitos agora podiam deslocar-se por grandes distâncias, e ataques podiam ser lançados contra cidades desprovidas de defesa por forças que nem sequer imaginavam encontrar pelas redondezas.

Essas mudanças na tecnologia de guerra foram acompanhadas por outras igualmente drásticas nos assuntos da vida cotidiana. A rede de comércio agora se estendia por milhares de quilômetros. O transporte fluvial fora transformado com a invenção da vela. [...] Em nenhum lugar isso teve mais importância do que no Egito, um país erguido às margens de um rio. Os egípcios já usavam botes feitos de tábuas, que lhes possibilitaram transportar pesadas cargas a jusante. Mas depois que inventaram a vela, por volta de 3500 a.C., puderam explorar os ventos do norte para viajar a montante com a mesma facilidade com que desciam o rio. [...]

A invenção da vela não só transformou o transporte fluvial: também tornou possível a travessia de oceanos. Em vez de remar ao longo da costa, os marinheiros tornaram-se aptos a enfrentar o desafio do mar adentro. Os primeiros veleiros egípcios contavam com velas longas e estreitas presas a dois mastros. À medida que se aventuravam pelo Mediterrâneo, desenvolveram a vela grande e quadrada, que mais tarde se tornaria o padrão de navegação marítima por toda parte. Essas naus oceânicas [...] ampliaram enormemente o alcance do comércio egípcio e inauguraram uma era de supremacia naval do Egito que durou quase 2 mil anos. Eles traziam cobre de Chipre, estanho da Ásia Menor e, o mais importante, em um país sem florestas, madeira do Líbano.

O desenvolvimento da navegação de alto-mar foi um fator crucial na aceleração da mudança que caracterizou a transição da Idade da Pedra para a Idade do Bronze. O transporte marítimo era muito mais fácil que o terrestre. Isso gerou imensa vantagem para qualquer sociedade com acesso a águas navegáveis; vantagem que perduraria até a invenção da locomotiva a vapor, no século XIX. Em nenhum lugar essa vantagem foi mais importante do que para as sociedades que cresciam em torno do Mediterrâneo. [...] À medida que povoamentos e portos se instalaram às suas margens, ele assumiu cada vez mais o caráter de um grande lago interior, ao redor do qual se estabeleceram diversos Estados [...].

O Egito, com sua localização privilegiada para se beneficiar do comércio oceânico tanto no Mediterrâneo quanto no golfo Pérsico, foi a mais brilhante e poderosa dessas civilizações marítimas. Mas, durante o segundo milênio a.C., outras surgiram em cena. Uma delas, a minóica, estabeleceu-se na ilha rochosa de Creta. Ali, no que à primeira vista era uma paisagem inóspita, uma estirpe de resistentes agricultores cultivava trigo, plantava oliveiras e videiras e criava ovelhas. Por quinhentos anos, eles conduziram um comércio de exportação de lã, vinho e azeite com outros países e com suas próprias colônias em torno do Egeu. os vestígios de seus palácios dão testemunho da prosperidade resultante. Nas ruínas de um deles, um tabuleiro de jogo foi encontrado, incrustado de marfim e lindas pedras de lápis-lazúli de sua única fonte disponível na época, as minas acima de Faizabad, no Afeganistão. Era um achado que condensava tanto o luxo usufruído pelas classes dominantes nas civilizações da Idade do Bronze como as redes mercantis em que esse luxo estava baseado.

Em 1628 a.C., os povoamentos costeiros minóicos foram inundados por um tsunami, e seus campos soterrados pelas cinzas de uma erupção vulcânica da ilha de Thera (Santorini), 160 quilômetros ao norte. A civilização sobreviveu, a despeito da fome e da desordem social, mas em 1450 a.C. finalmente sucumbiu a um ataque de invasores vindos de Micenas, no continente grego, durante o qual a maioria de seus palácios e vilas foram arrasados.

A queda da civilização minóica coincidiu com o surgimento de uma nova cultura marítima no Mediterrâneo oriental - a dos fenícios. Eles falavam uma língua aparentada com o hebraico e viviam em áreas litorâneas onde hoje estão situados os atuais Síria e Líbano. Essa região é abençoada com alguns dos melhores portos naturais do mundo. Em 1500 a.C., já existia um agitado comércio transoceânico com o Egito e a Mesopotâmia. Três produtos em particular formavam sua base: madeira de pinheiro e cedro; tecidos tingidos com o famoso púrpura de Tiro, também conhecido como púrpura "real" ou "imperial", obtido do molusco Murex; e marfim de elefantes africanos, que era destinado à Mesopotâmia e a toda parte.

No início, os fenícios haviam se sujeitado à soberania do Egito, mas este império estava se desmanchando diante dos ataques tanto do norte quanto do sul. Por volta de 1000 a.C., com o enfraquecimento da influência egípcia na região, as principais cidades fenícias - Tiro, Sídon, Biblos, Berytus (Beirute) e Ugarite - evoluíram para cidades-Estado independentes. Elas abrigavam milhares de artífices, que produziam artigos de grande procura, como obras de metal, tecidos finos e bordados. À medida que o mercado marítimo prosperava, os fenícios estabeleceram postos de comércio por toda a extensão e amplitude do Mediterrâneo. Um desses, Cartago, na Tunísia moderna, se tornaria mais tarde a maior cidade fenícia.

Um retrato vívido das atividades comerciais dos fenícios nessa época é fornecido pelo relato de um mercador egípcio chamado Weinamun, que foi enviado a Biblos pelo faraó governante em 1075 a.C. para obter madeira de navio. Ele foi despachado furiosamente por Zeker Ba'l, soberano de Biblos, irritado com a sugestão de que deveria entregar a madeira como um tributo, de acordo com o que se esperava que seus ancestrais fizessem. Quando Weinamum voltou com cinco jarras de prata, quatro jarras de ouro, quinhentas peles de boi, grande quantidade de cordas e tecidos e trinta cestos de peixe, Zeker Ba'l amoleceu, e trezentos homens e 3 mil bois foram convocados para derrubar enormes cedros e transportá-los até o porto.

O império comercial dos fenícios deixou um supremo legado na forma do alfabeto, o mais econômico sistema de escrita de todos. [...] Foi o uso desse alfabeto norte-semítico pelos fenícios, por volta de 1100 a.C., que levou a uma versão posteriormente adotada pelos gregos e, por intermédio deles, por todos os povos da Europa. O alfabeto fenício tinha apenas consoantes e compreendia 22 letras. Foram os gregos que acrescentaram cinco sinais para representar as vogais e deram para os europeus, e as pessoas que falavam línguas de origem europeia, os alfabetos em uso atualmente.

A invenção do alfabeto foi um marco. As escritas cuneiforme, hieroglífica e pictográfica chinesa foram cruciais para o desenvolvimento de suas respectivas civilizações. Mas todos esses antigos sistemas de escrita envolviam um longo aprendizado, que só podia estar ao alcance de uma pequena elite ociosa. A escrita alfabética ofereceu a perspectiva de aprendizado para um número de pessoas muito maior, e o papel que ela desempenharia mais tarde, possibilitando a impressão de livros baratos com o tipo móvel, a situa firmemente nesse supertime de invenções que incluem os veículos com rodas, a máquina a vapor e o computador.

O grande volume de material escrito que herdamos das civilizações da Idade do Bronze no Mediterrâneo e no Crescente Fértil desempenhou um marco na escrita da História. [...]

AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 71-78.

domingo, 22 de abril de 2012

O drama étnico: os mestiços na América colonial hispânica

Mais que uma categoria racial, o mestiço na colônia é uma categoria social. Geralmente homem livre, não goza dos privilégios e oportunidades dos brancos, e não está sujeito às violências que sofrem índios e negros. Num sentido estrito, é um mestiço o filho de espanhol com índia [...]; mulato é o filho de espanhol com negra; zambo, o descendente de negro e índia, e assim até englobar uma enorme quantidade de cruzamentos raciais, para cada uma das quais a sociedade colonial tem uma denominação específica. [...]

Construção do palácio de Cortés (detalhe), Diego Rivera

A situação de mestiço contém uma espécie de ambiguidade psicológica: o temor de ser confundido com seu progenitor índio ou negro e a aspiração a superar os obstáculos que lhe dificultaram a ascensão social acabam criando uma competição no seu ser, vivem nele contraditoriamente, o dilaceram. Em várias ocasiões seus meio-irmãos brancos (de pai ou de mãe), e sua condição de bastardo contribuem muito para aumentar sua frustração, para sentir-se violentamente preterido, injustamente inferiorizado pela cor da pele que ele mesmo abomina. Geralmente a conduta do mestiço exterioriza o drama que a sociedade o faz viver. Tende a imitar os que estão no alto da pirâmide social, a colocar-se  em postura serviçal diante deles e a bajulá-los, sem abandonar o profundo desprezo que tem em relação aos que o empurram para baixo. Para diferenciar-se dos que estão no nível mais inferior, se aplica na sua condição de homem livre, em sua identidade humana superior. Premido entre os dois extremos, pisa nas cabeças dos que estão abaixo de si para ascender à escala social superior, estende as mãos para aferrar-se à cauda dos fraques dos que estão acima. Não é pouca sua contribuição aos sofrimentos dos índios, que legalmente não são considerados escravos.

Ainda que a legislação permita o casamento entre raças diferentes, a união de um branco com uma mulher de cor é tida como desonrosa. A lei e os valores socialmente aceitos pelos dominadores não se combinam, pelo menos nesse caso. [...]

Os espanhóis aceitam viver em concubinato com índias e negras. Essa convivência sem laços legais tem fortes antecedentes na Espanha medieval onde é conhecida como barragania [a concubina vivia na casa do amancebado]. Nos fins da Idade Média a legislação regula essa união [...]. Se bem que os Reis Católicos exigem que todos os casamentos sejam celebrados pela Igreja, os primeiros a não cumprir esse mandato são os próprios sacerdotes, obviamente impedidos de casar-se, mas não de ter concubinas quase abertamente. Na América colonial, sacerdotes e laicos exercem, ativamente, uma poligamia sucessiva ou simultânea, ou ambas ao mesmo tempo. A maioria dos mestiços nasce de relações sexuais extramatrimoniais. [...]

A mulher mestiça tende a unir-se ao branco, desprezando seus semelhantes e ainda muito mais aqueles que estão nos limites inferiores da escala social. O filho que não foi legitimado pelo pai branco tem o caminho para o matrimônio com uma mulher branca praticamente fechado. Deve unir-se a uma mulher de sua condição [...] ou de uma condição inferior, o que para ele significa degradação social.

Um espanhol não se casa com uma negra. Mas também o número de mulatos cresce consideravelmente, o que demonstra que engravidar negras, longe de ser uma desonra, é prazer e satisfação.

Nos fins do período colonial, a mestiçagem enquanto condição social se acentua. Serão mestiços os índios que aprenderam a ler e escrever, adotaram as roupas e hábitos europeus, os padrões de convivência e os costumes. Em troca será considerado índio o mestiço que assimilou os costumes e modos de vida indígenas. Na época, no México, na América Central e nas Antilhas quase 24% dos habitantes são mestiços; na América do Sul, um pouco mais de 30%. [...]

[...]

No século XVIII, o mestiço peruano - chamado cholo - forma a maior parte da população urbana. Faz as vezes de soldado, sacerdote, artesão. Impedido de trabalhar nos serviços administrativos mais importantes, é encontrado, frequentemente, nos postos mais baixos, ruminando seus rancores e sua raiva diante do rigoroso enquadramento que a sociedade lhe impõe. Na Venezuela chega a ser o grupo mais numeroso e é encontrado nos arredores das cidades, em ofícios pouco apreciados. Sem obrigação de pagar tributos, livre para deslocar-se e viver onde melhor possa, não lhe é difícil perceber o quão são ilusórios sua liberdade e seus privilégios em relação aos índios. [...]

POMER, León. História da América Hispano-indígena. São Paulo: Global, 1983. p. 129-131.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

O que devemos à Idade Média?

O cardeal Ugo de Provença, com os óculos bem apertados no nariz, em afresco de 1352.

O que devemos à Idade Média? Tento enumerar alguns itens: os óculos, o papel, a filigrana, o livro, a prensa com caracteres móveis, a universidade, os algarismos arábicos, o zero, a data de nascimento de Cristo, bancos, notários e montepios, a árvore genealógica, a escala e os nomes das notas musicais.

Mulheres jogando xadrez. Iluminura medieval.

A Idade Média nos dá os botões, as cuecas e as calças; nos diverte com o baralho, o tarô, o xadrez e o Carnaval; nos adormece a dor com a anestesia; nos ilude com os amuletos - e o coral, que protege as crianças e nos defende dos raios, ajuda também a desfiar o rosário. Para a casa, trouxe o gato, os vidros nas janelas e a chaminé; nos fez sentar à mesa (os romanos comiam recostados) e comer com garfo a tão amada massa, mais precisamente o macarrão e o cabelinho-de-anjo, cuja farinha era incansavelmente triturada em moinhos de água e de vento. Soube explorar a força da água para movimentar lagares e serrarias, pisões para tecidos, moinhos para papel e para farinha. Descobriu uma outra força motriz extraordinária: o cavalo, que dotou de ferraduras, estribo e coelheira rígida, para que o animal pudesse puxar sem sufocar com o peso. Aliviou a lida humana com o carrinho de mão, e tornou mais seguro o caminho dos navegantes com a bússola e o timão. Nas batalhas, tremulavam as bandeiras com insígnias coloridas e soava o estrondo da pólvora disparada por fuzis e canhões. Mudou a nossa percepção do tempo nessa terra, com o relógio a escapamento e a introdução das horas de igual duração e independentes das estações; mudou nossa percepção do tempo também no além, fazendo emergir um terceiro reino, o Purgatório, que rompia com os destinos imutáveis da eternidade. Por fim, com o Papai Noel, fez sonharem as crianças.

FRUGONI, Chiara. Invenções da Idade Média: óculos, livros, bancos, botões e outras inovações geniais. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 7-8.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Engenhos coloniais

O plantio e o trato da cana-de-açúcar significavam a possibilidade de participar ativamente na estrutura de poder colonial. Como era, porém, a vida social dos primeiros senhores de engenho? De que era feito o seu cotidiano e que tipo de problemas enfrentavam? Se aceitarmos a opinião dos letrados da época, podemos afirmar que, apesar da aparência contrária, mesmo os fazendeiros ricos alimentavam-se mal, comendo dura carne de vaca. Só uma vez ou outra, degustavam frutos. Mais raramente ainda, os legumes. A falta de boa comida era compensada pelos excessos de doces: goiabadas, marmeladas, doces de caju e mel de engenho, alfenins e cocadas. Quando da passagem de um padre, abriam-se, com esforço, as despensas e matavam-se os animais de criação: patos, leitões e cabritos. Em Pernambuco, conta-nos um cronista, "escravos pescadores" eram, nestas ocasiões, encarregados de buscar "todo gênero de pescado e marisco". A abundância registrada em alguns engenhos não era a norma. Os que se davam ao luxo de mandar vir alimentos do Reino consumiam víveres malconservados. O senhor de engenho sofria doenças do estômago, atribuídas, por doutores da época, não à precária alimentação, mas aos "maus ares" do trópico. A saúva, as enchentes ou a seca dificultavam ainda mais o suprimento de víveres frescos. A sífilis marcava-lhes o corpo, deixando-o vincado com suas chagas.


Mapa de Pernambuco, Willem J. Blaeu. O mapa destaca o engenho: casa de caldeira, moendas e casa grande.

A maior parte dos engenhos aninhava-se na mata, não muito distante dos centros portuários, o que se explica pela maior fertilidade dos terrenos bem-vestidos de capa verde e pela abundância de lenha, necessária às fornalhas famintas, alimentadas num labor que, às vezes, durava dia e noite, oito e nove meses. E eles não deviam afastar-se muito do litoral, sob pena de, sendo um só o preço dos gêneros de exportação, não poderem competir com os fazendeiros mais próximos do mercado, cujo produto não se amesquinhava com as despesas de transporte. [...]

No interior das verdadeiras fortalezas de adobe e taipa, que eram as casas grandes, vigiam a simplicidade e até o desconforto. O mobiliário era pobre e escasso: catres, baús, arcazes e cabides. Todas peças toscas feitas pelo carapina do engenho. Alguns preferiam a doçura das redes, solução refrescante nas noites quentes. Varandas entaladas no meio da fachada principal e pequenos alpendres davam ao senhor de engenho a vista sobre sua terra, cana e gente. [...] Não faltavam, contudo, observadores da época, capazes de entusiasmar-se com a imponência do conjunto: "engenho de água muito adornado de edifícios", "engenho com grandes edifícios e uma igreja" [...]. À rígidez da casa opunha-se, em dias de festa, o exagero das vestimentas: "vestem-se, e as mulheres e os filhos de toda sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisso tem muito excesso [...] os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos" [...]. Os casamentos festejavam-se [...] com banquetes, touradas, jogos de canas e argolinhas, e vinho de Portugal. Muitos batizavam seus engenhos com o nome de santos protetores [...]. Outros tinham nomes africanos [...]. Outros ainda lhes davam nomes de frutas e árvores [...].

No centro de sua família, o senhor de engenho devia irradiar autoridade, respeito e ação. Sob seu comando dobravam-se filhos, parentes pobres, irmãos, bastardos, afilhados, agregados e escravos. Uma esposa, às vezes bem mais jovem, movia-se em sua sombra. Ela vivia para gerar filhos, desenvolvendo, entretanto, uma atividade doméstica - costura, doçaria, bordados - alternada com práticas de devoção piedosa. Na sua ausência, contudo, assumia as responsabilidades de trabalho com vigor igual ao do marido. Sua família era a formulação exterior de uma sociedade, mas não o domínio do prazer sexual. A possibilidade de se servirem de escravas criou no mundo dos senhores uma divisão racial do sexo. A esposa branca era a dona-de-casa, a mãe dos filhos. A indígena, e depois a negra e a mulata, o território do prazer.


Uma senhora brasileira em seu lar, J. B. Debret

Disputas pelo acesso à terra também marcaram a ocupação das terras açucareiras, e não faltavam os que "se infiltravam manhosa e furtivamente" - no entender de um observador, em 1635 - em terras virgens, na esperança de enriquecer graças à instalação de engenhos. O engenho de açúcar correspondia a uma estrutura extremamente complexa. Estrutura, diga-se, que se expandiu no Nordeste do Brasil, na sua forma clássica, associada às grandes plantações e ao trabalho escravo, nos séculos XVI e XVII, aproximadamente. [...]

A empresa do açúcar não envolvia apenas senhores e escravos. Ela abrigava um grupo diversificado de trabalhadores especializados e agregados, que orbitavam em suas franjas, prestando, ao senhor de terras, seus serviços. Eram mestres-de-açúcar, purgadores, caixeiros, calafates, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, barqueiros, entre outros. A eles juntavam-se outros grupos a animar a vida econômica e social das áreas litorâneas: mercadores, roceiros, artesãos, lavradores de roças de subsistência e de cana e, até mesmo, desocupados compunham uma complexa fragmentação de pequenos ou grandes proprietários. [...]

No que exatamente consistiam os engenhos? Em algo mais do que as gigantescas rodas, movidas a água ou a tração animal, com que são representados nas gravuras dos viajantes. [...] A colheita se fazia rudimentarmente, com facão e foice. [...] A força da moenda determinava a produtividade na extração do caldo. Para fazê-la girar, água, bois e cavalos revezavam-se na preferência dos senhores de engenho. Herdada dos mouros, as rodas d'água chegavam ao Brasil pela mão de habilidosos artesãos. [...] 

O cozimento do caldo extraído na moenda era realizado em tachos de cobre, cada qual pousado sobre um fogo de lenha. O calor no interior das casas de caldeira era vulcânico. Por isso, escolhiam-se para essa tarefa escravos fortes e robustos: eram os caldereiros e tacheiros. [...] Muito valorizado era o "mestre-de-açúcar", cujo mister era "dar ponto às meladuras" ou "achar o pulso aos açúcares". [...] Muitos deles foram levados para as Antilhas, por holandeses, franceses e ingleses, quando esses instalaram ali seus engenhos. A purga ou purificação consistia em acondicionar o caldo cozido em fôrmas cônicas de barro com um furo através do qual o melado escorria durante alguns dias. [...] No interior desses pães - nome dado às fôrmas -, o açúcar se depositava de acordo com o valor comercial. Na parte superior, o branco, mais caro e fino; na inferior, o mascavo. Para a fabricação de pães de açúcar, havia olarias nos engenhos. Depois de secos, os diferentes tipos de açúcares eram embalados para comercialização. Levados em caixas por transporte fluvial ou no lombo de animais e carros de boi, chegavam até os portos de embarque. Muitos engenhos possuíam ainda destilarias, para a produção de aguardente utilizada no escambo de escravos; e bangüês, para a fabricação de rapadura. Seguiam-se oficinas, estrebarias e armazéns.


Carro de bois, Frans Post

Quem plantava, colhia, botava a cana para moer, acondicionava e transportava o açúcar até o mar? O escravo: primeiramente o indígena e depois o africano. [...] A importação de africanos cobria a lacuna decorrente da falta de mão-de-obra, uma vez que epidemias e a mortalidade ligada ao trabalho forçado e ao rompimento com estruturas tradicionais de vida social, associadas à fuga de tribos inteiras para o interior, acabaram por inviabilizar o trabalho cativo dos índios. [...] Se por um lado, a escravidão indígena durou até o século XVIII no planalto paulistano absorvido pela produção de trigo, por outro lado, a percentagem de escravos índios envolvidos na produção do açúcar foi baixando à medida que os senhores enriqueciam e podiam importar africanos. Isso começou a acontecer, principalmente na Bahia e em Pernambuco, a partir da segunda metade do século XVI.


Carregadores de caixas de açúcar, J. B. Debret

Nas áreas rurais, as plantações drenavam escravos, sem cessar. Submetidos a senhores e administradores, os cativos tinham que se integrar à divisão de trabalho bastante sofisticada. Na lista do engenho baiano, Freguesia, os encontramos exercendo as funções de oficiais da casa de caldeira, purgadores, no serviço de enxada, como trabalhadores da casa de caldeira, do serviço de moenda ou da horta, como carreiros, carapinas, pedreiros, arrais de saveiros, costureiras, bordadeiras, lavadeiras, entre outros. Tratá-los como "objeto" era natural, regra, aliás, seguida pela Igreja Católica, que os possuía às centenas em seus conventos e propriedades. O castigo físico exagerado era, contudo, condenado. [...] Mais eficiente seria dar "algumas varadas com cipó às costas". Rações de farinha de mandioca ou milho, coquinhos chamados "aquês", feijões, arroz e hortaliças compunham o cardápio alimentar dos moradores do engenho e, por extensão, em maior ou menor quantidades, o dos escravos também. Carne de vaca ou de galinha era excepcionalmente servida aos doentes. Por outro lado, a aguardente, consumida como fonte de calorias, causava grandes problemas de saúde. Junto à cachaça, a maconha, trazida clandestinamente nos navios do tráfico, era utilizada para aliviar os sofrimentos do cativeiro. As roupas, por sua vez, eram raras. [...] A Igreja admoestava os senhores para que evitassem trazê-los "indecentemente vestidos" [...]. As mulheres vestiam saia e blusa feitas com panos de Surrate ou baeta, e os homens usavam apenas calças, permanecendo o torso nu.

Escravos distinguiam-se em "boçais" - como eram chamados os recém-chegados da África - e "ladinos", os africanos já aculturados e entendendo o português. Ambos os grupos de estrangeiros opunham-se aos "crioulos", ou seja, aqueles nascidos no Brasil. Havia distinções entre as nações africanas, e, dada a miscigenação, a cor mais clara da pele era também fator de diferenciação. Aos crioulos e mulatos reservavam-se as tarefas domésticas, artesanais e de supervisão. Aos africanos reservava-se o trabalho mais árduo. [...]

DEL PRIORE, Mary; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 57-63.