"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Cristo na casa de seus pais

Cristo na casa de seus pais, 1849-1850. John Everett Millais


Esta tela, também chamada A oficina do carpinteiro, descreve José, Maria, Jesus, Sant'Ana e seu filho, mais tarde conhecido como João Batista, e ainda um segundo homem anônimo, presumivelmente um aprendiz de José. Esta cena simples se passa na carpintaria de José e é repleta de imagens religiosas que prenunciam a crucificação de Cristo. Jesus se cortou num prego preso à bancada de madeira e mostra a palma da mão para ser examinada. Maria, ajoelhada à sua frente, ergue o rosto para ser beijada; ela tem uma expressão de tristeza, como que pressentindo o que está por vir. José estende os braços para examinar a ferida e Sant'Ana se prepara para remover o prego. João traz uma cuia de água para limpar o sangue. Criticado como blasfemo na época de sua primeira aparição pública, este quadro veio a ser reconhecido como uma das maiores pinturas de Millais e uma obra-prima do pré-rafaelismo então nascente.

Lucinda Hawksley. Cristo na casa de seus pais. In: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 296-297.

domingo, 29 de janeiro de 2012

As Reformas Religiosas do século XVI

"Quem quer que compre uma coisa, não para que possa vendê-la inteira e não transformada, mas para que sirva de material a moldar em algum objeto, esse não é um comerciante. Mas o homem que compra a coisa a fim de ganhar, revendendo-a inalterada, sem transformá-la, esse está entre os compradores e vendedores expulsos do templo de Deus!"

"Aquele que tem o bastante para satisfazer suas necessidades e não obstante trabalha sem cessar para adquirir riquezas, seja com o fim de obter uma posição social mais alta, seja para subsequentemente poder viver sem trabalhar, seja para que os filhos venham a ser homens de riqueza e importância - em todos esses casos é impelido por condenável avareza, sensualidade ou orgulho".


O massacre da noite de São Bartolomeu, François Dubois. As guerras de religião na França alcançaram no massacre de São Bartolomeu (24 de agosto de 1572) um de seus momentos mais violentos. Nessa ocasião, centenas de protestantes foram mortos.

Como se sentiriam os comerciantes europeus ao ouvir as ideias dos pensadores cristãos medievais? Como se sentiria você caso vivesse do comércio e se esforçasse por acumular cada vez mais riquezas, como faziam os burgueses da Europa moderna?

O entusiasmo pelas atividades mercantis, a busca do enriquecimento e o gosto pelo luxo - típicos dos grupos sociais em ascensão no século XVI, pareciam não se ajustar perfeitamente aos preceitos da religião cristã, ainda bastante ligada à ordem feudal. A Igreja insistia em condenar a usura e a subversão dos valores, que relegava a segundo plano a vida espiritual, em beneficio das preocupações materiais. E, no fundo, a Igreja condenava os próprios grupos comerciantes.

Todavia, as novas formas de vida, as atividades econômicas em expansão, estavam exigindo uma mudança de conceitos, sobretudo porque a religiosidade era ainda muito difundida. Seria necessário uma nova Igreja?

Muitos humanistas faziam severas críticas à Igreja, aos abusos praticados pelo clero, ao luxo da Corte papal. Eles desejavam uma religião mais simples, mais humana, rejeitando a ignorância do clero e seus desregramentos. A expressão desses anseios está em Erasmo, em cujo pensamento a crítica dos textos sagrados, a restauração da pureza da fé primitiva, a reforma da Igreja conciliavam-se com o respeito à unidade do cristianismo.

Mas não apenas os elementos ligados às atividades mercantis e os humanistas mostravam-se descontentes com a Igreja, no início dos Tempos Modernos.

Os governantes dos Estados modernos achavam que o poder do Papado, sendo universal, entrava em conflito, enfraquecendo, os novos Estados "nacionais". Os monarcas absolutistas queriam colocar a Igreja também sob seu controle, transformando-a num dos pilares da monarquia de direito divino.

Os príncipes desejavam também o direito de nomear os membros para os cargos eclesiásticos: bispos, arcebispos, abades, priores e outros. Isto porque nestes postos do alto clero estavam compreendidos os deveres sacerdotais ou disciplinares e também os rendimentos dos benefícios eclesiásticos. Se isso fosse conseguido, os monarcas não só impediriam a saída de recursos de seus reinos, como também poderiam ampliar seu domínio sobre a nobreza, sequiosa de obter para seus membros tais rendimentos.

Por essa mesma época, eram comuns os ataques aos "vícios da Igreja". Criticava-se o mau comportamento de muitos eclesiásticos, o acúmulo de benefícios por uma só pessoa, o envolvimento dos sucessivos papas em lutas e conflitos com os príncipes e nobres, os excessivos impostos cobrados por Roma, inclusive a venda das indulgências.

Muitos criticavam também o tráfico das coisas santas - a "simonia", e a exploração das "relíquias" dos santos e do próprio Cristo.

E havia ainda aqueles que defendiam a necessidade de uma reforma do dogma, pois as superstições cresciam, a miséria, o pecado, o medo do inferno estavam por toda parte. A duração relativamente breve da vida humana, a constância das guerras e da fome privilegiavam as danças macabras, os sermões cheios de "fogo do inferno". Confundiam-se a vida e a morte. As doutrinas dos elementos eclesiásticos não mais satisfaziam à burguesia e aos funcionários, assim como não eram compreendidas pela maior parte da população. Seria necessária uma nova religião?

A resposta a tantas questões e dúvidas parecia vir da Alemanha, onde os anseios reformistas mais ou menos difusos ganharam força e se transformaram no primeiro grande movimento de reforma religiosa.

Por que teria a reforma religiosa começado na Alemanha?

No início do século XVI, a Alemanha era constituída por centenas de principados dos mais diferentes tamanhos, além de dezenas de cidades-livres onde predominava a burguesia. Havia ali uma pequena nobreza empobrecida e descontente, ao lado de uma grande nobreza ambiciosa, disposta a apoderar-se dos inúmeros benefícios eclesiásticos existentes. Nos Estados mais poderosos, os príncipes empreendiam a unificação, tentando transformar seus domínios em verdadeiros "estados modernos".

Nessa Alemanha fragmentada, a Igreja era, ao mesmo tempo, o principal alvo e o maior adversário. Por quê? Ela era o principal alvo das ambições dos nobres sobre os benefícios eclesiásticos. Ela era também o maior adversário devido à ingerência política e fiscal dos papas nos assuntos alemães, além de muitos acreditarem ainda que a região era frequentemente "saqueada" em proveito de Roma.

Foi nesse ambiente que surgiu o monge agostiniano Martinho Lutero. Torturado pelo problema de como assegurar sua própria salvação, ele encontraria uma resposta na ideia de que o homem só se justifica pela fé, pois, sendo pecador por natureza, suas obras nada representam e só a fé em Deus pode salvá-lo.

Se somente a fé pode salvar, de que serviam as indulgências que o dominicano Tetzel pregava  na Alemanha, em 1517?

Ao fixar, na porta do Castelo de Wittenberg, as suas 95 teses condenando as indulgências, Lutero dava início à Reforma.

Sem querer chefiar uma revolução, Lutero viu-se forçado a liderar uma nova religião, contando com o apoio de uma parte da nobreza e de quase toda a burguesia. Após ser excomungado, em 1520, prega suas primeiras teses reformistas: o livre-exame e o sacerdócio universal, a nulidade do primado pontifical.

A Reforma se alastrou rapidamente.

Em 1522, sob a chefia de Ulrich von Hutten, revoltaram-se os "cavaleiros" da pequena nobreza. Pouco tempo depois, exasperados pelo agravamento das exigências senhoriais, os camponeses alemães se revoltaram, acreditando na chegada de uma nova era de justiça e igualdade. Em outros pontos da Alemanha, ocorria a pregação dos "profetas celestiais", seguidores de Lutero que defendiam proposições muito além de seu próprio "mestre".

Lutero condenou as revoltas contra a autoridade, ao mesmo tempo em que apoiava a repressão desencadeada pelos grandes nobres e pelos burgueses contra os movimentos que haviam eclodido. Sentindo a necessidade de refrear o ímpeto reformista, Lutero estabeleceu uma Igreja com o apoio dos príncipes, que passavam a ser chefes políticos e religiosos - é o cesaropapismo, apropriando-se dos bens eclesiásticos.

Embora a partir da denominada Confissão de Augsburgo o luteranismo tenha se tornado um credo bem definido, as lutas entre os príncipes católicos e protestantes não diminuíram, transformando-se numa verdadeira "guerra de religião" que o imperador Carlos V não conseguia controlar. Somente a Paz de Augsburgo, concluída em 1555, veio reconhecer o direito de liberdade religiosa para os príncipes e para as cidades, dividindo-se a Alemanha em dois campos.

Em que outras regiões da Europa ocorreram movimentos contra a autoridade papal?

Na Suíça, em cujas cidades vivia uma burguesia numerosa e soberana, diversos pregadores reformistas haviam surgido, embora nem sempre ligados ao luteranismo. O mesmo ocorria no Vale do Reno, em suas cidades mais importantes. Um lugar importante era Zurique, onde havia algum tempo Ulrico Zwinglio vinha pregando ideias bem mais radicais do que Lutero, como a supressão do dogma da presença real de Cristo na Eucaristia, e propondo uma organização democrática para a Igreja.

O mais importante dos reformadores foi João Calvino, que após instalar-se em Genebra - a "Roma calvinista" -, estabelece o Consistório de pastores, o órgão que controla as instituições municipais, zela pelos costumes e assegura a vida religiosa.

Acreditando também que o homem é essencialmente mau e pecador, Calvino apenas exige que ele aceite a sabedoria do Cristo, obedecendo-o servindo-o.

Os únicos sacramentos são o batismo e a eucaristia, mas nesta a presença do Cristo não é real, e sim puramente espiritual. A predestinação é um fato, pois desde a eternidade Deus, por sua exclusiva e insondável vontade, destinou uns à salvação e outros à danação eterna. O homem nada pode por si mesmo.

Ao contrário do luteranismo, o calvinismo voltou-se com interesse para a sociedade de sua época e seus problemas. O luteranismo estava muito mais voltado para a vida religiosa, e comprometido com um ideal de restauração mais do que de renovação, sendo assim um instrumento de consolidação do poder dos grupos e classes dominantes. O calvinismo, ao contrário, dignificou todas as formas de trabalho, mesmo manual, em nome da vontade de Deus.

Dizia Calvino que o trabalho "torna o corpo são e forte e cura as doenças produzidas pela ociosidade. [...] Entre as coisas desta vida, o trabalho é o que mais assemelha o homem a Deus."

E perguntava: "Que razão haverá para que a renda do negócio não seja maior do que a da propriedade da terra? De onde vêm os lucros do comerciante, senão de sua própria diligência e indústria?"

Para quem estaria Calvino falando? Que tipo de homem mais se assemelha a Deus, segundo o Calvinismo?

Embora pessoalmente fosse Calvino bem conservador e rigoroso, seus continuadores foram absorvendo no corpo doutrinal do calvinismo os princípios da sociedade capitalista.

[...]

A expansão da "religião verdadeiramente reformada", como então se dizia, fez-se com rapidez e por amplas áreas geográficas.

Na França, nobres, burgueses, artesãos, camponeses, sobretudo nas regiões distantes de Paris, aderiram e logo formaram uma igreja e um partido huguenote, nome pelo qual ficou conhecido o calvinismo na França. Na Escócia, sob a liderança de João Knox, a Confissão Escocesa fundou a Igreja reformada, adotando uma constituição presbiteriana - isto é, o governo pelos mais velhos ou presbíteros, e Maria Stuart foi obrigada a aceitá-la como religião de Estado. Nos Países Baixos, a difusão do calvinismo foi extremamente rápida, convertendo-se Antuérpia no principal centro de propagação. Quando as tropas do Duque de Alba, a mando de Felipe II de Espanha, invadiram a região, querendo submeter os revoltosos, ocorreu a migração de grande parte da burguesia da parte sul para as províncias do norte. Na Boêmia e na Hungria, a nobreza aderiu ao calvinismo como forma de afirmação nacional, antigermânica.

E na Inglaterra, como ocorreu a Reforma?

Ali, ela aparece como um intrincado problema pessoal  e financeiro, ao lado de antecedentes medievais como a heresia de Wycliff.

O humanismo alcançara importância na Inglaterra através sobretudo das figuras de Tomás Morus - autor de Utopia - e do próprio rei Henrique VIII, humanista convicto, embora inimigo da heresia luterana, o que lhe valeu o título de Defensor da Fé, dado pelo Papa Leão X.

No momento em que o Papa Clemente VII recusou-se a anular o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão, o soberano inglês declarou-se chefe da Igreja inglesa pelo Parlamento. A votação do Ato de Supremacia pelo Parlamento, em 1534, cortava os últimos vínculos com Roma.

Senhor da Igreja Anglicana, e de todos os seus bens, Henrique VIII podia resolver os graves problemas financeiros que a monarquia enfrentava.

De uma maneira geral, a reforma na Inglaterra não modificou o dogma católico, já que não resultara de problemas filosóficos ou teológicos. O "Ato dos Seis Artigos" fixou a nova situação em termos de fé, reafirmando a autoridade do soberano. Assim, vão para a fogueira os protestantes, acusados de heresia, e para o cadafalso os católicos, por crime de lesa-majestade.

A reforma anglicana, que passaria por etapas distintas sob os reinados de Eduardo VI, da católica Maria I e de Elizabeth I, assumiria um aspecto mais definido pelo "Bill dos Trinta e Nove Artigos", em 1563. Ele definia a Igreja anglicana como um compromisso vago entre o catolicismo e o calvinismo, embora tivesse uma concepção luterana das relações entre a Igreja e o Estado.

Era justamente esse caráter vago da reforma que descontentava a muitos reformistas. Eles desejavam "purificar" a Igreja anglicana, que diziam estar cheia de elementos "papistas". Esses indivíduos eram chamados de "não-conformistas", e se tornaram cada vez mais influentes. Eram os calvinistas ingleses, também conhecidos com "puritanos".

Na França, o século XVI foi caracterizado pelas violentas lutas entre católicos e huguenotes - as guerras de religião. No fundo, os conflitos religiosos expressavam a oposição dos setores aristocráticos adeptos do calvinismo, ao poder absoluto dos soberanos, como também traduziam a insatisfação da pequena burguesia artesanal com a política econômica e fiscal da monarquia.

Somente sob o reinado de Henrique IV a paz foi alcançada.

"Paris vale uma missa", teria dito este nobre huguenote que, para consolidar seu poder, converte-se ao catolicismo, concedendo logo depois liberdades e garantias aos seus ex-correligionários, pelo Edito de Nantes.

Como teria reagido a Igreja à Reforma protestante?

A primeira reação foi quase espontânea, com as iniciativas individuais que tinham como objetivo produzir uma renovação da vida espiritual e mistica nos conventos já existentes, como os Carmelitas na Espanha e os Capuchinhos (Franciscanos) na Itália. Ao mesmo tempo, surgiram novas congregações , das quais a mais importante foi a Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola, em 1534. Para os jesuítas - que trabalhavam "para a maior glória de Deus" - o importante não era apenas combater os protestantes, mas fortalecer a fé entre os católicos contra as heresias.

Seguiu-se à essa reação quase espontânea, a atitude do Papado. Ela foi, de início, essencialmente negativa e preventiva: foi criado o "Índex" de livros proibidos e estabeleceu-se o Tribunal do Santo Ofício.

O momento mais importante da Reforma Católica, porém, ocorreu com a realização do Concílio de Trento, no qual os princípios do dogma católico foram reafirmados.


Concílio de Trento, Pasquale Cati

Qual a importância das Reformas na História da Europa moderna?

A Reforma protestante marcou uma ruptura irreversível na unidade cristã advinda da Idade Média, Num primeiro momento tal fato significou um aumento da intolerância, que se traduziu nas sucessivas guerras de religião.

Mas teriam sido todas as guerras realmente por motivos religiosos?

O fato, porém, dos príncipes terem ampliado seus poderes com as Reformas teve, num prazo mais longo de tempo, efeitos positivos. Ao final do século XVI já apareciam os adeptos da ideia de que deveriam ser separados os interesses do Estado daquele da Igreja, separando-se a fé da política. Ao mesmo tempo, partindo de uma reivindicação básica - a da liberdade de consciência - as seitas protestantes criaram as condições morais e intelectuais para o advento da tolerância. Foi o que se viu já no século XVII, primeiro nas Províncias Unidas, e depois na Inglaterra.

A tolerância traduziu um recuo da importância até então absoluta atribuída às divergências de fé. Sem dúvida, na península Ibérica e, embora menos, na Itália, a perseguição inquisitorial continuou violenta até meados do século XVIII. Mas isso era alguma coisa que já se ia tornando um exemplo de "atraso" e "bárbara superstição" aos olhos dos países mais "civilizados" da Europa. Mas o desenvolvimento da tolerância não resultou apenas da crítica dos filósofos. Sua raiz mais profunda estava na própria transformação da sociedade, na ascensão da burguesia, no surgimento do capitalismo. Novas preocupações, outros interesses, uma visão do mundo completamente distinta, relegavam ao plano estritamente pessoal a questão das crenças religiosas. Aprendia-se a conviver com a diversidade de opiniões. A força, o terror, o medo, deixaram de ser argumentos. Apagaram-se as fogueiras, caiu no ridículo a proibição de ler determinados livros, e por toda parte ergueu-se dominadora a razão como único juiz.

Racionalismo, humanismo e secularização triunfando no Século das Luzes, relegaram para um passado de trevas e de ignorância a própria lembrança de que se havia um dia pensado poder submeter o pensamento de todos os homens a um mesmo molde, impedindo-os de exercer livremente a faculdade que os distingue de todos s demais seres vivos: a faculdade de pensar.

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 112, 114, 116, 118, 120, 122, 124, 126, 128, 130, 132.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Villa dei Misteri

Afresco,  c. 60 a.C. - 50 a.C. Pompéia, Itália. Artista desconhecido.

Esta magnífica cena faz parte de um conjunto de afrescos  incrivelmente bem preservados, que foram descobertos perto de Pompéia, na Itália, nas ruínas de uma luxuosa villa romana - a Villa dei Misteri -, que sofreu apenas pequenos danos durante a erupção do monte Vesúvio, em 79 d.C. O afresco está localizado na parte da frente da villa, no cômodo mais importante, o triclinium, ou sala de jantar. Entre suas cores estão o azul e o verde, e o uso desses pigmentos caros indica que o proprietário da villa não economizou nos materiais.

O afresco faz parte de uma série de quadros que retratam os "mistérios" de um ritual de iniciação exclusivamente feminino - provavelmente o ingresso como mulher na sociedade -, no qual a novata tinha de passar por uma morte e um renascimento simbólicos. O ritual se centra em Dionísio, o deus grego do vinho, da agricultura e do êxtase, e uma sacerdotisa está presente para guiar a jovem durante todo o ritual de iniciação.

Os personagens estão dispostos em pé ou sentados em diferentes tipos de mobília sobre uma estreita borda pintada de verde que as sustenta e que ajuda a dar a aparência de um palco. A utilização da borda mostra que o afresco pertence ao segundo estilo romano, no qual características arquitetônicas são mostradas a fim de dar um aspecto tridimensional à imagem. Os personagens em tamanho natural são criados num estilo megalográfico, isto é, são aumentados para parecerem maiores do que os humanos. Ao colocar as imagens diante de uma parede vermelha e em meio a colunas pintadas, os artistas fizeram com que elas parecessem habitar o mesmo ambiente que o espectador.

Bryan Doubt. Villa dei Misteri. In: FARTHING, Stephen. (org.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 64-65.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Os reinos do Sudão ocidental: Mali, Gana, Songai

Antes de os europeus tomarem conhecimento da África subsaariana, ou África negra, como também se diz, existiram nela algumas sociedades que merecem ser lembradas.

As principais se localizavam na região que chamamos de delta interior do rio Níger. [...] ali o sal do deserto era trocado pelo ouro que vinha do sul, ambas mercadorias muito valiosas. Os azenegues e tuaregues armavam seus acampamentos nas áreas mais férteis próximas aos rios; deixavam seus animais descansar e armazenar novas energias; teciam seus vínculos com os povos que moravam naquelas paragens e comerciavam. Eram os intermediários entre o Mediterrâneo e o Sael. Em torno de seus acampamentos temporários formaram-se cidades, e algumas, como Tombuctu, têm hoje mais de mil anos de existência.

As cidades ficavam em lugares onde as trocas se concentravam. Agricultores e pastores se instalavam perto desses mercados e abasteciam de alimentos os grupos nômades e comerciantes. Estes traziam produtos de outros lugares: do norte vinham sal, tecidos, contas, utensílios e armas de metal. Do sul vinham ouro, noz-de-cola, marfim, peles, resinas, corantes, essências, que eram levados para o norte pelos comerciantes fulas, mandingas e hauçás. Estes eram guiados por tuaregues e outros povos do deserto que se islamizaram a partir da expansão árabe do século VII e difundiram o islã em todo o Sudão.

A cidade, ao abrigar uma população dedicada a atividades diversas e com interesses variados, precisou de sistemas de governo mais complexos. Na maior parte das vezes havia centralização do poder em torno de um líder e seu corpo de auxiliares. Muito do sucesso de uma cidade ou de um reino podia estar ligado à ação de determinado governante, que expandia limites, acumulava riquezas e ampliava a sua influência sobre povos vizinhos.

O primeiro império da África subsaariana sobre o qual se tem notícias mais precisas é o Mali. Nele, Tombuctu, Jené e Gaô foram importantes cidades, centros de troca e concentração de pessoas, graças à rede de rios que fertilizava as terras e facilitava o transporte na região da curva do Níger. Vestígios arqueológicos apontam que desde cerca dos anos 800 da nossa era havia ali cidades e formas de comércio.

A grande mesquita de Jené, no atual Mali, exemplo da arquitetura sudanesa

Antes do Mali, Gana, ao norte do rio Senegal, foi um reino poderoso, no qual se davam os negócios entre os comerciantes que traziam o ouro do sul e os caravaneiros que iam para os portos do norte da África. Sua posição de destaque durou mais ou menos do ano 500 ao 1000, quando o Mali começou a se fortalecer com a mudança das rotas do deserto mais para leste, em direção ao delta interior do Níger. Em torno de 1230 Sundiata, mansa (como era chamado o chefe supremo) do Mali, estendeu o seu poderio em direção a leste e oeste, tornando o estado que comandava um verdadeiro império, com soberania sobre outros povos e vastas regiões.

Mansa  Musa. Mapa  de 1375 de Abraham Cresques de Mallorca

A população do Mali era composta de várias etnias, sendo os mandingas a principal delas. No século XIV o império era composto de povos da região do rio Senegal, como jalofos, sereres, tucolores e fulas; das cabeceiras do Níger, como bombaras e soninquês; a leste subjugou os songais e aproximou-se da terra dos hauçás. Além disso, manteve relações com os povos da floresta, por meio do comércio feito pelos mercadores uângaras, ou diulas, que viajavam até a terra dos acãs e de povos mais ao norte influenciados pelos mandingas, de onde vinha uma das mais importantes mercadorias no comércio do Saara: a noz-de-cola.

No fim do século XV Songai passou a ser o principal estado do médio Níger. O império floresceu sob a liderança de um ásquia (como era chamado o chefe supremo) que por volta de 1470 conquistou Tombuctu e, depois, Jené. Nessa época, a maioria do ouro começou a vir de minas da região do rio Volta, em terra dos acãs. Mas desde o fim do século XV ele não era mais transportado apenas pelas rotas do Níger e do deserto. Os portugueses haviam chegado à costa atlântica e comerciavam o ouro a partir de seus barcos e de entrepostos que iam criando.

Songai, que se expandia para leste e dominou algumas cidades hauçás, se manteve como o estado mais forte do Sudão ocidental até 1591, quando foi invadido por exércitos vindos do Marrocos. O que havia de mais refinado nessa região, construído ao longo de séculos, foi sufocado pelos invasores. Mesquitas, escolas e bibliotecas foram destruídas, os sábios foram deportados, as estruturas de mando e de justiça foram desmanteladas. A urbanização e o comércio cederam espaço para as atividades agrícolas e de pastoreio, as religiões tradicionais voltaram a florescer e o islã, que se alimentava das caravanas que atravessavam o deserto levando e trazendo, além de mercadorias, peregrinos e especialistas em teologia, passou para segundo plano.

SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil Africano. São Paulo: Ática, 2007. p. 34-36.


                      

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Inspecionando os campos para Nebamun

Afresco.  1350 a.C. Artistas desconhecidos.

Este fragmento de afresco foi adquirido pelo British Museum em 1821, junto com outros 10. Originalmente, eles faziam parte da decoração das paredes da capela votiva no túmulo de Nebamun, contador de grãos que trabalhava no templo de Amun, em Karnak, durante o reino de Amenhotep III (c. 1390 a.C. - 1352 a.C.). Nebamun era um funcionário de alta estirpe e aparece em um dos fragmentos supervisionando a contagem de gansos. Outros elementos da decoração da capela, que não sobreviveram, talvez o apresentassem supervisionando outras atividades rurais.


Neste fragmento, um velho agricultor, à esquerda da composição, está diante de dois funcionários que esperam sob uma figueira, com suas carruagens. A pedido de Nebamun, o agricultor inspeciona os campos, verificando seus limites. A seus pés, encontra-se uma pedra branca usada para a demarcação de fronteiras. O tratamento esquemático dos dois funcionários e das carruagens é típico da arte egípcia do período, mas o personagem mais idoso ganha uma incomum representação naturalista, fornecendo um contraponto visual muito marcante. Os demais fragmentos do túmulo incluem cenas de inspeção do gado, caça e aves nos pântanos, Nebamun recebendo oferendas de seu filho, banquetes e um belo jardim com um lago, supostamente do próprio Nebamun. Um fragmento mostra homens trazendo animais como oferendas, da mesma forma como seriam deixados na capela votiva para servirem de suprimento para o espírito do morto.

Craig G. Staff. Inspecionando os campos para Nebamun 1350 a.C. In: FARTHING, Stephen. (org.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 30-31.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Angola-Brasil: duas pontas do tráfico de escravos

Com a Independência do Brasil, Portugal correu o risco de perder, por tabela, outra colônia: Angola. Temia-se que a possessão africana fosse  anexada pelos brasileiros. E havia bons motivos para essa preocupação.

Durante mais de 300 anos, ambas as regiões estiveram nas duas pontas do tráfico de escravos. Quase 70% dos cinco milhões de africanos que desembarcaram no Brasil vinham do Congo e de Angola. E as relações iam muito além do comércio negreiro: pelo menos desde o século XVII, africanos da costa centro-ocidental e brasileiros estavam unidos por laços mercantis, familiares e culturais.


Por isso, logo depois da independência, Portugal chegou a enviar centenas de soldados para assegurar o controle de Angola e adiou o retorno a Lisboa de um navio de guerra fundeado em Luanda. E não eram só os portugueses que estavam alertas para manter a colônia africana. Em 1826, no tratado de reconhecimento da independência por Portugal, foi incluída uma cláusula proibindo o Brasil de incorporar qualquer colônia ou território luso no continente - Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé, Guiné-Bissau e o Forte de Ajudá, no Golfo de Benin. A medida foi uma imposição da Inglaterra, já então envolvida na campanha para abolir o tráfico.

No ano seguinte, o governo brasileiro mostrou que tinha, de fato, interesses especiais em Angola: enviou para lá três navios de guerra. O objetivo oficial da missão era proteger navios negreiros que operavam na área. A medida era inédita: nenhuma nação independente das Américas tinha ido tão longe na defesa do comércio de escravos. Quase ao mesmo tempo, foi inaugurado um consulado brasileiro em Luanda, sob o comando de Rui Germack Possolo. Numa espécie de governo paralelo, o cônsul ameaçou emitir licenças de partida para navios, atribuição que não lhe cabia, e assumiu o papel de defensor de traficantes brasileiros presos por conta de disputas com comerciantes locais. Não demorou a entrar em choque com o governador de Angola, Nicolau de Abreu Castelo Branco, representante máximo do poder português na colônia.

Porto de Luanda no século XVIII

O fato é que os brasileiros já se encontravam alojados no coração do poder angolano havia muito tempo, ocupando cargos da administração civil e militar. Muitos deles tinham sido enviados à África como degredados. Aos poucos eles se estabeleceram, ganharam poder e prestígio. [...]

A maioria dos brasileiros em Angola tinha ligações com o tráfico de cativos. Degredados, agentes de casas comerciais sediadas no Brasil e marinheiros não vacilavam em se aventurar pelos sertões angolanos em busca de bons negócios. [...]

[...]

O fim da escravidão mudou o tipo de relação entre aqueles povos com histórias tão entrelaçadas. E que por pouco não se uniram sob um só país.

Roquinaldo Ferreira. Terra de oportunidades. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, n. 39. p. 21-23.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Um supermercado cruza o Atlântico

Os europeus estavam começando a dominar as Américas, mas a corrente de influências corria nas duas direções. Nunca antes, na história do mundo, haviam sido transferidas tantas plantas valiosas de um continente ao outro.

O milho era a mais notável das novas plantas, e Cristóvão Colombo, pessoalmente, transportou sementes de volta em seu navio. O milho tinha a impressionante capacidade de produzir, na época da colheita, muito mais grãos do que o trigo ou o centeio; [...] Em 1700, os pés altos e verdes de milho podiam ser vistos balançando ao vento na maior parte das zonas rurais da Espanha, Portugal e Itália.

A batata americana foi para o norte da Europa o que o milho representou para o sul. Os irlandeses acolheram bem a batata, pois em seus pequenos pedaços de terra, ela oferecia mais calorias do que qualquer outro produto. [...] a batata quente era o principal prato da população pobre da Irlanda. [...] Os alemães também se regozijaram com a batata, ao descobrirem que essa plantação, ao contrário de milho maduro, não era facilmente danificada ou destruída por exércitos violentos.

Nas plantações europeias, também podiam ser achadas outras novidades americanas: a batata doce, o tomate [...] e a alcachofra [...].

O peru, a única carne a ser trazida das Américas, também foi igualmente disfarçada por seu nome europeu. [...] Os perus, que mais rigorosamente falando deveriam ter sido chamados de "méxicos", já eram populares nas mesas da Espanha e Inglaterra, no Natal de 1573.

[...]

Das Américas vieram presentes como o abacaxi, a ser comido somente na mesa dos muito ricos, a pimenta de Caiena (ou cápsico), o cacau e o tabaco. Como quase todas as novidades transatlânticas, o tabaco se espalhou aos poucos pela Europa [...].

As monarquias da Europa não tinham certeza de como controlar essa nova moda de fumar tabaco em cachimbos ou de cheirá-lo na forma de rapé; alguns reis tentaram bani-lo. Na Rússia, um fumante podia ser punido com a amputação de seu nariz. Outros países, que tinham colônias tropicais, tentaram proibir a plantação de tabaco em solo nacional para que pudesse ser cultivado nas colônias e importado através de um porto onde pudessem ser recolhidos impostos sobre cada lote de tabaco desembarcado. A Inglaterra estabeleceu colônias na Virgínia e Maryland, principalmente para o cultivo desse produto. [...]

O tráfico de minerais, no curto prazo, foi o comércio mais dramático do Atlântico. O primeiro presente para os espanhóis na América Central e do Sul foram o ouro e a prata. Uma vez que haviam conseguido total controle de seus territórios americanos e enviado trabalho forçado para operar nas minas, os espanhóis despachavam para casa, em comboios altamente armados, uma quantidade anual tão grande de ouro e prata que a inflação monetária começou a mexer com a Espanha e, em seguida, com a Europa.  [...]

Nos primeiros navios que traziam metais preciosos, plantas e sementes valiosas pelo Atlântico, veio um outro turista: a doença da sífilis [...]. A sífilis tornou-se comum no século XVI [...].

As viagens europeias também abriram a Ásia para o mundo. Durante séculos, uma infinidade de produtos e plantas asiáticos atravessou toda a extensão da Ásia por terra, mas agora tudo fluía pelas rotas do mar. O chá da China encontrou seu caminho para a Europa, assim como a misteriosa porcelana e muitas outras manufaturas.

[...]

Da China, vinham novas flores de jardim para a Europa. O crisântemo era a favorita. [...]

O Novo Mundo também deu aos ávidos europeus um prazer que não era comum: deu-lhes as cores vivas. Ainda em 1500, a maioria das cidades e vilarejos era fria em suas cores. As cabanas podiam receber uma mão de cal, mas raramente eram pintadas. As casas de madeira tinham uma aparência pardacenta, embora, na Holanda, os tijolos chegassem a dar um tom vermelho aconchegante. [...] Em muitas cidades, a pedra era naturalmente escura e, com o passar dos anos, até as pedras claras eram aos poucos descoloradas pela fumaça de madeira [...]. Em algumas catedrais medievais, os vitrais ficavam realmente bonitos quando o sol estava brilhando, mas essas cores eram destacadas exatamente porque a maioria das ruas da cidade não tinha brilho algum.

As roupas dos europeus eram geralmente pardas, exceto as usadas pelos ricos. Os artigos não eram embrulhados em cores vivas porque qualquer forma de embrulho era muito cara. Os papéis para embrulho eram pura extravagância e nunca coloridos. Faixas e bandeiras eram atraentes porque eram muito mais ricas em cor do que as roupas usadas pela maior parte dos cidadãos.

Um dos milagres das recém descobertas Américas foram as novas cores. Os mexicanos, bem antes da chegada dos espanhóis, haviam observado como um inseto sem asas, alimentando-se da planta do cáctus, e estando prenhe, continha uma cor escarlate de grande intensidade. Eram necessários 70.000 insetos mortos para produzir somente meio quilo de pó de cochonila, que, podia ser usado para criar tinturas das mais vivas. [...]

A rota marítima ao redor da África abriu as portas para uma fonte barata da cor azul. O índigo, planta da qual o mais fino azul era extraído, era cultivado em Bengala. [...] Por muitos séculos, consignações pequenas e caras da tintura do índigo, provavelmente da Índia, ocasionalmente chegavam no Mediterrâneo pela rota terrestre, mas agora começava a chegar em milhares de baús de madeira acondicionados em navios holandeses e portugueses. [...] Em pouco tempo, nos recintos mais elegantes de Amsterdã e Veneza, homens e mulheres usando chapéus e casacos, capas e túnicas de azul índigo desfilavam como pavões. Até o exército francês abandonou o uniforme castanho-avermelhado e vestiu-se de azul.

[...]

Muitos pacotes pequenos, caixas e barris vinham nas novas cargas até os armazéns e eram considerados tão preciosos quanto ouro. Da China, vinham pequenos potes contendo aquele ingrediente precioso da medicina, do perfume e da arte de embalsamar, o almíscar. [...] Na era de pouquíssimos analgésicos, o almíscar induzia a sonolência. [...]

Em todos os lugares, o mercado de novos remédios era enorme. A Europa, na época, sofria muito com a malária e, nos pântanos da Itália, ela era extremamente mortal. Uma possível cura era oferecida pela casca de um arbusto peruano, a cinchona. Principalmente importada para a Europa pelos sacerdotes católicos, foi conhecida inicialmente como casca dos Jesuítas. O ingrediente fundamental presente na casca era a quinina, descoberta pelos franceses durante o período das Guerras Napoleônicas.

Na Europa, o cravo-da-índia, originário do arquipélago indonésio, era apreciado como remédio, principalmente para dor de dente, e como um tempero para comida e bebida. Aos olhos da maioria dos mercadores, a pimenta era o presente do sudeste da Ásia. Uma trepadeira que se enroscava nos galhos das árvores, seus frutos eram colhidos quando estavam vermelhos e brilhantes e, em seguida, eram espalhados em tapetes sob o sol quente, onde ficavam até murcharem e se tornarem escuros. Era tão cara que, em muitas cozinhas europeias, era salpicada em algumas carnes especiais de forma tão meticulosa como se fosse pó de ouro. [...]


Mapa da América do cartógrafo Sebastian Munster, 1561

Não só a mesa de refeições dos europeus mais abastados, mas também a própria agricultura em si estava se alterando. As viagens de Colombo, Vasco da Gama e outros navegadores europeus pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico promoveram uma revolução na agricultura do mundo. Junto com as cargas acondicionadas nos conveses ou trancadas no porão, havia pequenas consignações de sementes e mudas que eram eventualmente transportadas por uma série de acontecimentos premeditados e casuais para todos os continentes. O café, algodão, açúcar e o índigo foram para as Américas para serem cultivados em larga escala, com suas colheitas sendo exportadas para a Europa. Para a Argentina foi o gado e, mais tarde, para a Austrália foram as ovelhas. [...]

[...]

Durante esse intercâmbio internacional de plantas e matérias-primas, aconteceram casualidades. Muitas aves, animais e plantas foram ameaçados pela chegada de novas pessoas, novos animais, novas armas e armadilhas.

Nas ilhas vulcânicas de Maurício e Reunião, há vários anos, havia vivido um pássaro que não podia voar, o dodó. Membro da família dos pombos, grande e dócil, com pernas grossas e calosas, penas brancas e cabeça pouco comum, o pássaro vivia em segurança, longe do ataque de qualquer predador. [...] Em seguida, os exploradores europeus chegaram, trazendo porcos e ratos; os ovos colocados pelo dodó em ninhos sobre o chão ficaram vulneráveis.


Dodó (Raphus cucullatus). Artista desconhecido. Gravura do século XVII

O último dodó de que se tem notícia, pego na ilha de Reunião [...] morreu num barco francês em algum momento antes de 1764. [...] Em todas as regiões do Novo Mundo, uma variedade de espécies, seja o pombo-passageiro da América do Norte ou o "tigre" marsupial listrado da Tasmânia, seguiram o mesmo caminho que o dodó.

BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. São Paulo: Fundamento Educacional, 2004. p. 158-163.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Os pilares da sociedade

Os pilares da sociedade, 1926. George Grosz

Quando Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933, e George Grosz saiu imediatamente do país para o exílio, o resumo de tudo o que ele odiava na psique de muitos de seus compatriotas - militarismo, xenofobia e avidez por um poder dominador - havia, finalmente, triunfado: os nazistas assumiram o poder. Os nazistas, por sua vez, o haviam rotulado de "bolchevista cultural número 1", em parte porque, após se juntar ao partido comunista alemão em seu início, em 1918, ele atuou na militância política sob o pseudônimo de "Propagandada" no dadaísmo de Berlim, mas em especial porque sua arte havia, consistentemente, arrancado as máscaras de legitimidade do nazismo.

Os pilares da sociedade é uma das pinturas mais persuasivas e abertamente políticas de Grosz. Algum tempo antes, ele enfocara os exploradores da guerra e seus aliados políticos, assim como aqueles que ficaram mutilados nos campos de batalha. Aqui, os "pilares da sociedade" são os enganadores e corruptos formadores de opinião na Alemanha, que estavam levando o país em direção à guerra e aos conflitos civis. Grosz costumava fazer desenhos rápidos dos rostos e maneirismos das pessoas que o interessavam, e estes forneciam um rico material para seus retratos satíricos. Atrás dos "pilares", ele pintou um edifício em chamas, com operários carregando pás, marchando para a esquerda política, enquanto soldados nazistas marchavam para a direita. Na época dessa obra, Grosz havia atingido um estilo gráfico que ultrapassava a mera caricatura para se tornar uma imagem satírica, segundo a tradição de William Hogarth e Francisco de Goya.

Larry McGinity. Os pilares da sociedade. In: FARTHING, Stephen. (org.). Tudo sobre arte. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 422-423.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Máscara de Teotihuacán

Máscara de Teotihuacán.  C. 300-600. Artista desconhecido.

Máscaras como esta representam o auge do desenvolvimento artístico da civilização de Teotihuacán. Elas eram usadas em rituais fúnebres de governantes e pessoas importantes, e cobriam o rosto do morto.  As máscaras eram símbolos da transformação e da transição da forma humana para um estado de divindade - acreditava-se que as pessoas enterradas em Teotihuacán se tornassem heróis deificados - e os deuses sempre escondiam seus rostos com máscaras. Máscaras foram encontradas nos prédios públicos e religiosos que se estendem pela Calzada de los Muertos (avenida dos Mortos), que atravessa a antiga cidade de Teotihuacán de norte a sul. Ligeiramente maior do que o rosto humano, essas máscaras eram feitas de pedra polida, jade ou obsidiana, e algumas são decoradas com mosaicos, conchas, corais e turquesas. As cores das pedras se relacionam a deuses específicos, e as pessoas que usavam as máscaras geralmente estavam enfeitadas com outros artefatos reais, como brincos e colares, feitos com pedras preciosas e semipreciosas.

Esta máscara tem os traços planos e lisos característicos da maioria das máscaras encontradas em Teotihuacán, as quais retratam uma expressão facial idealizada, ainda que anônima. Os traços amenos são intencionalmente estilizados: a máscara é dividida em planos geométricos quase simétricos. Isso é, em parte, consequência da técnica de corte horizontal da rocha usada para se fazer a máscara, mas também expressa um desejo de comunicar a essência do espírito do morto.

Rodolfo Molina. Máscara de Teotihuacán. In: FARTHING, Stephen. Tudo sobre arte. (org.). Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 36-37.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Sangue no mato": a Cabanada

Em violentas batalhas, índios e escravos da floresta resistiram às investidas do governo sobre suas terras. A Cabanada queria a volta de D. Pedro I

por Marcus J. M. de Carvalho

Representação da abdicação de D. Pedro I, de Aurélio de Figueiredo: os envolvidos na Cabanada queriam a volta do imperador a fim de assegurar direitos conquistados na repressão à Revolução de 1817 e à Confederação do Equador.

Uma guerra pode ter várias motivações. Em quanto alguns lutam por causas coletivas, como a independência política, outros se entregam a necessidades muito mais básicas e imediatas. Como terra, comida e o direito de viver "no mato".

No turbulento período regencial - entre a abdicação de D. Pedro I (1831) e a maioridade de D. Pedro II (1840) -, vários conflitos sangrentos sacudiram o país. [...] Balaiada, Sabinada, Guerra dos Farrapos. Mas um deles [...] permanece quase esquecido e provoca confusão por uma semelhança de nomes: a Cabanada aconteceu entre Pernambuco e Alagoas - e batizou a Cabanagem, ocorrida no Pará anos depois.

Diferente de todas as outras, a Cabanada não foi uma contestação ao regime imperial autoritário, nem ambicionava a independência regional. Foi uma guerra das "gentes do mato" - índios, escravos, posseiros - em defesa de sua porção de terra.

Tudo começou bem longe dali, na cidade, e com motivação política. Em abril de 1832, no Recife, houve um levante de militares de alta patente e proprietários rurais. Eles estavam insatisfeitos com a reviravolta ocorrida desde a abdicação de D. Pedro I. A volta do imperador para Portugal provocara a anistia dos remanescentes da Confederação do Equador, que lutara pela independência da região em 1824. Agora, aqueles que haviam combatido a revolução e garantido a manutenção do regime perdiam o poder na província para seus adversários. Parte da elite local amotinou-se contra o novo governo provincial, mas foi facilmente derrotada.

O problema é que os proprietários rurais também haviam distribuído armas para escravos e índios no interior, pensando em tê-los como fiéis vassalos na batalha. Por isso, o governo decidiu mandar um exército com mais de mil homens em direção à divisa com Alagoas, para enquadrar a chamada "gente das matas", os habitantes das florestas, que viviam à margem da economia local, baseada na cana-de-açúcar e no plantio de algodão. Sua resistência à investida foi imediata e brutal.

As autoridades militares começaram a chamar os rebeldes de "cabanos", uma referência às cabanas em que viviam. Quando começaram a levar vantagem contra as tropas oficiais, no final de 1832, tornou-se pública a figura de seu principal líder: Vicente de Paula. É desses personagens que deixaram um rastro de mistério sobre sua vida pessoal. Do pouco que se sabe de suas origens, ele próprio afirmou certa vez que era filho de um padre de Goiana, importante vila perto da divisa com a Paraíba. As autoridades o acusavam de ser um "ladrão de escravos". Mas se tivesse vendido alguns dos inúmeros escravos que diziam ter "roubado", ou mesmo os colocado para trabalhar em seu proveito, teria se tornado um homem rico. A acusação era, na verdade, um eufemismo para encobrir a escolha feita espontaneamente pelos cativos, que optavam por deixar os engenhos e eram assimilados pelos cabanos. Ainda que obrigados a obedecer à hierarquia do grupo, sua situação passava a ser muito diferente da escravidão. Era, isto sim, o começo da liberdade.

As matas pernambucanas retratadas por Frans Post no século XVII, foram habilmente utilizadas pelo exército comandado por Vicente de Paula, dificultando a ação repressiva das tropas oficiais.

Em seus manifestos, os cabanos eram claros. Lutavam pela volta de Pedro I, pela Igreja e contra os "jacobinos" [sic], que, segundo diziam, haviam se apropriado do governo após derrubarem o legítimo imperador. O que eles buscavam era manter suas terras contra os proprietários rurais que passaram a invadir as florestas, cuja madeira era antes reservada à Marinha Imperial. Muitos habitantes das matas haviam sido recompensados por sua participação na repressão às revoltas contra o imperador; e agora temiam represálias. Era o caso dos índios de Jacuípe. Os escravos envolvidos, por sua vez, tinham outra demanda específica: lutavam pela nova condição adquirida após serem "roubados" por Vicente de Paula.

Em fevereiro de 1833, o comandante das Armas de Pernambuco, José Joaquim da Silva Santiago, pensava em simplesmente exterminar os revoltosos, caso não se rendessem. Foi com esse objetivo que mandou afixar nas árvores uma proclamação endereçada aos cabanos, na qual eram tratados, logo no preâmbulo, por "brasileiros degenerados". Mas a "gente das matas" não se deixou intimidar. Foram capazes de retomar a povoação de Jacuípe, onde antes viviam os índios e que se tornou o quartel-general das tropas do governo. Também lutaram para conquistar o porto natural de Barra Grande, à espera de uma esquadra que, acreditavam, traria de volta Pedro I. Naquele mesmo ponto haviam aportado a esquadra imperial para reprimir a Insurreição Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador em 1824.  Por isso ele era considerado estratégico pelos cabanos, que dali desferiram vários ataques. Tanto Barra Grande como Porto Calvo, centro das operações contra o Quilombo de Palmares, destruído em 1695, foram tomados e perdidos pelos cabanos em sucessivos combates.

Vicente de Paula costumava assinar "General" ou "Comandante de Todas as Matas". Às vezes, com mais pompa ainda, proclamava-se "Combatente Geral do Imperial Exército de Sua Majestade Imperial Dom Pedro I". Em 1833, afirmou que comandava um exército de 3.550 homens. Um exagero, segundo os adversários, que estimavam que o batalhão sob seu comando direto tinha cerca de 600 homens, embora reconhecessem que estes estavam bem armados e eram treinados na arte da guerra. Vicente de Paula tinha outro trunfo: navegava, soberbo, pelos labirintos das matas. Suas tropas surgiam de onde eram menos esperadas, tomando posições importantes, espalhando o terror e matando inúmeros guardas nacionais e soldados de primeira linha. O batalhão mais temido era o dos "papa-méis", totalmente formado por escravos "roubados" por ele.

Sempre que podiam, os cabanos levavam consigo seus mortos, tal como antes faziam os povos nativos em luta contra os conquistadores do Brasil. Muitos usavam camisas "tintas", ou seja, da cor de vinho tinto, como uma espécie de farda. Era imensa sua ousadia. [...]

A morte de D. Pedro I, em 1834, pôs fim à Cabanada. Mas não sem luta. Naquele ano, os presidentes de Pernambuco e de Alagoas, Manuel de Carvalho Paes de Andrade e Antonio Pinto Chichorro da Gama, reuniram-se para traçar uma estratégia conjunta. Contavam com mais de quatro mil homens. Decidiram cercar o perímetro das matas, espalhar proclamações e prometer anistia aos que se rendessem. Os que não aceitassem a oferta seriam mortos. [...]

A nova estratégia deu certo. Todas as cabanas, lavouras e animais encontrados foram destruídos pelas tropas do governo. [...] O bispo de Pernambuco colaborou com a repressão, mobilizando um pequeno exército de padres para pregar na área do conflito, asseverando que Pedro I estava morto e que a Regência não era contra o cristianismo. Pouco a pouco, os cabanos foram se rendendo, inclusive os índios de Jacuípe, considerados os rebeldes mais "ferozes".

Todos foram anistiados, menos Vicente de Paula. As autoridades queriam-no morto ou preso. Mas não conseguiram capturá-lo. Na última vez em que foi visto, submergia na escuridão das matas acompanhado por seus leais "papa-méis", reduzidos a menos de 100 homens.

Militares brasileiros do período pós-independência. Em 1832, tropas do governo debelaram facilmente a rebelião de parte da elite do Recife, mas encontraram feroz resistência da "gente das matas".

Anos depois do fim da Cabanada, em 1842, frei José Plácido de Messina andou dias na mata fechada, em busca da povoação fundada por Vicente de Paula com os remanescentes dos cabanos, chamada Riachão do Mato. Ficou surpreso com a quantidade de gente que encontrou. Frei Messina batizou e casou centenas de pessoas que "viviam em pecado", pois praticavam com frequência o "despique", nome que davam à troca de parceiros. À frente da comunidade, Vicente de Paula foi descrito pelo frei como um "semi-branco" paupérrimo, apesar da imensa deferência que todos lhe devotavam.

Mas o líder cabano não desapareceu da vida pública. Na década de 1840, voltou a se envolver na política de Pernambuco e de Alagoas. Não era incomum ser chamado de "caudilho" pelas autoridades provinciais. Principalmente depois de 1844, quando invadiu a capital de Alagoas com uma tropa de cavaleiros, em favor de um dos partidos em contenda. Depois se retirava para o interior, voltando a "roubar" escravos. [...]

Durante a Insurreição Praieira, em 1848, tanto os líderes do Partido Liberal quanto os do Partido Conservador tentaram obter sua adesão, escrevendo-lhe cartas em tom respeitoso. Ambas as facções entendiam a influência que ele tinha sobre a "gente das matas". Vicente de Paula aproveitou o momento para sair novamente das matas e... "roubar" mais escravos. Nomeado presidente de Pernambuco logo após aquela revolta, o marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão, resolveu prendê-lo a qualquer custo. Atraído para uma reunião, provavelmente com a promessa de que seria anistiado, Vicente de Paula finalmente acabou preso, ficando em Fernando de Noronha. Ali, ainda liderou uma rebelião em 1853. Ao ser solto em 1861, tinha 70 anos de idade.

[...]

Marcus J. M. de Carvalho. Sangue no mato. In: Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 4, n. 39. p. 80-83.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

O carnaval do tempo do Império

"O carnavalesco é um deus maldito
isso é que é bonito
recriar a criação"
(Aldir Blanc/Moacyr Luz)

Na frente, batendo bumbos e pandeiros, portugueses bigodudos, de tamancos e camisetas. Atrás, uma pequena e colorida multidão de mascarados, palhaços, índios, homens vestidos de mulher, diabos... Uns assopram apitos, outros tocam gaitas. Alegre e barulhento, o cordão atravessa as ruas estreitas do centro do Rio de Janeiro.

Viva o Zé Pereira
Que a ninguém faz mal
E viva a brincadeira
Dos dias de carnaval!

São comerciantes, funcionários, trabalhadores braçais, desocupados... Brancos, negros e mestiços. Dessa vez a manifestação não é de protesto, embora muitos desafoguem suas tristezas.

Cantando trechos de ópera, quadrinhas de circo e até temas religiosos, o bloco do "Zé Pereira" era um retrato vivo da cultura brasileira. O primeiro a sair, por volta de 1850, foi liderado por um sapateiro português, José Paredes. Com o tempo, o povo simplificou o seu nome e virou "Zé Pereira".

Entretanto, para a elite "à moda europeia", o "Zé Pereira" fazia mal. Uma revista da época dizia que "numa cidade que se pretende civilizada, a polícia não acode aos habitantes martirizados por alguns engraçados sem espírito. Eles passam horas inteiras espancando as peles dos zabumbas, quando as próprias é que deveriam ser escovadas".

Outra folia era o entrudo. Uma festa de escravos e pobres, que jogavam água e farinha uns nos outros. Cantavam, riam e brincavam. Sentiam um gostinho de liberdade.

Cena de carnaval, J. B. Debret

Os senhores de escravos sabiam que o entrudo aliviava as tensões e fazia esquecer, por algum tempo, a dureza do dia a dia. Por isso davam folgas para seus escravos nas vésperas do Natal e da Quaresma. O governo de D. Pedro II, no entanto, chegou a proibir a brincadeira. O motivo alegado era o de sempre: havia muita violência e as festividades faziam o Brasil parecer "primitivo" aos olhos dos europeus.

A vontade de ser feliz estava em todos os cantos do país. Vejam só, na rua do Fogo, em Recife! De longe, parece um rio de águas agitadas... Mas é a multidão - os "pés de poeira" - que vem dançando o frevo. Um ritmo explosivo, quente. Um desafogo daquela gente que trabalha o ano inteiro! Vez por outra, no meio da folia, a ponta de um chapéu de sol fere a pança de um comerciante português, que está na calçada... O "parrudo" do "seu" Joaquim não gosta:

- Ai, se te pego, ó gajo!

É um corre-corre. Pernas-pra-que-te-quero!! Mas o frevo não parava.

Até nas festas da igreja da Penha, no Rio de Janeiro, os sons carnavalescos apareciam. Nas comemorações da Folia do Divino, as beatas torciam o nariz quando ouviam cantigas "pecadoras":

O divino Espírito Santo
É um grande folião
Amigo de muita gente,
Muito vinho e muito pão!

Os negros do cais de  Salvador, na Bahia, também saíam com seus blocos e afoxés: os "Pândegos da África", a "Embaixada Africana", o "Império Africano". As autoridades acusavam os negros de "africanizarem o carnaval". Por isso procuravam impedir aquelas manifestações que, segundo diziam, fariam a "civilizada" Europa "pensar mal do Brasil"...

ALENCAR, Chico et alli. Brasil vivo 1: uma nova história da nossa gente. Petrópolis: Vozes, 1991. p. 149.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Aspectos culturais do século XIX: burguesia e cultura

O Romantismo, nome dado a um movimento cultural característico da Europa no século XIX, está, de certa forma, ligado às aspirações políticas e sociais da burguesia revolucionária do período. Se o classicismo e o barroco ligavam-se a uma sociedade aristocrática, o Romantismo estava ligado aos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, pregados, no plano jurídico ao menos, pela burguesia em ascensão.

O Romantismo fundava-se mais nas emoções do que na racionalidade. Os românticos procuraram combater o que julgavam excessivo no racionalismo, herdado do Renascimento e do Século das Luzes. Assim podemos dizer que o Romantismo reagiu ao racionalismo, num plano mais emotivo, com apego à natureza e ao povo. As inspirações dos artistas românticos eram procuradas junto a gente simples, numa manifestação antielitista e antiaristocrática. Pesquisavam-se a cultura popular e o folclore para produzir não só pinturas e esculturas, mas principalmente música.

Além disso, a obra romântica tinha um sentido épico. Ressaltava-se o heroísmo, o sacrifício e o sangue derramado nas batalhas ou em disputas amorosas. Todo esse ideário estava relacionado à realidade das lutas políticas e sociais da época.

A nova arte poética do período teve como um dos grandes representantes o alemão Goethe (1749-1832). Em Fausto, uma de suas principais obras, o enaltecimento das liberdades individuais era o tema presente e que se repetiu em todo o seu trabalho.

Os ingleses Coleridge (1772-1834) e Wordsworth (1770-1850) tinham na natureza a base de sua temática, chegando a uma espécie de adoração mística dos fenômenos naturais.

Na França, um dos escritores românticos mais conhecidos foi Victor Hugo (1820-1885). Criticou o governo de Napoleão III com o livro Napoleão, o Pequeno e denunciou a situação de penúria dos pobres com Os miseráveis.

A novela de folhetim marcou a maior parte da produção literária da época. Os textos eram publicados em capítulos, veiculados pelos jornais. A comédia humana, de Balzac (1799-1850), pode ser considerado um dos melhores exemplos do gênero. Outro exemplo foi Alexandre Dumas com Os três mosqueteiros. O mesmo se pode dizer do popular O vermelho e o negro, de Stendhal (1793-1842), que descreve a sociedade francesa às vésperas da revolução de 1830.

Inicialmente, o tema constante na produção das artes plásticas foi a Revolução Francesa e o Período Napoleônico. Esses temas históricos eram reinterpretados pelos artistas através da recriação do classicismo greco-romano. Basta lembrar os arcos do triunfo e as colunas que Napoleão mandou construir.

Pode-se dizer que Jacques-Louis David (1746-1828) transformou-se no artista oficial da Revolução Francesa. David imortalizou, em famoso quadro, o assassinato de Jean-Paul Marat, um dos líderes da Revolução Francesa. Ainda na França, destacaram-se Eugène Delacroix (1798-1863) e Ingres (1780-1867).

A morte de Marat, Jacques-Louis David

Na segunda metade do século XIX, a pintura europeia sofreu uma verdadeira revolução por meio do movimento chamado impressionismo. Os pintores impressionistas procuravam captar o cotidiano da vida urbana e do campo. Como o próprio nome do movimento sugere, os pintores procuravam captar as impressões dos efeitos da luz na cena desejada. Os pintores mais importantes desse movimento foram Edouard Manet, Claude Monet, Renoir, Cézanne, Degas, entre outros.

O virtuosismo do músico do período anterior foi, de certa forma, substituído por uma interpretação mais emocional. A música para os românticos não era só uma obra de arte, mas um meio para comunicar o estado da alma.

Os compositores românticos captaram o momento político interpretando-o através de suas músicas. Um dos compositores que demonstraram de forma notável essa relação foi Richard Wagner (1813-1883). Quando Wagner compôs Lohengrin, havia recebido forte influência dos socialistas utópicos e da revolução de 1848.

O nacionalismo marcou a produção musical do período. As óperas de Rossini, Bellini e Verdi são um apelo à unificação da Itália. A Rapsódia húngara, de Liszt, e as Polonaises, de Chopin, são verdadeiros panfletos de nacionalismo.

A ópera, enfim, significou a passagem da música de câmara para a música dos grandes teatros. Prenunciava-se a participação de um público maior nos espetáculos artísticos.

PEDRO, Antonio et alli. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 311.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Crianças de rua

Quem não passou por esta cena? No farol fechado, sentados ao volante pressentimos a mãozinha que se estende, entre brincalhona e curiosa, para o vidro do carro: "Tem um trocado, tia?" Nunca temos o trocado ou, tão pouco, paciência. Na verdade, o hábito de crianças mendigando nos cruzamentos da cidade tornou-se tão corriqueiro que, apesar de sua presença constante, não as vemos mais. A história do Brasil, pode dar, contudo, uma explicação para essa nossa insensibilidade. Pouca gente sabe que as "crianças de rua" existem desde o século XVI. Vieram de Portugal nas naus que trouxeram ao Brasil os primeiros padres jesuítas. Encontrados nos porões e mercados, onde tentavam sobreviver, realizando pequenos furtos ou serviços, foram arrebanhadas para ajudar na missão da catequese. Vestidas de "anjo", com asas e roupinhas brancas, tocando instrumentos e cantando, saíam nos cortejos pelo "sertão": verdadeiras iscas para atrair "indiozinhos" para as escolas jesuíticas, então conhecidas como "casas de meninos".

No século XVIII, com a urbanização do Brasil Colônia, o número de crianças abandonadas pelas ruas de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo cresceu. Mães pobres, livres ou escravas, que sobreviviam à custa de trabalhos intermitentes, não tinham escolha quando o preço dos alimentos subia muito. Ora abandonavam seus rebentos em praias, portas de igrejas e terrenos baldios, ora os encaminhavam à roda das Santas Casas de misericórdia. No primeiro caso, as crianças frequentavam morriam de frio, fome ou devoradas por animais domésticos - que naqueles tempos viviam soltos pelas ruas da cidade. Vários bispos paulistas queixaram-se às autoridades por se encontrarem despojos de crianças mortas no lixão da cidade. A cena lhes era familiar, pois as janelas do palácio episcopal davam para uma ribanceira na Sé, onde, então, se jogavam detritos. Nas famosas "rodas de expostos" - cilindros que giravam para dentro dos muros das Santas Casas - as crianças eram geralmente deixadas à noite. O escuro encobria o anonimato dos abandonos. A mãe aí se limitava a depositar o bebê, tocando um sino para despertar a atenção do funcionário encarregado de vir recolher o "enjeitado". Muitas delas deixavam bilhetinhos explicando as razões do abandono, pedindo cuidados para o filhinho e prometendo vir buscá-lo quando pudessem. Pobreza, doenças, morte de um dos genitores e bastardia são as razões mais invocadas nessas tristes mensagens. Os reencontros eram raros, pois os índices de mortalidade infantil, nessas instituições, oscilavam em torno de 50 a 70%.

No século XIX, a promulgação da Lei do Ventre Livre aumentou mais ainda o abandono. Para fugir ao texto da lei que exigia dos senhores cuidar dos filhos das suas escravas, eles obrigavam as mães a abandonar seus pequerruchos. O artigo segunda da mesma lei dispunha sobre o destino dado a essas crianças: inicialmente, elas eram encaminhadas para estabelecimentos públicos ou instituições autorizadas pelo governo. Se sobreviviam, meninos a partir dos sete anos iam trabalhar em troca de teto e comida no Arsenal da Marinha. Meninas seguiam nas mesmas condições para o Recolhimento das Órfãs. Se insistiam em viver, aos catorze anos podiam empregar-se, recebendo salários. Outra prática que acabou lançando centenas de crianças à rua foi a de entregar recém-nascidos aos cuidados de amas-de-leite. Disseminada no século XIX, esta "moda" vinda da Europa levava os senhores a separarem suas escravas de seus filhos para obrigá-las a amamentar crianças brancas. Não foram poucas as teses defendidas na Academia de Medicina do Rio de Janeiro que bramiam contra senhores que comercializavam escravas recém-paridas: "É necessário reprimir o abuso dos senhores de escravos que mandam lançar na Roda ou abandonam os ingênuos com o fim de alugarem as mães", denuncia uma delas.

No início da industrialização em São Paulo, crianças pequenas eram empregadas na indústria e em toda a sorte de manufatura, atendendo a anúncios como o publicado no Estado de S. Paulo, em agosto de 1875: "Na rua São Bento n. 85 admitem-se meninos de 10 anos para cima para aprenderem ofício de empalhador e envernizador e marceneiro". Eram corriqueiros, nas fábricas, os acidentes em que as crianças tinham braços e pernas despedaçados por não conseguirem lidar com máquinas complicadas durante exaustivas jornadas. No ano de 1920, a participação da mão-de-obra infantil no setor secundário era de ordem de 7% e jornais como O Jornal do Comércio e o Estadão seguiam noticiando a vida desumana dessas crianças. Na época, criticando as instalações das fábricas, que compara a "velhos pardieiros", um parlamentar acrescentava preocupado: "As crianças ali vivem na mais detestável promiscuidade... falta-lhes ar e luz; o menino operário, raquítico doentizinho, deixa estampar na fisionomia aquela palidez cadavérica e aquele olhar sem brilho que denunciam o grande cansaço e a perda gradativa da saúde".

Operários diante da fábrica, São Paulo (fim do século XIX)

Se voltarmos à cena do farol, não teremos dificuldade em reconhecer o mesmo "olhar sem brilho" na criança que nos estende a mão. Na verdade, nosso país tem uma tradição de centenas de anos de insensibilidade diante da infância pobre e desvalida. Apesar do assunto ser plataforma política nos anos de eleição, poucos cidadãos se importam com o que acontece fora da janela do carro. É como se esses anos de descaso tivessem ajudado a cristalizar uma espécie de histórica indiferença com relação a tal assunto. Se a história pode nos ajudar a compreender que nossas reações têm uma profunda marca cultural, ela talvez nos ajude a assumir uma nova postura perante essa situação. Estender a mão de volta para a criança não significa "dar o trocado". Isso pode até acontecer. Mas a verdadeira mudança consiste em apoiar, com todas as forças, aqueles que concretamente possam fazer alguma coisa para mudar esse estado de coisas.

PRIORE, Mary Del. Histórias do Cotidiano. São Paulo: Contexto, 2001. p. 117-120.