"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Cultura brasileira: uma contribuição de brancos, negros e índios?

Retrato de negro, Arthur Timótheo

Cultura brasileira. Aventura dos homens, mulheres e crianças que aqui viveram; índios, negros e brancos; católicos, judeus e protestantes; população que simultaneamente forjou-se e ajudou a forjar o país.

Texto 1. [...] Em 2000 tivemos uma série de festividades em comemoração aos 500 anos de história do Brasil. O começo de nossa história estaria marcado pela chegada dos portugueses, pelo descobrimento. Mas basta pensarmos um pouco para vermos que o Brasil ainda não existia por volta de 1550, por exemplo. Não havia povo brasileiro, território brasileiro, leis brasileiras e tampouco um governo brasileiro. Se a cultura de um povo é a sua maneira de ser, ou seja, seus costumes, sua cozinha, suas festas, suas crenças, sua língua, suas vestimentas etc,, não havia também cultura brasileira. O que se tinha era a cultura dos portugueses que vieram para cá, as diversas culturas indígenas e as dos povos negros que foram trazidos como escravos da África. O que podemos chamar de cultura brasileira se formou lentamente a partir do encontro e da convivência entre portugueses, indígenas e africanos.

Esse encontro e essa convivência foram marcados pela exploração e pela dominação que os portugueses impuseram aos indígenas e africanos. Por essa razão, durante muito tempo, só os aspectos de origem portuguesa da nossa cultura eram valorizados pelas elites. Os de origem indígena e africana eram desprezados e até combatidos pelos grupos dominantes. Hoje aprendemos a valorizar as nossas raízes culturais indígenas e africanas.

A cultura brasileira recebeu posteriormente novas influências, em especial dos numerosos imigrantes que vieram para cá a partir da segunda metade do século XIX. Hoje em dia, comer macarronada aos domingos, por exemplo, é um hábito comum a um grande número de brasileiros. Esse costume, incorporado à nossa cultura, se deve à imigração italiana. (PEDRO, Antonio; LIMA, Lizânias de Souza. História por eixos temáticos. São Paulo: FTD, 2002. p. 23-4.)

                 
Iracema, Antonio Parreiras

"Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português"
(Erro de Português, Oswald de Andrade)

O último tamoio, Rodolfo Amoedo

Texto 2. De acordo com o senso comum, a cultura brasileira resultou da contribuição de brancos, negros e índios. No entanto, essa questão é mais complexa, uma vez que se corre o risco de generalizações e simplificações.

Afinal, quando se fala de "brancos", é preciso considerar não apenas os portugueses (a chamada "matriz portuguesa") mas também os imigrantes italianos, espanhóis, alemães, poloneses, ucranianos, holandeses, sírios, libaneses, dentre outras nacionalidades). Muitos destes imigrantes chegaram ao Brasil a partir da segunda metade do século XIX e, já no princípio do século XX, mais precisamente a partir de 1908, esse fluxo imigratório ganhou uma dimensão ainda maior com a vinda dos japoneses. Mais tarde, outros grupos asiáticos, como coreanos e chineses, também emigraram para o Brasil.


Lenhador, Rafael Pinto Bandeira

O vocábulo "negro" também é uma generalização que camufla a enorme multiplicidade étnico-linguística e cultural dos africanos que foram trazidos e se estabeleceram em determinadas regiões do território brasileiro no contexto do tráfico atlântico.


Fósforos, Firmino Monteiro

Se há alguns anos era comum fazer referência à "contribuição dos africanos na formação sociocultural brasileira", destacando-se, quase sempre a capoeira, o samba e a culinária, na atualidade, tal "legado" é muito questionado, uma vez que simplifica e banaliza a complexidade da história da cultura, relegando à etnia negra apenas um papel secundário em torno do eixo eurocêntrico.


Cena de Candomblé, Wilson Tibério

Em algumas áreas, como no polo açucareiro de Salvador, por exemplo, a presença africana e dos afrodescendentes foi tão expressiva que alguns autores sugerem que houve "uma contribuição portuguesa", num processo de africanização sociocultural.


"Meu pai grande
Ainda me lembro e que saudade de você
Dizendo: eu já criei seu pai, hoje vou criar você
Ainda tenho muita vida pra viver!
Meu pai grande
Quisera eu ter sua raça pra contar
A história dos guerreiros
Trazidos lá do longe, sem sua paz..."
(Pai Grande, Milton Nascimento)


Retrato, Arthur Timótheo

O mesmo raciocínio também se aplica aos "índios" e às suas "contribuições" (hábito de dormir na rede, tomar banho de rio, culinária, etc.). É preciso considerar que, em 1500, eles eram aproximadamente cinco milhões de indivíduos e que, em termos linguísticos, podiam ser agrupados em dois grandes troncos, o macro-jê e o macro-tupi, que englobavam mais de 600 línguas, o que por si só sugere a enorme diversidade cultural dos povos indígenas.



Essa questão se torna mais complexa quando se considera que, em determinadas regiões, como na Amazônia, a cultura indígena foi hegemônica no contexto da formação sociocultural da região. (BERUTTI, Flávio. Caminhos do Homem. Curitiba: Base Editorial, 2010. p. 239-240.)


Feiticeira, Rafael Pinto Bandeira

Texto 3. "A cultura popular viceja sempre. Foi no período anterior à chegada dos europeus que os índios forjaram a tradição de lendas e costumes que ainda hoje estão por aí espalhados, modificados como a história do saci-pererê ou temperados pela mão africana como as canjicas e os munguzás. E os africanos nos trouxeram, de suas distantes pátrias, o ritmo e a força que sobrevivem nas danças e nas religiões populares. Os caboclos e mulatos brasileiros, herdeiros dessa cultura, com as influências da tradição lusitana, mesclaram tudo isso nas festas de São João, nos reisados, nos maracatus, nas capoeiras, nos sambas, na macumba, na poesia popular de cordel". (ALENCAR, Chico [et alli]. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 45-46.)

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A visão asteca da Conquista

Códice asteca

O primeiro traço fundamental da visão asteca da Conquista é o que se poderia descrever como o quadro mágico na qual esta deveria de desenvolver-se. Os astecas afirmam que, alguns anos antes da chegada dos homens de Castela, houve uma série de prodígios e presságios anunciando o que haveria de acontecer. No pensamento do senhor Motecuhzoma, a espiga de fogo que apareceu ao céu, o templo que se incendiou por si mesmo, a água que ferveu no meio do lago, a voz de uma mulher que gritava noite adentro, as visões de homens que vinham atropelando montados numa espécie de veados, tudo isso parecia avisar que era chegado o momento, anunciado nos códices, do regresso de Quetzalcóatl e dos deuses.

Mas, quando chegaram as primeiras notícias procedentes das margens do Golfo sobre a presença de seres estranhos, chegados em barcas grandes como montanhas, que montavam uma espécie de veados enormes, tinham cães grandes e ferozes e possuíam instrumentos lançadores de fogo, Motecuhzoma e seus conselheiros ficaram em dúvida. De um lado, talvez Quetzalcóatl houvesse regressado. Mas, de outro, não tinham certeza disso. No coração de Motecuhzoma nasceu, então, a angústia. Enviou, por isso, mensageiros que suplicaram aos forasteiros para que regressassem ao seu lugar de origem.

A dúvida a respeito da identidade dos homens de Castela subsistiu até o momento em que, já hóspedes dos astecas em Tenochtitlán, perpetraram a matança do templo maior. O povo em geral acreditava que os estrangeiros eram deuses. Mas quando viram seu modo de comportar-se, sua cobiça e sua fúria, forçados por esta realidade mudaram sua maneira de pensar: os estrangeiros não eram deuses, mas popolacas, ou bárbaros, que tinham vindo destruir sua cidade e seu antigo modo de vida.

As lutas posteriores da Conquista, registradas pelos historiadores indígenas, testemunham o heroísmo da defesa. Mas a derrota final, ao ser narrada nos textos astecas, já é tema de um trauma profundo. A visão final é dramática e trágica. Pode-se ver isto claramente no seguinte "canto triste" ou icnocuícatl:

"Nos caminhos jazem dardos quebrados;
os cabelos estão espalhados.
Destelhadas estão as casas,
incandescentes estão seus muros.
Vermes abundam por ruas e praças,
e as paredes estão manchadas de miolos arrebentados.
Vermelhas estão as águas, como se alguém as tivesse tingido,
e se as bebíamos, eram águas de salitre.
Golpeávamos os muros de adobe em nossa ansiedade
e nos restava por herança uma rede de buracos.
Nos escudos esteve nosso resguardo,
mas os escudos não detêm a desolação..."
(Manuscrito anônimo de Tlatelolco, 1528)

As palavras anteriores encontram novo eco na resposta dos sábios aos doze franciscanos chegados em 1524:

"Deixem-nos, pois, morrer,
deixem-nos perecer,
pois nossos deuses já estão mortos!"
(Libro de los coloquios de los doce, Frei Bernardino de Sahagún)

Muitas outras citações poderiam acumular-se para mostrar o que foi o trauma da Conquista para a alma indígena. [...] a experiência do povo que, após resistir com armas desiguais, viu-se a si mesmo vencido. Não se deve esquecer que os astecas eram seguidores do deus da guerra, Huitzilopochtli; que se consideravam escolhidos do sol e que, até então, sempre creram ter uma missão cósmica e divina de submeter a todos os povos dos quatro cantos do universo. Quem se considerava invencível, o povo do sol, o mais poderoso da Mesoamérica, teve de aceitar sua derrota. Mortos os deuses, perdidos o governo e o mando, a fama e a glória, a experiência da Conquista significou algo mais que tragédia: ficou cravada na alma e sua recordação passou a ser um trauma.

LEÓN-PORTILLA, Miguel. A Conquista da América Latina vista pelos índios. Petrópolis: Vozes, 1984. p. 16-18.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Tenochtitlán: a cidade asteca

Tenochtitlán,  mural de Diego Rivera

O centro do império asteca era Tenochtitlán, uma cidade de canais, praças e mercados, pirâmides, templos, palácios, lojas e residências, que começou numa ilha no lago Texcoco e estendeu-se para as praias mais próximas com os quais se comunicava por estradas.

Na época da conquista espanhola, ela era uma orgulhosa metrópole de duzentos mil habitantes, tão soberba que o conquistador Bernal Diaz del Castillo registrou que mesmo "aqueles que estiveram em Roma ou Constantinopla dizem que em termos de conforto, regularidade e população nunca viram algo semelhante". O mesmo autor fornece uma descrição vívida na cidade tal como ela era em 1519.

"Nesta grande cidade... as casas se erguiam separadas separadas umas das outras, comunicando-se somente por pequenas pontes levadiças e por canoas, e eram construídas com tetos terraceados. Observamos, ademais, os templos e adoratórios das cidades adjacentes, construídos na forma de torres e fortalezas e outros nas estradas, todos caiados de branco e magnificamente brilhantes. O burburinho e o ruído do mercado... podia ser ouvido até quase uma légua de distância... Quando lá chegamos, ficamos atônitos com a multidão de pessoas e a ordem que prevalecia, assim como com a vasta quantidade de mercadoria... Cada espécie tinha seu lugar particular, que era distinguido por um sinal. Os artigos consistiam em ouro, prata, jóias, plumas, mantas, chocolate, peles curtidas ou não, sandálias e outras manufaturas de raízes e fibras de juta, grande número de escravos homens e mulheres, muitos dos quais estavam atados ao pescoço, com gargalheiras, a longos paus. O mercado de carne vendia aves domésticas, caça e cachorro. Vegetais, frutas, comida preparada, sal, pão, mel e massas doces, feitas de várias maneiras, eram também lá vendidas. Outros locais na praça eram reservados à venda de artigos de barro, mobiliário doméstico de madeira, tais como mesas e bancos, lenha, papel, canas recheadas com tabaco misturado com âmbar líquido, machados de cobre, instrumentos de trabalho e vasilhame de madeira profusamente pintado. Muitas mulheres vendiam peixe e pequenos "pães" feitos de uma determinada argila especial que eles achavam no lago e que se assemelham ao queijo. Os fabricantes de lâminas de pedra ocupavam-se em talhar seu duro material e os mercadores que negociavam em ouro possuíam o metal em grãos, tal como vinha das minas, em tubos transparentes, de forma que ele podia ser calculado, e o ouro valia tantas mantas, ou tantos xiquipils de cacau, de acordo com o tamanho dos tubos. Toda a praça estava cercada por "piazzas" sob as quais grandes quantidades de grãos eram estocadas e onde estavam, também, as lojas para as diferentes espécies de bens".

Os cronistas espanhóis registraram a hierarquização da sociedade asteca com o monarca semidivino no topo da hierarquia, seguido, em ordem decrescente, pelos nobres e altos sacerdotes, homens comuns, servos e escravos, sendo os últimos, prisioneiros de guerra. O mundo sobrenatural era estruturado de modo similar. No ápice, o deus da chuva, Tlaloc, compartilhava a supremacia com Huitzilpochtli, o deus da guerra, cujo templo e altar salpicado de sangue (no qual queimavam constantemente incenso e três corações humanos) horrorizaram os espanhóis católicos. Os livros de pele de cervo, ou códices, registravam as proezas dos heróis da história asteca, os detalhes dos rituais, o elaborado calendário cerimonial e outros tipos de informação, numa combinação de pinturas e símbolos.

MEGGERS, Betty. América pré-histórica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. p. 96-97.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O mundo em 500

Muro da cidade de Tihuanaco


Perto do ano 500, o cultivo de arroz em terras encharcadas e com ferramentas de ferro desenvolvido na China também estava firmemente estabelecido nos dois países - Coréia e Japão - mais expostos às influências chinesas. [...] não resta dúvida de que o Japão estava unido sob um governo único e era já uma potência a ser considerada em 391, quando despachou uma força militar que havia conquistado três reinos ao sul da península coreana. Por volta de 500, a riqueza extraída desses domínios e o rápido aperfeiçoamento tecnológico do próprio Japão haviam estimulado um enorme crescimento de sua população e originado um luxuoso estilo de vida para as classes dominantes. [...] Além do que pagava como tributo, a conexão coreana provia um fluxo constante de mão de obra gabaritada - especialistas em irrigação, tecelões, ferreiros [...]. Foi também o veículo para uma variedade de inovações culturais originárias da China, dentre as quais as mais notáveis foram a filosofia de Confúcio e o sistema de escrita chinesa, posteriormente adaptada para criar uma escrita puramente japonesa.

[...]

Um elemento-chave da cultura japonesa da época era o respeito pelo uji - a família. Isso não significava apenas a família no sentido de relações de sangue. Também significava no sentido de clã, e a maior família de todas, o povo inteiro, de quem o imperador era o chefe. Cada família tinha sua própria divindade, e era responsabilidade do chefe da família assegurar a adoração apropriada da deidade familiar. Essa veneração familiar existia dentro de um contexto mais amplo, o xintó - ou, mais corretamente, xintó antigo -, uma religião com muitos deuses, alguns ligados a forças naturais ou objetos, como o mar ou as montanhas, e outros, a processos, como o crescimento ou a criação.


Ao sul e a leste do Japão, a colonização das ilhas do Pacífico estava a essa altura quase completa. Os destemidos polinésios, em suas canoas de dois cascos [...] haviam acabado de chegar ao Havaí após um século de migração de ilha em ilha por 4 mil quilômetros desde as ilhas Marquesas. Outros polinésios haviam chegado até a distante Ilha da Páscoa, após uma jornada igualmente longa [...] a partir do Taiti. [...] 


O povo da Austrália continuava isolado do restante do mundo. Uma população escassamente espalhada por um ambiente nem um pouco hospitaleiro [...]. Para eles, a mudança só viria lentamente, e seu modo de vida continuou no padrão caçador-coletor [...].


Do outro lado do Pacífico, a 4 mil metros de altitude, nos Andes sul-americanos, havia um lago - o Titicaca - que se estendia por quase 8 mil quilômetros quadrados. Ao longo de suas margens, uma antiga civilização, com séculos de prosperidade ainda diante de si, conhecia sua idade de ouro. Os arqueólogos a chamam Tihuanaco, nome da grande cidade que ficava em seu coração. A base de sua riqueza e poder era um sistema único de agricultura, em que colheitas eram cultivadas em plataformas elevadas, os camellones, capazes de produzir dezenas de milhares de toneladas por ano. A água chegava nesses campos por meio de uma rede de canais de irrigação [...]. A cidade de Tihuanaco era uma capital cerimonial com talvez cerca de 50 mil habitantes, adornada com complexos de templos cujas ruínas magníficas impressionam até hoje. [...] O povo dessa civilização produziu joias e recipientes elegantes [...].


No vale do México, 8 mil quilômetros ao norte, outra civilização da Idade da Pedra também atingia seu ápice. Sua principal cidade, Teotihuacán ("Cidade dos Deuses"). era ainda maior que Tihuanaco. No ano de 500, somava quatro séculos de existência, e, com uma população de cerca de 150 mil pessoas, era uma das maiores cidades do mundo. [...] Cobria oito quilômetros quadrados e se distribuía em um padrão de grade, com palácios, praças, centenas de templos e duas grandes pirâmides: a Pirâmide do Sol e a Pirâmide da Lua. [...] Tal arte, arquitetura e população só teriam sido possíveis com um sistema de agricultura intensiva altamente produtivo. [...]


Centenas de quilômetros a leste de Teotihuacán, na península de Yucatán, a civilização maia estava em pleno florescimento. Essa civilização [...] surgiu na selva quase impenetrável, onde nada podia ser construído e nenhuma lavoura podia ser semeada enquanto clareiras não fossem abertas (com machados de pedra). E isso em um clima quente e úmido [...]. A despeito dessas dificuldades, centenas de templos, espaços rituais e pirâmides eram construídos, que mesmo quando se tornaram ruínas inspiraram admiração por sua qualidade monumental e pela quantidade de trabalho que representam.


Os maias não eram de fato uma civilização urbana. O que seus descobridores do século XIX presumiram serem cidades são hoje considerados centros cerimoniais: capitais religiosas e administrativas de distritos em que a unidade básica era a aldeia agrícola. [...] A civilização maia parecia estar mais para um conjunto de cidades-Estado, com os centros cerimoniais preenchendo o papel da cidade e com a observância religiosa, e a propiciação dos deuses, ocupando um papel central na vida da comunidade. Os maias tinham um sistema de escrita hieroglífica altamente desenvolvido, porém a maior parte de sua literatura foi destruída, em um ato de barbárie, pelos padres espanhóis do século XVI, que a consideraram "obra do demônio" (descrição que se encaixa melhor no próprio comportamento deles). Como resultado, não se sabe praticamente nada sobre a vida cotidiana maia. Sabemos que milho e feijão compunham sua dieta básica, que abacate era um cultivo importante e que bebiam chocolate. [...]


Os poucos escritos maias que possuímos são na maior parte registros astronômicos e sacerdotais. Os cálculos que eles contêm são de uma qualidade sem paralelo em qualquer civilização da Idade da Pedra. [...] Tudo nessa civilização, incluindo suas maciças construções, envolvia carregadores e força de trabalho humanos.


Ao norte da atual fronteira mexicana, nenhuma civilização urbana ainda surgira. Dentro e em torno do vale do Ohio, o povo da cultura hopewell tinha uma economia baseada no cultivo do milho, abóbora e feijão, além da caça, mas sua ocupação territorial era em aldeias, não em vilas. Em outras regiões do continente, culturas de caçadores-coletores permaneciam amplamente inalteradas. [...]


Na Europa, as culturas da Idade da Pedra haviam sido deixadas para trás muito antes disso. Poucos europeus viviam de caçar e coletar alimentos. Em quase todos os lugares, tanto o pastoralismo quanto o povoamento agrícola compunham os moldes da vida cotidiana. Dentro das fronteiras do antigo império ocidental, várias cidades mantinham as tradições da vida cívica romana, mas muitas outras foram abandonadas.


Tanto dentro como fora das antigas fronteiras do império, a tecnologia de ferramentas e armas de ferro era universal. Uma característica da vida europeia nessa época eram as migrações causadas pelo assédio de cavaleiros nômades vindos da Ásia. À medida que forçavam passagem pelo leste da Europa, os que haviam chegado antes eram compelidos a continuar se deslocando para oeste. Povos célticos abriram espaço para povos germânicos, que por sua vez tiveram de ceder terreno para os eslavos, e assim por diante. Nos séculos V e VI, sem a presença das legiões romanas, todos os países da Europa ocidental sofreram ondas de invasão. No início, tendiam a ser oportunistas: raides em busca de pilhagem, mulheres e escravos. Mas, à medida que o tempo passou, elas se tornaram expedições à procura de um lar permanente. [...]


Em torno do Mediterrâneo, sobretudo no império oriental, a vida urbana seguia quase inalterada. Mas na Europa setentrional, da Bretanha às margens do Mar Negro, a aldeia agrícola era a unidade básica do povoamento humano. Muitas vilas romanas estavam semiarruinadas: havia mais pedreiras para materiais de construção que moradias. Na Bretanha, as famílias de nobres nativos haviam se empenhado para manter o velho estilo de vida romano, mas durante o século V foram cada vez mais acossados pelos invasores vindos do outro lado do Mar do Norte - anglos, saxões e jutos.


No extremo oposto da Eurásia, nas fronteiras da Índia, a implacável pressão dos ataques dos nômades das estepes parecia enfim abrandar. Em 475, os hunos haviam cruzado os passos montanhosos do Afeganistão e avançado sobre Peshawar. Nos anos que se seguiram, ajudados pela desintegração do império Gupta, haviam chegado até o Indo e devastado Kashmir, deixando um rastro de massacres e destruição. Uma geração depois, dominaram o extremo noroeste do país, mas foram rechaçados de volta às montanhas. [...]


Na África, ao sul do Saara, a descoberta dos segredos da metalurgia do ferro e o desenvolvimento de sistemas nativos de agricultura possibilitaram a muitos povos compensar o tempo perdido durante a Idade do Bronze. No interior do continente, onde doenças como febre amarela, malária e a doença do sono eram endêmicas e doenças transmitidas por insetos impediam o uso do cavalo, boi ou camelo, o desenvolvimento de uma civilização agrícola era pouco provável. A vida ali continuava a seguir antigos sistemas de caça-coleta, e a população permanecia esparsa. [...]


Uma das civilizações mais dinâmicas da África estava localizada a 2 mil quilômetros de altura, nas montanhas etíopes, onde insetos não conseguiam viver, e portanto animais para puxar arado sim. Esse era o reino cristão de Aksum. Ele viera em expansão desde o século I, e o ativo porto de Adulis, no Mar Vermelho, era o centro de uma rede comercial que se estendia da Itália meridional ao sul da Índia.


No outro lado do continente, no rio Níger, havia outra cultura com séculos de existência baseada no cultivo de arrozais secos e na metalurgia do ferro que empreendeu um comércio fluvial de longa distância envolvendo cobre, ouro e objetos cerâmicos de luxo, e que compreendia ao menos uma cidade - Jenno Jene - com 10 mil habitantes.


Do Quênia até o distante Cabo, terras que outrora haviam abrigado bandos esparsos de caçadores-coletores da Idade da Pedra eram agora o lar de um enorme grupo de fazendeiros e pastoralistas dispondo do uso do ferro. Esses eram os povos falantes de banto, que em 3000 a.C. haviam emigrado em dois fluxos [...] a partir da Nigéria. [...] 


O crescimento da população na África subsaariana entre 100 d.C. e 500 d.C. [...] foi espetacular. 


[...]


Na época em que os chineses usavam carrinhos de mão e as senhoras romanas e Cleópatra, a rainha do Egito, vestiam seda, os seres humanos vinham trocando micróbios com seus hóspedes desejados - porcos, galinhas, vacas - e indesejados - camundongos, ratos, moscas, pulgas - por milhares de anos. [...] o oceano Índico e o Mediterrâneo eram agora cruzados por inúmeros navios e a Rota da Seda e estradas similares viviam movimentadas. Alforjes e porões de navios tornaram-se moradias móveis ideais para roedores e insetos, e os parasitas portadores de doenças. Cidades apinhadas os aguardavam no fim da jornada. A humanidade inventara a aldeia global, e os insetos teriam um banquete.


As regiões que mais sofreram foram as mais extremas na rede eurasiana - Europa e China -, que haviam tido menos tempo para desenvolver resistência do que as antigas civilizações em seu coração. [...]


AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 121-129.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O papel da mulher na comunidade primitiva

"Vênus de Wilendorf": estatueta de pedra do Paleolítico em que a mulher, provavelmente pela primeira vez, aparece como tema.

A princípio, possivelmente o cultivo da terra foi uma atividade praticada pelas mulheres, assim como a coleta de frutos e raízes comestíveis, de que se teria originado a agricultura, e talvez a domesticação dos animais. A caça era atividade masculina, tendo sido por muito tempo o principal meio de subsistência da comunidade. Porém, mesmo depois que a caça teve diminuída a sua importância econômica, em algumas comunidades esse fato não correspondeu ao seu declínio em prestígio social e político. Na realidade, a contribuição da caça, atividade praticada pelos homens, era ocasional, enquanto que a coleta de frutos e raízes, atividade feminina, era muito mais regular. Já havia, portanto, na comunidade primitiva uma divisão natural do trabalho. As mulheres, tanto quanto os homens, asseguravam o sustento do grupo, embora cuidassem também das tarefas domésticas.

[...]

Na comunidade primitiva, as mulheres não viviam "fechadas dentro de casa" - na verdade não havia casas individuais para uma só família: os abrigos eram habitações coletivas. "Os artesanatos neolíticos foram apresentados como indústrias domésticas. Não obstante, não constituem tradições individuais, mas coletivas. A experiência e o conhecimento de todos os membros da comunidade são constantemente reunidos. [...] Todas as mulheres da aldeia trabalham juntas, conversando e comparando seu trabalho; chegam a ajudar-se mutuamente. A ocupação é pública, mas as regras resultam da experiência comunal." (GORDON CHILDE, V. A evolução cultural do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. p. 103.)

O trabalho era realizado coletivamente, tendo nele homens e mulheres uma mesma importância. A mulher não era apenas reprodutora, embora esse papel fosse importante e necessário para a própria sobrevivência da comunidade: assegurar o crescimento do grupo era uma necessidade objetiva da comunidade primitiva - donde as práticas usuais da poligamia e da endogamia, dos casamentos entre parentes (permitidos a princípio) etc.

Não se deve, porém, idealizar a época "primitiva". Tais práticas não eram, propriamente, uma opção individual, mas o resultado das condições da forma de organização econômica da sociedade, a fim de assegurar o crescimento da espécie, principalmente com o início do pastoreio e da agricultura, que permitiram empregar o trabalho das crianças, ao contrário da caça, atividade dos adultos. Ao mesmo tempo, o pastoreio e a agricultura, possibilitando fazer reservas, tornaram possível o aumento da população.

A importância da mulher deveu-se também à sua condição de criadora, fixadora e transmissora de hábitos culturais, da experiência coletiva acumulada pelo grupo. Num certo sentido, pode-se dizer que a Revolução Neolítica - passagem à agricultura - foi obra das mulheres, assim como a domesticação dos animais (origem da pecuária), a fabricação da cerâmica, a fiação e a tecelagem (linho e algodão), a medicina caseira etc. Além disso, transmitiram esses conhecimentos às novas gerações, fixando e difundindo hábitos culturais.

Inicialmente, na comunidade primitiva, a mulher ocupava uma posição de igualdade e mesmo de superioridade em relação ao homem. Devido aos casamentos múltiplos, a linha de parentesco era dada pela mãe, isto é, a descendência se contava em linha feminina - é o direito materno (matriarcado). Quando, mais tarde, correspondendo ao aparecimento da propriedade privada dos rebanhos e, depois, da terra, o direito materno foi derrubado, a linha de descendência passou a se fazer pelo pai, a fim de se garantir o direito dos filhos à herança (patriarcado). Começou-se, então, a exigir da mulher a virgindade, antes do casamento, e a fidelidade conjugal, depois dele. [...]

A monogamia foi a condição imposta, principalmente à mulher, para garantir ao homem a certeza da paternidade e legitimar os filhos com direito à herança (partilha dos bens após a morte do pai).

O rompimento dos laços conjugais - o divórcio - que antes podia ser feito por qualquer um dos cônjuges (homem ou mulher), em algumas sociedades passou a ser privilégio do homem. Idealizou-se o papel biológico feminino: a maternidade foi "santificada".

Tais modificações ocorriam no nível jurídico-ideológico da sociedade, porquanto o papel econômico da mulher continuava tão importante quanto o do homem, por exemplo na agricultura, base da maior parte das sociedades antigas.

A opressão da mulher não foi produto da mente "má" dos homens individualmente, mas uma exigência objetiva da propriedade privada dos meios de produção, quando a mulher também se tornou um objeto do homem - tal qual a terra, o gado, os escravos etc.

AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. História das sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2008. p. 111-113.

domingo, 25 de setembro de 2011

Antiguidade Clássica: legado greco-romano

Afresco em Paestum. Cena de simpósio, século V a.C.

"O homem é a medida de todas as coisas".
(Protágoras)

"Se não houvesse existido a civilização grega", diz o poeta W. H. Auden, "nunca nos teríamos tornado plenamente conscientes, o que equivale a dizer que nunca nos teríamos tornado, para o bem ou para o mal, plenamente humanos".

1. O legado grego. Herdamos dos helenos uma brilhante civilização. Eles foram pioneiros geniais em vastas esferas humanas - nas artes e nas ciências [...], na política [...], nos esportes. Eles foram os criadores da democracia. E eles nos ensinaram a pensar. A vida moderna deve aos helenos [...] os fundamentos da sua existência: suas meditações e inquietudes [...], suas conquistas materiais e espirituais.

Os gregos colocaram no centro do universo, não um deus - mas o homem. Exaltaram e glorificaram a criatura humana como o ser mais importante do mundo. Acreditaram, com fé absoluta, na imensa capacidade do homem, na exatidão e na nobreza das suas realizações.

A atitude helênica foi laica e racionalista. Não se humilharam perante os deuses, nem se submeteram ao despotismo duma casta sacerdotal. Confiaram no espírito do livre exame, na superioridade do conhecimento sobre a fé ou a superstição. Destacaram-se pelo notável poder de abstração, mas souberam associar esta capacidade ao espírito prático, concreto. [...]

As raízes da sua cultura, porém, mergulham no mundo oriental. Os inícios da filosofia helênica provêm, talvez, da egípcia. O alfabeto grego derivou do fenício [...]. Na ciência, há dívidas para com os egípcios e os mesopotâmicos. E a compreensão helênica da liberdade e da beleza, seu espírito individualista e seu amor à vida [...] devem-se [...] à influência egéia.

Estudar a história dos gregos é estudar as origens da nossa civilização, pois que deles herdamos muitos dos nossos modos de sentir e pensar. Suas obras-primas são os modelos em que se inspiraram, durante longos séculos - e ainda se inspiram - os artistas , escritores e oradores do mundo inteiro.

[...] Pelo mar [Mediterrâneo] tocavam a Ásia, onde se instruíam, e pelo mesmo mar levaram à Europa as civilizações da Ásia e as invenções do seu próprio gênio.

Em 146 a.C., a Grécia foi subjugada e reduzida a província romana. Mas a dominação romana não destruiu a cultura helênica. Roma, vitoriosa pelas armas, foi conquistada pela civilização dos vencidos. E é sobretudo através do Império Romano que o legado cultural da Grécia foi transmitido à Europa ocidental e ao mundo contemporâneo. BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 161-162.


2. O legado romano. O grande legado de Roma encontra-se no Direito e na Justiça.

O Direito Romano, através do Código de Justiniano (Corpus Juris Civilis), é estudado em todas as modernas Faculdades de Direito - e forma parte do sistema legal de quase todos os países contemporâneos. É a maior contribuição romana à humanidade. [...]

A literatura e o pensamento romanos foram elementos essenciais de inspiração, no aparecimento do Humanismo e do Renascimento.

O espírito de Roma era o do homem clássico: daí as semelhanças entre a civilização romana e a moderna.

No ritual da igreja católica há muito da estrutura do Estado romano e da organização da religião romana.

A arquitetura romana preservou-se na arquitetura eclesiástica da Idade Média e sobrevive, ainda hoje, nas linhas de muitos de nossos edifícios públicos.

O latim  clássico foi, durante longos séculos, a língua internacional dos estudos universitários, da cultura e das comunicações científicas.

O latim vulgar [...] deu origem às línguas novilatinas e influenciou notavelmente o idioma inglês.

Roma preservou, quanto pôde - para a posteridade - a arte, a ciência e o pensamento dos gregos. BECKER, Idel. Pequena História da Civilização Ocidental. São Paulo: Nacional, 1974. p. 222-223.


3. O significado da Roma antiga. Podemos dizer que os romanos, juntamente com os gregos, atingiram um dos mais elevados níveis de desenvolvimento cultural de toda a Antiguidade, com fortes repercussões até os nossos dias. 

As instituições romanas, suas leis, a vida dos cidadãos, o funcionamento da administração, as conquistas e a arte são apenas alguns exemplos de um grau de desenvolvimento jamais visto na história até aquele momento. 

Mas o grande desenvolvimento romano se fez à custa de um tipo de trabalho bastante degradante e pouco avançado, pois, de modo geral, o escravismo impedia o desenvolvimento de novas formas de trabalho e de novas técnicas. Essa aparente contradição foi rompida na Idade Média, com o aparecimento de novas formas de trabalho. PEDRO, Antonio et alli. História do mundo ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 82.

sábado, 24 de setembro de 2011

Brasil: a sociedade colonial

Engenho de açúcar pernambucano do século XIX, Henry Koster


Texto 1. A sociedade colonial brasileira sofreu poucas modificações estruturais ao longo dos seus trezentos anos.

Quais as razões dessa imutabilidade?

Nesse largo período a forma de produção da riqueza da sociedade como um todo manteve-se baseada no trabalho escravo. Em outras palavras, as condições sociais foram determinadas pela forma de trabalho, que praticamente não se modificou até a segunda metade do século XIX.

* A vida no engenho. O engenho estava localizado na zona litorânea. Era ali que se passava toda a vida da colônia. O proprietário, senhor de engenho, era a autoridade máxima, pois detinha poder praticamente absoluto sobre todos os moradores da sua propriedade. Todos se submetiam à sua autoridade, inclusive os poucos homens livres, como os mascates (vendedores ambulantes), pois o engenho era o seu grande comprador.

Outros homens livres que também integravam a sociedade colonial eram os lavradores que produziam cana-de-açúcar em terras arrendadas pelos senhores. Esses lavradores, apesar de dependentes dos senhores, chegavam também a possuir escravos.

A camada dominante da sociedade colonial repudiava o trabalho manual, atividade quase exclusiva de escravos. O cronista Luís Vilhena comenta essa atitude num texto do começo do século XIX:

"Por que não há de cavar no Brasil aquele que em Portugal só vivia de sua enxada? [...] Por que há de querer mandar quem nada mais sabe que obedecer? Por que há de ostentar de nobre quem sempre foi plebeu?"

- A casa grande. Nas terras do engenho, o senhor mandava erguer um solar para a sua moradia. Era a chamada casa-grande. Na casa-grande o senhor estabelecia com os outros membros da família e demais moradores ligados ao engenho uma relação patriarcal. O pátrio poder, isto é, o poder dos senhores patriarcais, era ilimitado, caracterizando uma verdadeira tirania. Tudo era decidido por ele, o senhor de engenho, que tinha no seu primogênito o único herdeiro desse poder.

Os homens livres que viviam nas dependências e imediações da casa-grande eram os agregados. Sem papel muito definido na sociedade colonial, sua relação de subordinação ao senhor era uma garantia de sobrevivência.

Por não ter nenhuma herança de sangue, que caracterizava a nobreza europeia, os senhores e suas famílias ostentavam um luxo que muitas vezes não condizia com suas condições econômicas. Era uma forma de manter uma posição de destaque nessa sociedade.

Os escravos domésticos, que viviam em dependências secundárias da casa-grande, eram as mucamas (jovens escravas), criados, moleques de recado etc. As mulheres dos senhores de engenho, quando saíam, faziam-se acompanhar de um pequeno séquito de escravos e costumavam portar jóias para ostentar riqueza.


"A vida sexual era marcada por dois extremos: as mulheres brancas ensinadas a pensar o ato sexual com seus maridos não como fonte de prazer, mas sim uma obrigação matrimonial com o objetivo direto e claro de geração de filhos, enquanto as negras, fontes de uma eterna mística que lhes adjetivava atributos de sensualidade e perversão aguçadores dos desejos dos brancos, eram utilizadas como objetos de prazer para o senhor e seus filhos, dando origem a uma mentalidade permissiva à violência sexual contra as mulheres originárias das classes trabalhadoras, ainda hoje forte no Brasil." (AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.)


- A senzala. Num barracão próximo à casa-grande, localizava-se a moradia dos negros escravizados, a senzala. Na senzala os negros dormiam amontoados e sofriam os mais variados maus-tratos. A humilhação e o castigo corporal tinham por objetivo destruir a identidade e a personalidade dos negros, facilitando assim a sua submissão e o aproveitamento máximo da sua força de trabalho.

O açoite pretendia fazer com que o negro se auto-representasse como vadio, traiçoeiro, maldoso e que, portanto, merecia o castigo. Isso tudo era enfatizado pelas diferenças raciais, em que a cor da pele estabelecia uma rígida hierarquia na sociedade: o branco era o superior, logo abaixo vinha o moreno, que era melhor que o mulato; em último lugar estava o negro, que era inferior a todos.


Feitor castigando escravo, Jean-Baptiste Debret


"[...] o mundo da senzala era o da exclusão. Impedidos de constituírem família, isolados de seus laços tribais e de parentesco, os escravos acabavam por perder suas estruturas familiares e mesmo culturais. [...]" (AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.)

Essa situação de inferioridade a que os homens relegavam os negros era reforçada pela ideia negativa que se tinha das atividades manuais. De modo geral, quem sofria mais com esse tipo de discriminação eram os escravos do eito, isto é, os que trabalhavam direto na lavoura.

* Violência e resistência. Uma das formas de resistência à escravidão mais empregada pelos negros era a fuga. Ou fugiam sozinhos, correndo o risco de ter em seu encalço os capitães-do-mato - jagunços treinados na perseguição aos fugitivos -, ou fugiam em grupos. Esta última forma resultava quase sempre na formação dos quilombos, uma ou mais aldeias localizadas em terrenos de difícil acesso e bastante protegidas.

Nos quilombos os negros tentavam, e quase sempre conseguiam, reconstruir a organização social que tinham na África. Havia dificuldades para tanto, pois quase nunca coincidia de os negros fugidos serem originários de um mesmo grupo étnico. Mas reinava um espírito de sobrevivência e de comunidade. [...]

Outra forma de revolta era a violência pura e simples contra o feitor, que era o responsável pela disciplina. Muitas vezes os negros recorriam ao suicídio como protesto extremo contra a violência dos brancos.


"O negro entra na sociedade brasileira como cultura dominada, esmagada. E as marcas da escravidão persistem no disfarçado preconceito racial e na situação miserável da maioria dos negros em nossa sociedade. Não se pode pensar em Brasil sem levar em conta toda essa história". (ALENCAR, Chico et all. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 33.)

* A capela e a vila. Também a vida religiosa no Brasil colônia se desenvolvia principalmente no interior dos engenhos, em capelas e pequenas igrejas de fé católica. Essas construções tinham uma função social, pois era nas ocasiões de festas religiosas que os membros da sociedade tinham a oportunidade de se encontrar. De modo geral, o clero colonial era subordinado aos interesses dos senhores de engenho.

Com exceção de alguns centros, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, praticamente não havia vida urbana na colônia. As vilas eram centros da administração portuguesa e colonial.

Texto 2. A colonização das terras portuguesas na América exigia a organização de uma economia lucrativa e duradoura. A simples exploração do pau-brasil, apesar de ter se estendido por séculos, não garantia a estabilidade necessária para isso. Assim, o açúcar acabou por se tornar o principal produto da economia colonial até o século XIX, devido inicialmente a diversas condições favoráveis, principalmente no Nordeste, e a uma grande aceitação do produto nos mercados europeus.

Em torno da atividade canavieira desenvolveram-se também a pecuária e o fumo. O gado era fundamental para o transporte e servia como força motriz das máquinas dos engenhos. O tabaco tornara-se um produto importante, já que, na África, era trocado por escravos (escambo).

A África, o continente negro, fornecia um tipo de mercadoria especial. Por séculos, inúmeras embarcações cruzaram o oceano para abastecer o Novo Mundo com africanos, que, com suas vidas e seu trabalho, garantiram a colonização. A plantation, uma estrutura de produção original, lançava suas bases: grandes propriedades com mão-de-obra escrava dedicadas à cultura de um único produto voltado ao mercado externo.

A colonização gerou uma verdadeira civilização do açúcar. Afinal, com o plantio da cana e a proliferação de engenhos, não foram só as paisagens das áreas litorâneas, onde se dava o cultivo, que mudaram. Toda a antiga visão idílica, que apontava semelhanças entre o Novo Mundo e o Paraíso bíblico, foi substituída pelas reflexões e impressões causadas pela escravidão.

Os engenhos não eram apenas fábricas incríveis, mas verdadeiros infernos, com caldeiras que pareciam lagos ferventes, trabalho noturno e gritos desesperados de escravos. Numa melhor posição social, trabalhadores livres desempenhavam funções especializadas. O Brasil preparava-se para ser, segundo a visão de um cronista do período colonial, o inferno dos negros, o purgatório do branco e o paraíso dos mulatos.

Grande parte da América estava integrada ao intenso comércio do Atlântico, que envolvia gêneros tropicais, manufaturas e escravos numa extensa rede mercantil, montada pelas metrópoles europeias, denominada antigo sistema colonial. (CAMPOS, Flávio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993. p. 8.)

Interior de uma casa cigana, Jean-Baptiste Debret


Texto 3. A camada dos desclassificados ocupou todo o 'vácuo imenso' que se abriu entre os extremos da escala social, categorias 'nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização'. Ao contrário dos senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo trabalho esporádico, incerto e aleatório. Ocupou as funções que o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico desviar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (capitão do mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio). (SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 63.)


Referências:

ALENCAR, Chico et all. História da sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1996. p. 33.
AQUINO, Rubim Santos Leão de et all. Sociedade brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 131.
CAMPOS, Flávio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1993. p. 8
PEDRO, Antonio et all. História da civilização ocidental. São Paulo: FTD, 2005. p. 193-194.
SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982. p. 63

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

O mundo em 1000 a.C.

Pintura de estilo olmeca de Juxtlahuaca.


[...] o vale do Indo [...] abrigou uma civilização considerada antiga já no terceiro milênio a.C. Infelizmente, grande parte da evidência física dessa civilização foi destruída por inundações. Sua linguagem escrita não foi decifrada e grande quantidade dela foi realizada em materiais perecíveis como folhas de palmeira, deixando pouco a ser decifrado. A agricultura se disseminara por essa região a partir do Crescente Fértil [...]. Como o Nilo, o Indo tinha cheias anuais, levando um rico solo aluvial a uma ampla área de cultivo de trigo, cevada, arroz e algodão. Gado zebu, búfalos, ovelhas, cabras, porcos, elefantes e camelos foram domesticados.

Por volta de 2500 a.C., esse sistema combinado de agricultura e pecuária sustentava uma população de cerca de 5 milhões de pessoas , distribuída por uma vasta área. [...] Ela abrigava duas grandes cidades de tijolos vermelhos - Harappa e Mohenjo-Daro - cujos confortos não fariam feio diante das cidades mais desenvolvidas da Mesopotâmia. Elas tinham ruas amplas, ordenadas em padrão de grade; belas casas com pátio central e poço individual; banhos públicos; e sistemas de esgoto sem igual em lugar nenhum. As casas eram construídas com tijolos de lama, mas os encanamentos e prédios públicos, com tijolos de alta qualidade, queimados em forno. [...] Mas a partir de 1900 a.C. essa civilização entrou em declínio, e suas cidades foram abandonadas.As inundações sem dúvida foram parcialmente culpadas. Algumas escavações em Harappa exigiram a remoção de uma camada de dez metros de lama aluvial. [...] 

Nosso conhecimento da antiga civilização chinesa é igualmente fragmentado [...]. Os mais antigos exemplares remanescentes de escrita chinesa não remontam a mais de 1500 a.C., aproximadamente. [...]. 

A China ficava bem distante do oeste da Ásia e do Mediterrâneo. Mas não havia barreira insuperável ao norte das montanhas tibetanas, e contatos comerciais - através de regiões intermediárias - existiram desde antiga data. Mais importante ainda era o comércio transoceânico nas costas do oceano Índico. As tecnologias que a China importou de povos mais a oeste incluíam o cultivo de trigo e cevada, a manufatura do bronze, a ideia do carro de guerra e aquelas que foram as supremas invenções do povo das estepes, o cavalo como montaria e o estribo. Em troca, a Europa e o oeste da Ásia obtiveram tantos benefícios que se torna difícil listar. Porcelana (primeiro século d.C.), pólvora (nono século d.C.) e a bússola magnética (por volta de 900 d.C.) são apenas algumas invenções chinesas que por fim abriram caminho ao longo dessas duas grandes artérias comerciais: a trilha costeira contornando o oceano Índico e a Rota da Seda através da Ásia Central.

[...]

[...] Em 1000 a.C., o que chamamos de "China" era o que havia sido e permaneceria sendo por centenas de anos: um agrupamento de estados feudais independentes, cada um com o próprio exército, e todos sempre dispostos a ir para a guerra contra os demais.

Do outro lado do mar, no Japão, nenhuma civilização comparável surgira. Lá, havia uma cultura de caça, pesca e coleta de alimento estabelecida ainda na Idade da Pedra. [...]

Bem longe, ao sul, igualmente alheios ao contato com o mundo exterior e espalhados esparsamente pelo continente inóspito, os povos nativos da Austrália praticavam um estilo de vida móvel de caça e coleta que pouco mudara em relação aos seus ancestrais de 3 mil anos antes.

A norte e a leste da Austrália, centenas de ilhas que em 4000 a.C. ainda não haviam testemunhado nenhuma pegada humana agora abrigavam povoamentos permanentes. Durante um período de 2 mil anos, começando por volta de 3000 a.C., o oceano Pacífico fora cenário de uma assombrosa sucessão de viagens feitas pelos ancestrais dos povos que hoje classificamos como micronésios e polinésios. [...] Em 1000 a.C., suas aldeias de pescadores e agricultores cobriam quase a totalidade do Pacífico oeste [...].

No outro lado do Pacífico, os descendentes dos colonizadores originais das Américas haviam prosperado e se multiplicado. A maioria deles ainda seguia um estilo de vida caçador-coletor [...]. A região possuía [...] diversas plantas silvestres comestíveis [...], incluindo milho, abóbora e feijão. [...] 


A cultura mais notável da América Central em 1000 a.C. foi a dos olmecas, que viveram na costa meridional do golfo do México. [...] Como outras sociedades agrícolas maduras, esse povo começou a realizar comércio de longa distância. Os mercadores que o operavam - negociavam até mesmo bens preciosos como jade, obsidiana e sementes de cacau - viviam em vilas. [...] elas abrigavam impressionantes centros cerimoniais e templos, adornados com magníficas esculturas de pedra. A grande era da cultura olmeca durou quinhentos anos, de 1300 a.C. a mais ou menos 800 a.C., mas sua arte e religião, incluindo o culto ao jaguar, e a construção de pirâmides exerceram uma poderosa influência em civilizações posteriores, até nos astecas do século XVI.


Três mil quilômetros ao sul, no Peru dos dias atuais, outro sistema de agricultura altamente individualizado se desenvolvera no altiplano Andino, onde a natureza reunira um rico conjunto de plantas e animais muito fáceis de domesticar. [...] As plantas utilizadas eram um cereal - a quinoa - e a batata, que viria a se tornar um dos cultivos para fins alimentícios mais importantes do mundo. Seus animais incluíam a cobaia e três membros da família do camelo, a alpaca, o guanaco e a lhama, que forneciam leite, carne e lã e desempenhavam um papel vital como animais de carga.


AYDON, Cyril. A história do homem: uma introdução a 150 mil anos de história humana. Rio de Janeiro: Record, 2011. p. 79-84.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Brasil: Religiosidades na Colônia

Negras novas a caminho da igreja para o batismo,  Jean Baptiste Debret

O Brasil nasceu à sombra da cruz. Não apenas da que foi plantada na praia do litoral baiano, para atestar o domínio português, ou da que lhe deu nome - Terra de Santa Cruz -, mas da que unia Igreja e Império, religião e poder. Mais. Essa era uma época em que viver fora do seio de uma religião parecia impossível. A religião era uma forma de identidade, de inserção num grupo social - numa irmandade ou confraria, por exemplo - ou no mundo. A colonização das almas indígenas não se deu apenas porque o nativo era potencial força de trabalho a ser explorada, mas, também, porque os índios não tinham "conhecimento algum do seu Criador, nem de cousa do Céu". Isso foi fundamental para dar uma característica de missão à presença de homens da Igreja na América portuguesa. [...]

O zelo fanático em extirpar idolatrias e heresias, num momento delicado em que católicos e protestantes se digladiavam pela hegemonia religiosa no Velho Mundo, somou-se à necessidade de pregar a palavra de Deus, evangelizando, catequizando e impondo ideias. "Todos temem e todos obedecem e se fazem adeptos para receber a fé", registrava, no século XVI, o jesuíta Antonio Blasques. [...]

Os primeiros religiosos a desembarcar entre nós foram oito franciscanos membros de importante ordem estabelecida, há tempos, em Portugal. Sua presença como capelães de bordo na navegação portuguesa era comum, mas sua participação na evangelização do gentio ou nas práticas religiosas de colonos só ganha envergadura a partir de 1580, quando da conquista da Paraíba. Junto a eles, multiplicaram-se carmelitas e beneditinos. Papel bem mais relevante, contudo, teriam os jesuítas. Vindo com Mem de Sá em 1549, o primeiro grupo era composto por seis missionários da recém-fundada Companhia de Jesus, liderados por Manuel da Nóbrega [...]. Sua primeira providência? A organização de uma escola que, como outras que se seguiram, consistia na base da missão. Um ano mais tarde, chegavam mais padres acompanhados de "órfãos de Lisboa, moços perdidos, ladrões e maus", que teriam papel relevante, embora anônimo, nos projetos da Companhia. Chamados "meninos-língua", cabia-lhes aprender o tupi-guarani, tendo como tarefa a conversão das crianças nativas. [...]

As cartas escritas pelos padres jesuítas a seus superiores na Europa revelam como transcorria o cotidiano nas missões onde se juntavam padres e indígenas. [...] A clientela era feita de filhos de índios e mestiços, acrescida, de tempos em tempos, de um "principal", ou seja, um chefe. As atividades consistiam em recitar juntas, na igreja, ladainhas ou Salve-Rainha. Nas sextas-feiras, disciplinavam-se em cerimônias de autoflagelação e, com o corpo coberto de sangue, saíam em procissão. Cantavam hinos [...] e revezavam-se entre aulas de flauta e canto. [...] Confessavam-se de oito em oito dias e todas as tardes saíam para caçar e pescar, pois não havia qualquer forma regular de aprovisionamento. A alimentação baseava-se na "farinha-de-pau" (nome dado à farinha de mandioca) e na caça [...]. O pescado era considerado "gostoso", e o cardápio engrossado por legumes, favas, folhas de mostarda e abóbora, e "em lugar de vinho [...] milho cozido em água a que se ajunta mel". As meninas indígenas eram ensinadas a tecer e fiar algodão, capaz de vestir os jovens nus. O tempo livre das crianças ficava por conta do banho de rio ou de "ver correr as argolinhas", brinquedo, segundo Nóbrega, importado de Portugal. [...] As atividades físicas mais simples impregnavam-se de cantos e danças nos quais a cultura indígena se impunha. Em festas de aldeamentos, os meninos levantavam-se à noite para a seu modo cantar e dançar "com taquaras que são canos grossos que dão no chão e com o som que fazem, cantam e com as maracas que são umas frutas, umas cascas como cocos furados por onde deitam pedrinhas dentro". A sensibilidade musical do indígena fazia crer aos jesuítas que, "tocando e cantando entre eles, os ganharíamos" [...] anotava Nóbrega, não haveria cacique que recusasse seus filhos à escola jesuítica. Nos batismos em grupo, os meninos índios eram vestidos com "roupas brancas, flores na cabeça e palmas na mão", sinal da vitória que teriam alcançado contra o Demônio.

Até 1580, os jesuítas procediam como uma espécie de missionários oficiais da Coroa. A anexação de Portugal à Espanha, no período da União Ibérica (1580-1640), mudou, contudo, essa hegemonia, inaugurando-se o ingresso de outras ordens religiosas ao Brasil. Os franciscanos destacaram-se por seguir a ocupação do litoral nordestino, do Rio Grande do Norte a Alagoas. Unidos aos senhores do açúcar, desenvolviam sua ação dentro das capelas de engenhos, rezando missas, realizando batismos e casamentos comunitários, abençoando as moendas e os animais. Acompanharam os bandeirantes em suas expedições de apresamento de índios e, ao contrário dos jesuítas, situaram-se mais do lado do branco do que do índio. Nas expedições oficiais para a conquista da Paraíba, por exemplo, jamais apoiaram tabajaras e potiguares, e entre 1588 e 1591 começaram a estabelecer-se em conventos, lado a lado com beneditinos e carmelitas.

Instalados ao final do século XVI em Olinda, os carmelitas ensinavam teologia e língua brasílica, ou seja, o tupi, e daí enviaram seus missionários Brasil afora. Foram vigorosos defensores dos interesses portugueses na Amazônia, perdendo rapidamente o interesse pelo caráter missionário e investindo nas relações com as populações de vilas interessadas no comércio de especiarias, como o cacau. Mais dedicados à vida contemplativa do que a qualquer outra atividade, os beneditinos pertenciam, por sua vez, a uma ordem rica, possuidora de inúmeros imóveis e fazendas sustentadas por escravos. [...]

À medida que a colonização, a fome e as guerras dizimavam os índios do litoral e que os negros africanos, chegados para o trabalho nos engenhos, eram catequizados em massa - sem que nenhuma autoridade religiosa argumentasse contra sua escravização -, os movimentos missionários se deslocavam para o interior da Colônia à procura de novas almas. Nos sertões do rio São Francisco, capuchinhos franceses, aliados das reformas propostas pelo Concílio de Trento, e oratorianos italianos, muito voltados para as práticas piedosas de orações e devoções, tiveram destacada atuação. [...] Suas missões lhes permitiram estar mais próximos do povo humilde que habitava, disperso e sem auxílio, as ermas vastidões do interior.

Mas havia muitos espinhos nos caminhos da evangelização. Os conflitos entre leigos e o clero se sucediam. Os mais importantes deram-se em torno da escravização dos indígenas, verdadeira pedra no sapato - ou melhor, nas alpargatas - dos padres que desejavam a catequese e a conversão do gentio. Desde o século XVI, a Companhia de Jesus conseguiu que o governo proibisse a escravização dos nativos. Todavia, grupos importantes de plantadores de cana, donos de engenhos e, posteriormente, bandeirantes que obtinham grandes lucros com a escravização dos "negros da terra" consideravam sua proteção uma ruína para a Colônia. Eles não apenas insistiam junto às autoridades do Reino para que estas lhes concedessem liberdade para usar o trabalho compulsório dos índios, como também, através de pressões e ameaças, retardaram, o quanto puderam, a supressão da escravatura. [...]


[...]


Em relação às demais populações católicas, um importante espaço de práticas religiosas para homens e mulheres coloniais eram as irmandades ou confrarias. Associações de caráter local, tais instituições auxiliavam a ação da Igreja e promoviam a vida social, desempenhando tarefas que, muitas vezes, deveriam caber ao tão ausente governo português: fundação e manutenção de seminários de meninos pobres, de hospitais e recolhimentos de órfãos. Sua finalidade específica era promover a devoção a um santo. Em torno de festas, do culto e da capela do mesmo, um grupo de pessoas, fossem brancos, mulatos ou negros, se organizava. O que caracterizava a irmandade era justamente a participação de leigos no culto católico [...]. Confrarias e irmandades demonstravam toda a força por ocasião da festa do padroeiro: ruas e igrejas eram decoradas com tapetes e ervas perfumadas, e iluminadas por tijelinhas de barro cheias de óleo de baleia. Irmãos de opa vermelha, tocheiros à mão, abriam a procissão, seguida de carros alegóricos ricamente enfeitados, atrás dos quais volteavam músicos e bailarinos. A diversidade de instrumentos musicais não ficava atrás da pompa coreográfica dos cortejos. Ritmos profanos e peças sacras se mesclavam à sonoridade dos batuques africanos. Músicos negros vestidos de seda e cobertos de plumas, tocando címbalos, pífaros e trombetas, misturavam-se a brancos tocadores de clarins e charamelas. Uma imensa variedade de sons rasgava o ar, enquanto fiéis, piedosamente, desfilavam os estandartes e as imagens religiosas.


Seguindo o costume português, a vida doméstica também consistia em importante espaço espiritual. Nas paredes das casas de moradia, era comum encontrarem-se cruzes de madeira, gravuras do anjo da guarda ou do santo onomástico. [...] Ao levantar-se, pela manhã, o cristão benzia-se murmurando o Pelo Sinal. Oratórios, ou quartos de santos, eram iluminados por lâmpadas votivas que queimavam diuturnamente e onde as imagens eram vestidas e adornadas pelas mulheres. Flores naturais ou de papel, palhas bentas no Domingo de Ramos, medalhas milagrosas, escapulários e livros de oração compunham o arsenal do devoto na luta contra Satã. [...] Santos de estimação, como, por exemplo, Santo Antônio, eram invocados para interceder em favor do fiel em caso de escravos fugidos, cavalos extraviados ou roubos. As solteiras costumavam invocá-lo para arranjar maridos [...]. Orações em que se nomeavam os santos, Jesus ou Maria eram usadas por benzedeiras e curandeiras para aliviar as dores, feridas e maleitas dos fiéis [...].


Além do catolicismo, a Colônia foi palco de outros credos e práticas religiosas. Descendentes de judeus, por exemplo, buscaram refúgio nessas terras, que lhes pareciam de promissão. O movimento migratório começara em inícios do século XVI em função de perseguições que lhes eram movidas na península Ibérica. Instalados sobretudo na Bahia, em Pernambuco e no Maranhão, os recém-chegados integravam-se rapidamente à língua, aos costumes e à economia local, misturando-se aos cristãos, com quem dividiam cargos administrativos, burocráticos e comerciais. Os cristãos-novos, nome que se dava aos convertidos, detinham engenhos, escravos e terras. Para manter vivos os laços comunitários e de identificação, realizavam clandestinamente práticas e atos religiosos do judaísmo, mesmo que sob a ameaça da Inquisição. Mas como é que se fazia presente na Colônia?


Espécie de justiça ambulante, as visitas de inquisidores - realizadas em 1591, 1618 e 1627, ao Nordeste, e de 1763 a 1769, ao Pará - tinham por objetivo combater as heresias e zelar pela fé e boa moral dos católicos. Nesse quadro, ritos, preceitos ou cerimônias judaicas eram alvo dos monitórios gerais, ou seja, um documento eclesiástico com aviso aos fiéis que descrevia minuciosamente tais ritos e era afixado às portas das igrejas. Pequenos atos do cotidiano serviam para indicar judaísmo. Guardar os sábados, por exemplo, revelava-se através do hábito de vestir roupas limpas e arrumar a casa de véspera - limpar e cozer alimentos, acender candeeiros etc. - para que não houvesse necessidade de trabalhar nesse dia. [...] Enterravam os mortos em mortalha nova e terra virgem [...]. Os meninos eram circuncidados. Mesmo não seguindo as práticas judaicas de modo inteiramente consciente, os cristãos-novos conservavam a essência de sua cultura original. Repudiavam as imagens dos santos que enfeitavam os oratórios, consideravam a religião católica uma idolatria, esquivavam-se do sacramento da confissão [...].


Ao contrário dos cristãos-novos, os judeus que se instalaram em Pernambuco quando da invasão holandesa, de 1630 a 1654, encontraram melhores condições para exercer sua religiosidade. Concentrados numa rua do Recife, a Jodenstraat (rua dos judeus), aí construíram a sinagoga da comunidade Zur Israel: uma casa de muitas janelas, com o térreo ocupado por duas lojas, tendo no andar de cima uma ampla sala mobiliada para utilização religiosa. Ao rabino [...] Isaac Aboab da Fonseca, devem-se as primeiras páginas literárias, em hebraico, escritas no Brasil: um poema que descreve os sofrimentos suportados pelos judeus em 1646, quando Recife ficou sitiado pelos luso-brasileiros.


O protestantismo teve, entre nós, dois momentos marcantes. O primeiro vai de 1555 a 1560, quando chega à baia de Guanabara o vice-almirante francês Nicolau Durand de Villegaignon, para fundar [...] uma colônia, a França Antártica, com franceses calvinistas (huguenotes), hostilizados em sua terra. O segundo [...] foi o da colonização holandesa no Nordeste. [...]


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[...] Sob a regência de Maurício de Nassau, o domínio holandês estendeu-se temporariamente do Maranhão até abaixo do rio São Francisco. Nesse governo, a liberdade religiosa era para todos. Católicos eram livres para exercer seu culto e manter relações com a sede episcopal da Bahia. Sinagogas e escolas hebraicas funcionaram no Recife e foram as primeiras da América. O protestantismo, considerado a verdadeira religião, lutava para instalar-se no Brasil. A chave para sua compreensão era a subordinação de todos os aspectos da vida aos sagrados mandamentos. [...]


Os africanos também trouxeram seus credos para a América portuguesa. Entre eles, cerimônias religiosas como o acotundá, o candomblé e o calundu, além de cultos envolvendo os mortos, corriqueiramente praticados. Em casas humildes, cobertas de capim, de paredes de barro, preferencialmente à beira de um córrego ou de uma fonte, celebrava-se a dança de tunda ou acotundá. Altares com banquetas de ferro, onde se misturavam ordenadamente cabaças, panelas e recipientes variados de barro e imagens antropomorfas, sinalizavam o espaço sagrado. O som de tambores e atabaques, e cantos, no dialeto courá, da Costa da Mina, enchiam a noite. Vindas das camarinhas, mulheres vestidas com panos brancos [...] dançavam e cantavam [...].


Havia ainda outras formas de religiosidade africana. Vindos do Daomé, atual Benin, na costa ocidental da África, rituais de origem jeje conhecidas como calundus eram conduzidos, na Colônia, por um vodunô, líder espiritual [...]; o ritual consistia em danças e cantos na língua jeje, ao som de ferrinhos (agogôs e gans) e atabaques. O centro da cerimônia abrigava ervas, búzios e aguardente. Folhas de diversas plantas serviam na preparação de alimentos oferecidos às divindades, os ebós, mas também em rituais de iniciação e limpeza do corpo. Um sentido para a vida, segurança e proteção contra um mundo hostil, espaço para sensibilidades e solidariedades eram as funções desses rituais religiosos. Dessa maneira, a Colônia crescia à sombra da cruz e de vários credos que ainda hoje hidratam nossa cultura.


PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 36-49.