"Os espelhos estão cheios de gente.
Os invisíveis nos vêem.
Os esquecidos se lembram de nós.
Quando nos vemos, os vemos.
Quando nos vamos, se vão?"
Eduardo Galeano: Espelhos

segunda-feira, 21 de março de 2011

Guernica: símbolo da opressão e da violência políticas

Guernica, Pablo Picasso

Picasso foi definitivo: "Gritos das crianças, gritos das mulheres, gritos dos pássaros, gritos das flores, gritos das camas, gritos das árvores e pedras, gritos dos tijolos, dos móveis, dos carros, das cadeiras, dos cortinados, das panelas, dos gatos e do papel, gritos dos cheiros, que se propagam um após o outro, gritos do fumo, que pica nos ombros, gritos que cozem na grande caldeira, e da chuva de pássaros que inundam o ar."

(Este poema, criado pelo artista, descreve os horrores vistos no quadro. A cidade de Guernica ficou em chamas após sucessivos ataques a bombas e metralhadoras. Seu pincel não se calou diante do ocorrido. Na tela, Picasso deposita toda sua consternação. A obra, ainda atual, está presente na memória artística da humanidade.)

Localizada numa região montanhosa, Guernica era uma cidade basca cuja população não passava de 7 mil habitantes. No dia 26 de abril de 1937, a cidade foi totalmente destruída por um bombardeio da força aérea alemã, que apoiava as forças do general Franco. Para o governo nazista da Alemanha, tratava-se de um teste: seu objetivo era observar os efeitos devastadores do bombardeio. Guernica era um ensaio para os ataques aéreos da Segunda Guerra Mundial.

Indignado com essa cruel experiência que acabou com a vida de centenas de pessoas e destruiu mais de 75% das casas da pequena cidade, o pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973) retratou os horrores do bombardeio num quadro que é hoje sua obra mais conhecida: Guernica.

O quadro, que mede 8 metros de largura por 3,5 metros de altura, tornou-se um símbolo contra as ditaduras e as guerras. O cavalo caído, derrotado, o guerreiro esquartejado, a mãe que clama com seu filho morto nos braços, a flor que nasce de uma mão sem vida, uma espada quebrada - são todos símbolos das vítimas da opressão e da violência política.

Atualmente esse quadro encontra-se em Madri, mas ficou cerca de trinta anos nos Estados Unidos, pois Picasso tinha determinado que Guernica retornasse à Espanha apenas quando terminasse a ditadura de Franco.

Picasso não chegou a ver sua pintura admirada pela população espanhola, já que o fim do regime franquista ocorreu somente em 1975, dois anos após a morte do artista.

A seguir, leia o depoimento do prefeito de Guernica após sua cidade ter sido bombardeada pelos nazistas, durante a Guerra Civil Espanhola:

Em pé, diante desses microfones, quero contar o que os meus olhos viram no lugar do que já foi Guernica, e tomo Deus como testemunha:

Envergonhados pelo monstruoso crime que cometeram, os rebeldes [seguidores de Franco] apelam para a falsidade para camuflar, para negar o mais vil das proezas da história, a total e absoluta destruição da cidade de Guernica.

Aquele dia fatal, 26 de abril, era dia de mercado e a cidade estava cheia de gente. Em Guernica havia milhares de camponeses de toda a vizinhança, numa atmosfera de camaradagem basca, e ninguém suspeitaria de que uma tragédia se aproximava.

Pouco depois das 4 da tarde, aviões jogaram nove bombas no centro da cidade.Procurávamos os feridos, quando mais aviões surgiram, jogando todo tipo de bombas, incendiárias e explosivas.

As feras que pilotavam tais aviões, lovo que avistavam nas ruas ou fora da cidade uma figura humana, focalizavam nela suas metralhadoras, semeando terror e morte, entre mulheres, crianças e velhos. Tal foi a tragédia de Guernica, cuja verdade eu, prefeito da cidade, afirmo diante do mundo inteiro.

A milícia estacionada em Guernica, naquele dia, era exatamente a mesma que havia confraternizado todos esses meses com o povo de Guernica, ganhando sua afeição. Foi a primeira a prestar auxílio naqueles momentos terríveis. Não foi nossa milícia que ateou fogo a Guernica, e, se o juramento de um alcaide cristão e basco tem algum valor, juro diante de Deus e da história que aviões alemães bombardearam cruelmente nossa cidade até riscá-la do mapa.

Guernica foi ferida, mas não morrerá. Da árvore brotarão novas folhas verdes em toda a primavera: seus filhos a ela retornarão, suas casas sendo reconstruídas, suas igrejas escutando novamente seus hinos e preces [...] Guernica, o símbolo de nossas liberdades nacionais, e o símbolo da ferocidade do fascismo internacional, não pode morrer.

(Declaração do prefeito de Guernica ao povo espanhol sobre a acusação dos rebeldes franquistas de que essa cidade basca tinha sido destruída pelos próprios republicanos, 4 de maio 1937. História do século XX. São Paulo: Abril, 1974. v. IV. p. 1 942.

Os jovens e a Primeira Guerra Mundial

Soldados em uma trincheira durante a Primeira Guerra Mundial

[Texto 1] Muitos historiadores têm chamado a atenção para a atmosfera que por toda a Europa em 1914 promovia uma mentalidade bélica, e para a excitação gerada pela declaração de guerra. Em agosto de 1914, os jovens clamavam por serem convocados. Não só na Alemanha, mas também na Grã-Bretanha, na França e na Rússia, considerava-se que a guerra oferecia uma fuga pitoresca de uma vida aborrecida, dando oportunidade ao heroísmo individual e aos atos de rebelde bravura. Nas décadas anteriores a 1914, a educação se difundira por toda a Europa, e com ela chegaram os jornais populares e a ficção romântica escapista. A guerra foi popularizada por essa literatura como uma força positiva que podia promover a disciplina, a lealdade e a camaradagem. Os jovens liam contos épicos sobre feitos heróicos na fronteira noroeste, sobre lutas na floresta para disseminar a civilização e o cristianismo, e sobre batalhas contra os índios nas fronteiras do oeste selvagem. [...]

Ao mesmo tempo, a imprensa popular tinha um tom xenófobo e apressava-se em promover os interesses do governo nacional em face dos desafios estrangeiros. As teorias da evolução e as noções populares a respeito da sobrevivência dos mais aptos derramavam-se sobre o pensamento nacionalista. Os países precisavam expandir sua influência, ou entrariam em decadência. As nações brancas deviam levar as luzes para os zulus, os hindus e os chineses, e o poder exercido sobre povos não-europeus acrescia prestígio e status perante outras grandes potências. Havia uma competição aguda entre todas as grandes potências europeias pela influência e domínio sobre o mundo menos civilizado, por motivos tanto políticos quanto econômicos. Como comentou em 1901 lorde Curzon, vice-rei britânico na Índia, posteriormente ministro do Exterior: "se perdermos [a Índia], passaremos diretamente a uma potência de terceira categoria". E era apavorante demais a expectativa das consequências de uma perda tão catastrófica do status de grande potência. [...]

Os países entraram em guerra porque acreditavam que podiam conseguir melhores resultados por meio da guerra do que por negociações diplomáticas, e achavam que, se permanecessem de fora, seu status de grandes potências seria gravemente abalado. Esse foi seu maior equívoco. O balanço final em 1918 mostrou o quão errados estavam naquele momento, o status de todas as maiores potências da Europa se havia reduzido substancialmente e praticamente nenhum dos objetivos das elites governantes europeias se concretizara. Ruth Heing. As origens da Primeira Guerra Mundial. São Paulo: Ática, 1991. p. 65-70.

[Texto 2] A Primeira Guerra Mundial fez muitas vítimas, entre elas muitos jovens, civis e militares. Leia o poema do soldado L. S. Flint:


Os jovens do mundo
Foram condenados à morte.
Eles foram convocados a morrer
Pelo crime dos seus pais.

Os jovens do mundo
Os frutos que crescem e amadurecem,
Foram arrancados de seus galhos [...]
e foram destinados a um fim cruel
No triturador e na fornalha.

Os jovens do mundo
Não mais possuem a estrada:
A estrada os possui.
Eles não mais herdarão a terra:
A terra os herdou.
Eles não são mais os mestres do fogo:
O fogo tornou-se seu mestre;
Eles o servem, ele os destrói. [...]

Os jovens do mundo
Foram envolvidos pela morte
Que os cerca por toda parte
Num círculo de fogo e baionetas. [...]

Nicolau Sevcenko. O impacto da grande guerra e os clamores pela nova ordem. Em: D. O. Leituras. São Paulo, imprensa Oficial do Estado, jan./fev. 2002.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Pompeia: uma cidade congelada no tempo

Vila dos Mistérios, Pompeia

[Texto 1] À uma hora da tarde de um dia de verão, segundo o testemunho de Plínio, o Jovem, o Monte Vesúvio entrou em erupção, vomitando lava e cinzas sobre as cidades de Pompeia e Herculano. Um cogumelo de nuvem negra se elevou a vinte quilômetros de altura. Ao fim do dia seguinte, uma camada de seis metros de cinza e pedra-pomes cobria os habitantes da cidade. Ficaram cobertos - esquecidos - por 1.700 anos, preservando uma incrível quantidade de artefatos, mosaicos e murais praticamente intactos.

Venda de pão, Pompeia

Pompeia era uma cidade luxuosa, com uma população de 25 mil habitantes. As escavações científicas, iniciadas em meados do século XIX, revelaram não só objetos triviais como fatias de pão, peixe, ovos e nozes (do almoço abandonado por um sacerdote), mas também residências inteiras com pinturas de naturezas-mortas e paisagens realistas em todas as paredes. Como as casas não tinham janelas, mas se abriam para um pátio central, os romanos antigos pintavam janelas de faz-de-conta "se abrindo" para cenas requintadas. Esse estilo de pintura em paredes abrangia desde simples imitações de mármore colorido até cenas trompe l'oeil de complexos panoramas urbanos, como se fossem vistos através das janelas imaginárias emolduradas por colunas imaginárias. Os artistas dominavam as técnicas da perspectiva e dos efeitos de luz e sombra, desconhecidos no mundo da arte. As paredes resplandeciam com vívidos painéis em vermelho, ocre e verde.

Templo de Ísis, Pompeia

Mosaicos montados com pedacinhos de pedras coloridas, vidro ou conchas (chamadas tésseras) revestiam paredes, tetos e chão. Muitos eram figuras bastante confusas. Num deles, um olho medindo quatro centímetros foi composto com cinquenta cubinhos minúsculos. Era comum ver-se o mosaico de um cachorro nas entradas das casas, com a inscrição Cave Canem (Cuidado com o Cão). STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. p. 19.

Cave Canem, mosaico, Pompeia

[Texto 2] Surpreendida pela erupção do Vesúvio, um vulcão considerado extinto, a cidade de Pompeia, próspero centro comercial no golfo de Nápoles, ao sul da península itálica, foi afogada por torrentes de lava, fragmentos sólidos e gases tóxicos no dia 24 de agosto de 79 d.C. Era de manhã, a população começava a trabalhar e os fornos das padarias assavam o pão. Em dois dias, mais de 2 mil pessoas, cerca de 10% dos habitantes locais, morreram naquele mar de fogo. Ruas e casas ficaram cobertas por um extrato de cinza e depósitos vulcânicos que mediam aproximadamente 6 metros de altura. A mesma tragédia fulminou as vizinhas cidades de Herculano e Stabia.


Cena de jardim, Pompeia

Por muito tempo os vestígios de Pompeia continuaram soterrados. No século XVI, os operários que abriam um túnel na montanha La Civita, para a construção de um aqueduto, encontraram as ruínas da cidade. Mas as escavações ainda demoraram 150 anos para começar. Iniciaram em Herculano, achando um grupo de estátuas de mármore e outras preciosidades históricas. A seguir, aconteceram em Pompeia, onde localizaram relíquias petrificadas: os cadáveres de uma mãe e do filho amamentado por ela; um cão preso na corrente; três jovens que fugiam desesperados da Vila dos Mistérios. As descobertas emocionaram o mundo e influíram a arte neoclássica do século XVIII.


Músico com harpa e cítara, Pompeia

Veio à tona uma cidade inanimada, dramaticamente parada no tempo. Emergiram ruas, praças, templos, termas públicas, tavernas, quitandas, residências de ricos e pobres, estátuas e afrescos, objetos variados ligados ao vinho e à cozinha. Os estudiosos passaram a dispor de subsídios não só para a reconstituição da vida numa comunidade antiga, mas na própria Roma imperial.


Cena erótica, Casa del Centenario, Pompeia

Conseguiram imaginar até o que seus 20 mil habitantes comiam. Um dos trabalhos mais interessantes foi feito pela italiana Eugenia Salza Prina Ricotti.


Jogadores de dados, Osteria della Via di Mercurio, Pompeia

Segundo ela, a população da cidade levantava muito cedo, pois orientava a vida pelo relógio solar. O café da manhã era à base de pão, carne e queijo. Ao meio-dia havia uma refeição leve. Às três ou quatro da tarde, após eventuais escalas nas termas públicas, aliás bastante frequentadas, os habitantes se entregavam à ceia, sempre com pratos substanciosos. Era a refeição principal do dia, como sucedia em todo o Império Romano. Comia-se de tudo, especialmente azeitonas, avelãs, nozes, tâmaras e frutas secas, lentilha, grão-de-bico, cevadinha e trigo - com o qual se preparava uma primitiva polenta. Faziam sucesso sopas, ensopados, cozidos, grelhados e assados, do mar ou da terra. Havia gelados com neve do jardim ou das montanhas. Bebia-se muito vinho, produto crucial no comércio de Pompeia, geralmente diluído em água fria ou quente, algo costumeiro na época. Adaptado de: "A cozinha que o Vesúvio destruiu". Estadão. 08/09/2002.


Natureza morta, Pompeia

[Texto 3] Em Pompeia e Herculano, os afrescos e os mosaicos decoram a maioria das casas particulares e das lojas. Refinadas ou populares, as pinturas têm inúmeras fontes de inspiração. Os temas ligados à cozinha - alimentos, artesãos (padeiros) e mercadores, preparação das refeições, como também tabernas e banquetes - são abundantemente representados.


Natureza morta, Casa de Julia Felix, Pompeia

Os romanos atribuem, com efeito, grande importância à escolha de alimentos de qualidade e à sua preparação. Do levantar ao meio-dia, eles se contentam com uma alimentação frugal, pão, queijo, azeitonas e uma fruta. Sua única verdadeira refeição é o jantar (a ceia), tomada no final da tarde. Para os habitantes de Pompeia, que vivem em alojamentos coletivos desprovidos de fogões, as tabernas abertas na rua oferecem alimentos quentes para levar, salsichas, caldo de ervilhas e variedades de salgados. Nas famílias mais abastadas, a cena é tomada no triclinium (sala de jantar): a mesa (ou as mesas) sobre o qual os criados põem os pratos é cercada por sofás-camas em que se recostam os convivas. Os cozinheiros, muitas vezes comprados a preço de ouro, têm a arte de temperar carnes e peixes com especiarias de origem italiana (funcho, cominho, hortelã) ou exótica (pimenta, gengibre), e com condimentos, dentre os quais o mais requisitado é o garum, à base de intestinos de peixes. Eles se esmeram também para encontrar mercadorias excepcionais como ostras, certos peixes, crustáceos ou carne de caça proveniente de regiões remotas. SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas: das Bacanais a Ravena (o Império Romano do Ocidente. São Paulo: Larousse, 2008. p. 266.

terça-feira, 15 de março de 2011

A vida cotidiana no Brasil holandês

Vista da cidade Maurícia e Recife, 1657, Frans Post
À época da ocupação holandesa, Recife já era uma cidade grande comparada com o restante do Brasil colonial. Sua população - 6000 habitantes, aproximadamente - era formada por gente vinda dos quatro cantos do planeta. Além de comerciantes das mais diversas origens, havia soldados mercenários de várias nacionalidades a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, principalmente franceses, ingleses e alemães. Os soldados e comerciantes franceses formavam uma comunidade à parte; na maioria protestantes, fundaram, na Cidade Maurícia, uma igreja francesa. Muitos escoceses faziam o comércio ambulante. Entre os alemães, além de militares, havia cientistas ilustres, como o naturalista Georg Marcgraf, [...].

Os judeus, bastante numerosos, ocupavam uma posição especial nesse mosaico de povos. Muitos deles eram descendentes de famílias que durante séculos haviam habitado a península Ibérica e, perseguidas pela Inquisição, fugiram para a Holanda. Falando fluentemente holandês e português, serviam de intérpretes entre os luso-brasileiros e os invasores. A maioria vivia do comércio de açúcar ou de escravos. Tinham uma rua, a Jodenstraat (rua dos Judeus), e um cemitério fora da cidade. Como em outras épocas e lugares, a acusação de monopolizarem o comércio deu margem a violentas manifestações anti-semitas em Recife a partir de 1637.

* Costumes protestantes. Comerciantes requintados, os holandeses - assim como outros europeus - mostravam-se chocados com o "primitivismo" dos costumes da comunidade luso-brasileira. [...] Criticavam também o rude despojamento das casas portuguesas, bem como a pobreza da alimentação. No dia-a-dia, conta um viajante, "um pouco de farinha e um peixinho seco" era tudo que aparecia na mesa lusitana. Galinhas, perus, leitões e carneiros eram reservados para receber visitas ou para os dias de festa.

Contudo, embora torcendo o nariz para os dotes físicos e as maneiras das mulheres do Brasil, os holandeses as desposaram com bastante frequência, chegando a adotar seus costumes e a religião católica. Houve também um bom número de casamentos de holandeses com índias. Já as uniões - ou pelo menos os casamentos - entre homens portugueses e mulheres holandesas parecem ter sido raras.

* A legendária farsa do boi voador. Além de grande, a Recife de Maurício de Nassau chegou a ser uma cidade mais ou menos confortável, em contraste com a precariedade da vida urbana por todo o Brasil do século XVII. As ruas pavimentadas, pontes e obras de saneamento feitas pelos holandeses melhoraram sensivelmente as condições de vida da população. E havia até algum divertimento por conta do conde. Ficaram famosas as cavalhadas que ele promoveu em 1641 na beira do Capibaribe. A farsa do boi voador também se tornou lendária: no dia da inauguração da ponte do Recife, os holandeses anunciaram que fariam um boi voar. Diante da multidão que veio ver o prodígio, fizeram aparecer primeiro um boi de verdade no alto de um sobrado. Depois, um couro de boi recheado de palha "sobrevoou" a assistência suspenso por cordas que, na escuridão da noite, não eram vistas pelo público.

Saga: a grande história do Brasil. São Paulo: Abril Cultural, 1981. v. 1. p. 216-217.

A vida nas ruas de Paris no século XVII

Visita com a avó, Louis Le Nain 

A Paris do século XVII se caracterizava pelo intenso movimento nas ruas e também por sua sujeira e mau cheiro. Acontecia de tudo nas estreitas e tortuosas ruas parisienses. Além disso, o espaço urbano era muito reduzido para abrigar tanta gente.

Todo tipo de ambulante - de vendedores de galinhas, patos e ovos, até amoladores de facas, engraxates, carpinteiros, sem esquecer os alfaiates, padeiros, artistas de várias modalidades, entre outros - circulava pelas ruas da cidade gritando o preço de suas mercadorias e serviços.

Muitas vezes a multidão tinha de dar passagem às charretes, o que fazia com que as pessoas se espremessem ainda mais. Sorte daquele que pudesse evitar a lama que era jogada pelas rodas das carroças dos camponeses, vindos do campo para vender seus produtos na cidade.

Outra façanha dos moradores de Paris: evitar as fezes, não só dos animais mas também das pessoas. É bom lembrar que naquela época as ruas eram desprovidas de calçadas e esgotos. Para completar, as casas não tinham banheiro nem sistema de esgotos. Água, só na casa dos nobres. O lixo era jogado pela janela. Azar daquele que por ali passasse.

À noite, nas ruas desertas, era muito arriscado circular (é bom ressaltar que a maioria das pessoas tinha a rua como único divertimento). A quantidade de miseráveis era tanto que os agentes do rei não conseguiam controlá-los. A fome aumentava ainda mais a revolta dessa gente.

O que fazer com tanta indigência? Para o poder real, o pobre era um delinquente em potencial, e o remédio para a pobreza não seria de ordem social e sim de ordem policial. Ou seja, cabia à polícia "limpar" a cidade e controlar os rebeldes. Como medida para isso, nas principais esquinas de Paris foram afixados cartazes com uma lei cujo princípio rezava: "É proibido mendigar pelas ruas" [o curioso é que em 1995 essa lei voltou a ter validade em alguns lugares da França, sobretudo em pontos turísticos de Paris]. Todo miserável poderia ser recolhido a um "albergue geral". Lá, ele ficava em regime de internato, o que na prática tornava o lugar uma espécie de penitenciária.

As batidas policiais, visando à prisão dos pedintes, eram feitas por uma brigada especialmente criada para essa finalidade. Uma vez no "albergue", o mendigo era forçado a trabalhar sem ser remunerado e dormia com mais quatro num pequeno colchão. Havia castigos impiedosos para o menor gesto de rebelião. As refeições eram compostas de pão, água e um pouco de sopa.

Adaptado de Nicolas Wintz e René Ponthus. La France de Louis XIV. Bruxelas: Casterman, 1989. p. 42-4.

segunda-feira, 14 de março de 2011

As mulheres na sociedade egípcia

Detalhe da pintura mural da tumba de Nebamun que mostra dançarinas e instrumentistas. c. 1350 a.C. 

Texto 1. Os relevos e pinturas dos túmulos fornecem imenso e importante material para estudar a vida cotidiana dos antigos egípcios. Apesar de os grandes túmulos terem pertencido apenas aos membros dos grupos sociais mais ricos, algumas cenas de seu interior permitem-nos lançar um olhar sobre o cotidiano de grande parte da população.

As informações transmitidas por estas cenas podem ser complementadas por objetos de uso diário, que eram muitas vezes sepultados com seus proprietários. Os textos literários e administrativos são também importantes.

Assim, é possível conhecer um pouco o papel das mulheres no Egito antigo analisando a decoração dos túmulos. Nessas cenas, a esposa ou a mãe do proprietário do túmulo têm maior destaque. Em geral, as duas aparecem vestidas de forma simples mas elegante, sentadas comodamente com o homem à mesa de oferendas. Por vezes, elas acompanham o homem quando ele observa cenas de trabalho.

No outro extremo, encontramos as mulheres ocupadas em trabalhos domésticos, fazendo pão e cerveja, fiando ou tecendo. São atividades feitas, provavelmente, em aposentos domésticos de uma casa mais rica.

A cor amarela da pele das mulheres indica, entre outras coisas, uma menor exposição ao sol do que a dos homens, representados com aparência mais avermelhada. Isso sugere uma reclusão maior da mulher.

É possível que não fosse seguro para elas se aventurarem pelos espaços externos. Um texto de Ramsés III afirma: "Tornei possível à mulher egípcia seguir o seu caminho, podendo as suas viagens prolongar-se até onde ela quiser, sem que qualquer outra pessoa a assalte na estrada", o que implica não ter sido sempre este o caso. 

Nos túmulos mais antigos as mulheres estão ausentes dos trabalhos de maior destaque e das diversões mais agradáveis. Para além das cenas de tocadoras de instrumentos e de dançarinas acrobáticas, o papel das mulheres nesse período parece ter sido muito restrito.

As mulheres não tinham quaisquer títulos importantes e, à exceção de alguns membros da família real e das rainhas, dispunham de pouco poder político.

O título que detinham em geral era o de senhora da casa. Quase todas eram analfabetas. (Adaptado de: BAINES, John; MÁLEK, Joromír. O mundo egípcio. Deuses, templos e faraós. Madrid: Edições del Prado, 1996. v. 2. p. 190-205.)

Modelo de mulher moendo grãos. 1º Período Intermediário - início do Reino Médio (2134-1991 a.C.)


Texto 2. O lugar da mulher no Egito Antigo é essencial. Para convencer-se disso é suficiente estudar a documentação desse período: desde estatuetas de terra ocre do Neolítico até os relevos que exaltam a beleza de Nefertiti, ou o encanto matizado de helenismo de Cleópatra. Os traços físicos sublinham as origens afro-asiáticas da população; as representações, os objetos e as inscrições comprovam o interesse atribuído à beleza, aos penteados, às vestimentas, aos cuidados do corpo e do gosto pelos perfumes preciosos.

A mulher tem um estatuto próximo ao do homem. Os textos jurídicos tratam do casamento, da gestão dos bens, sem esquecer o divórcio, o futuro do patrimônio dos filhos e as questões de herança. Mas, qualquer que seja sua posição social, a mulher é primeiramente uma dona de casa, que administra o cotidiano com seus imprevistos, vela pela manutenção corrente da casa, ocupa-se dos filhos, sem esquecer os pais idosos. Na alta sociedade, as esposas de funcionários administram a vida doméstica e, eventualmente, acolhem os hóspedes e preparam as festas. Como nas áreas rurais, a casa possui um bom número de criadas, cujos vínculos são bem diversos: da liberdade à completa servidão.

Na arte egípcia, encontram-se numerosas representações de mulheres nos trabalhos de artesanato - tecelãs de linho, padeiras etc. - bem como nos trabalhos dos campos. São representadas também como carregadoras de oferendas em procissões. Por último, encontram-se muitas "carpideiras", cujas lamentações acompanham a dor das famílias durante os dias que dura o ritual fúnebre. (SALLES, Catherine (dir.). Larousse das Civilizações Antigas 1: dos faraós à fundação de Roma. São Paulo: Larousse do Brasil, 2008. p. 66.)

Cena de banquete. Tebas, Reino Novo, XVIII dinastia, ca, 1400 a.C.

Texto 3. Em épocas posteriores a tradição realçou a sedução e a afabilidade das mulheres egípcias. Isto ajuda a nos dar a impressão de uma sociedade que lhes concedia maior independência e uma condição mais elevada do que a recebida pelas suas irmãs em outras civilizações. Deve-se atribuir certa importância a uma arte que representa as damas da Corte vestidas em belos e reveladores tecidos de linho, lindamente penteadas e adornadas de jóias, usando cosméticos cuidadosamente aplicados, cujo fornecimento merecia muita atenção dos mercadores egípcios. Não se deve dar peso excessivo a isto, mas até mesmo a impressão pictórica da maneira pela qual as egípcias da classe governante eram tratadas, é importante e revela dignidade e independência. Os faraós e as suas consortes – e outros casais nobres – são por vezes retratados também com uma intimidade de sentimentos não encontrada em parte alguma na arte do antigo Oriente Próximo antes do primeiro milênio antes de Cristo, sugerindo uma verdadeira igualdade emocional que dificilmente pode ser considerada acidental.

As belas e atraentes mulheres representadas em muitas pinturas e esculturas podem refletir um certo potencial político do seu sexo, inexistente em outros lugares. Na prática, muitas vezes o poder era transmitido pela linhagem feminina. Uma herdeira conferia ao marido o direito à sucessão: daí haver grande preocupação com o casamento das princesas. Muitos casamentos reais uniam irmão com irmã, aparentemente sem efeitos genéticos insatisfatórios; alguns faraós se casaram com suas próprias filhas, talvez mais para evitar que alguém se casasse com elas do que para garantir a continuidade do sangue real. Algumas consortes exerceram importante poder, e uma chegou até a ocupar o trono, fazendo questão de aparecer nos rituais com uma barba cerimonial postiça, usando roupa masculinas e adotando o título de faraó.

Também há muita presença feminina no panteão egípcio, notadamente no culto a Ísis, o que é sugestivo. A literatura e a arte enfatizam que o respeito pela esposa e pela mãe ultrapassava os limites da nobreza. Tanto as histórias de amor quanto as cenas da vida familiar destacam um erotismo suave, descontração e informalidade. Algumas mulheres sabiam ler e escrever, e há uma palavra egípcia para designar a mulher escriba, mas é claro que não havia muitas ocupações oferecidas à mulher fora do lar, exceto as de sacerdotisa ou prostituta. No entanto, as mulheres abastadas podiam dispor dos seus bens e os seus direitos legais parecem em muitos aspectos semelhantes aos das mulheres sumérias. (ROBERTS, J. M. O livro de ouro da história do mundo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p. 106-107.)

domingo, 13 de março de 2011

Tralhas domésticas indígenas


Os índios sabem aproveitar bem o material que encontram nos lugares onde vivem para fazer os objetos de que necessitam. Com matéria-prima animal, vegetal, pedra e argila, eles confeccionam tudo o que precisam no seu dia-a-dia.

Com a palha de várias espécies de palmeiras são trançados cestos de diferentes feitios e tamanhos, cestos para guardar e transportar alimentos, enfeites e outras tralhas. Também de palha são as peneiras, as esteiras, os abanos de fogo, o tipiti. Com fibras de palmeira ou de algodão são tecidas as redes de dormir.

Da argila são feitas as panelas, as tigelas e os potes para cozinhar, servir e guardar comida, fogareiros e tachas para torrar farinha e beiju.

Ossos e dentes de animais servem para fazer várias coisas. Os dentes afiados da cutia e de outros roedores viram buril para polir madeira. Os dentes do peixe-cachorro viram furadores. As conchas perfuradas viram raspadores. A queixada da piranha, com 14 dentinhos afiados, serve para serrar bambu. A pele de muitos bichos vira sacola de couro. Os cascos do jabuti e do tatu viram vasilha. A língua do pirarucu vira ralador de guaraná. Os ossos longos (fêmur e tíbia) dos animais viram pontas de lança, de flechas ou flautas.

De madeira são feitos os bancos, as colheres de pau, as pás de virar beiju, os pilões e os raladores de mandioca-brava incrustados com minúsculos dentes de pedra afiada.

Os frutos de algumas plantas, como o cabaceiro-amargoso ou a cuitezeira, servem para fazer cabaças, cuias, porongos, que são os pratos, os copos e as colheres dos índios. Também com eles se fazem os chocalhos que marcam o ritmo dos cantos e danças.

O que há de interessante nos objetos domésticos indígenas é que nenhum é exatamente igual ao outro, porque são todos feitos a mão e todos com muito capricho. Para fazer um simples ralador, um pilão ou uma pá de virar beiju os índios escolhem bem a madeira, esculpem-na com cuidado e enfeitam-na com desenhos pintados ou gravados.

Entre os índios, a pessoa que faz o objeto é a mesma que vai usá-lo. Daí o gosto que tem e o empenho que coloca na confecção do mais corriqueiro utensílio. A casa fica enfeitada e com o jeito do seu dono. Berta G. Ribeiro. Museu do Índio. Em: Divulgação científica para crianças, nº 3. Encarte de Ciência Hoje. Rio de Janeiro, SBPC, 6 (33), jul. 1987.

O fator Deus


O pensador, Auguste Rodin 

Algures na Índia. Uma fila de peças de artilharia em posição. Atado à boca de cada uma delas há um homem. No primeiro plano da fotografia um oficial britânico ergue a espada e vai dar ordem de fogo. Não dispomos de imagens do efeito dos disparos, mas até a mais obtusa das imaginações poderá “ver” cabeças e troncos dispersos pelo campo de tiro, restos sanguinolentos, vísceras, membros amputados. Os homens eram rebeldes.

Algures em Angola. Dois soldados portugueses levantam pelos braços um negro que talvez não esteja morto, outro soldado empunha um machete e prepara-se para lhe separar a cabeça do corpo. Esta é a primeira fotografia. Na segunda, desta vez há uma segunda fotografia, a cabeça já foi cortada, está espetada num pau, e os soldados riem. O negro era um guerrilheiro. Algures em Israel. Enquanto alguns soldados israelitas imobilizam um palestino, outro militar parte-lhe à martelada os ossos da mão direita. O palestino tinha atirado pedras. Estados Unidos da América do Norte, cidade de Nova York. Dois aviões comerciais norte-americanos, sequestrados por terroristas relacionados com o integrismo islâmico, lançam-se contra as torres do World Trade Center e deitam-nas abaixo.

Pelo mesmo processo um terceiro avião causa danos enormes no edifício do Pentágono, sede do poder bélico dos States. Os mortos, soterrados nos escombros, reduzidos a migalhas, volatilizados, contam-se por milhares.

As fotografias da Índia, de Angola e de Israel atiram-nos com o horror à cara, as vítimas são-nos mostradas no próprio instante da tortura, da agônica expectativa, da morte ignóbil. Em Nova York tudo pareceu irreal ao princípio, episódio repetido e sem novidade de mais uma catástrofe cinematográfica, realmente empolgante pelo grau de ilusão conseguido pelo engenheiro de efeitos especiais, mas limpo de estertores, de jorros de sangue, de carnes esmagadas, de ossos triturados, de merda. O horror, agachado como um animal imundo, esperou que saíssemos da estupefação para nos saltar à garganta. O horror disse pela primeira vez “aqui estou” quando aquelas pessoas saltaram para o vazio como se tivessem acabado de escolher uma morte que fosse sua. Agora o horror aparecerá a cada instante ao remover-se uma pedra, um pedaço de parede, uma chapa de alumínio retorcida, e será uma cabeça irreconhecível, um braço, uma perna, um abdômen desfeito, um tórax espalmado. Mas até mesmo isto é repetitivo e monótono, de certo modo já conhecido pelas imagens que nos chegaram daquele Ruanda-de-um-milhão-de-mortos, daquele Vietnã cozido a napalm, daquelas execuções em estádios cheios de gente, daqueles linchamentos e espancamentos daqueles soldados iraquianos sepultados vivos debaixo de toneladas de areia, daquelas bombas atômicas que arrasaram e calcinaram Hiroshima e Nagasaki, daqueles crematórios nazistas a vomitar cinzas, daqueles caminhões a despejar cadáveres como se de lixo se tratasse. De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. Já foi dito que as religiões, todas elas, sem exceção, nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana. Ao menos em sinal de respeito pela vida, deveríamos ter a coragem de proclamar em todas as circunstâncias esta verdade evidente e demonstrável, mas a maioria dos crentes de qualquer religião não só fingem ignorá-lo, como se levantam iracundos e intolerantes contra aqueles para quem Deus não é mais que um nome, nada mais que um nome, o nome que, por medo de morrer, lhe pusemos um dia e que viria a travar-nos o passo para uma humanização real. Em troca prometeram-nos paraísos e ameaçaram-nos com infernos, tão falsos uns como outros, insultos descarados a uma inteligência e a um sentido comum que tanto trabalho nos deram a criar. Disse Nietzsche que tudo seria permitido se Deus não existisse, e eu respondo que precisamente por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente o mais horrendo e cruel. Durante séculos a Inquisição foi, ela também, como hoje os talebãs, uma organização terrorista que se dedicou a interpretar perversamente textos sagrados que deveriam merecer o respeito de quem neles dizia crer, um monstruoso conúbio pactuado entre a religião e o Estado contra a liberdade de consciência e contra o mais humano dos direitos: o direito a dizer não, o direito à heresia, o direito a escolher outra coisa, que isso só a palavra heresia significa.

E, contudo, Deus está inocente. Inocente como algo que não existe, que não existiu nem existirá nunca, inocente de haver criado um universo inteiro para colocar nele seres capazes de cometer os maiores crimes para logo virem justificar-se dizendo que são celebrações do seu poder e da sua glória, enquanto os mortos se vão acumulando, estes das torres gêmeas de Nova York, e todos os outros que, em nome de um Deus tornado assassino pela vontade e pela ação dos homens, cobriram e teimam em cobrir de terror e sangue as páginas da história. Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou, mas o “fator Deus”, esse, está presente na vida como se efetivamente fosse o dono e o senhor dela. Não é um deus, mas o “fator Deus” o que se exibe nas notas de dólar e se mostra nos cartazes que pedem para a América (a dos Estados Unidos, não a outra…) a bênção divina. E foi o “fator Deus” em que o deus islâmico se transformou, que atirou contra as torres do World Trade Center os aviões da revolta contra os desprezos e da vingança contra as humilhações. Dir-se-á que um deus andou a semear ventos e que outro deus responde agora com tempestades. É possível, é mesmo certo. Mas não foram eles, pobres deuses sem culpa, foi o “fator Deus”, esse que é terrivelmente igual em todos os seres humanos onde quer que estejam e seja qual for a religião que professem, esse que tem intoxicado o pensamento e aberto as portas às intolerâncias mais sórdidas, esse que não respeita senão aquilo em que manda crer, esse que depois de presumir ter feito da besta um homem acabou por fazer do homem uma besta.

Ao leitor crente (de qualquer crença…) que tenha conseguido suportar a repugnância que estas palavras provavelmente lhe inspiraram, não peço que se passe ao ateísmo de quem as escreveu. Simplesmente lhe rogo que compreenda, pelo sentimento de não poder ser pela razão, que, se há Deus, há só um Deus, e que, na sua relação com ele, o que menos importa é o nome que lhe ensinaram a dar. E que desconfie do “fator Deus”. Não faltam ao espírito humano inimigos, mas esse é um dos mais pertinazes e corrosivos. Como ficou demonstrado e desgraçadamente continuará a demonstrar-se.

José Saramago, escritor português, prêmio Nobel de Literatura. [Artigo publicado na Folha de S. Paulo em 19/09/2001]

sábado, 12 de março de 2011

Do frevo ao carnaval

Capoeira, Rugendas

Nacionalismo musical é um dos nomes chiques que se dão à cultura popular. As cidades, que cresciam com rapidez, favoreciam novas formas de cantar e dançar, que dependiam, basicamente, da inventividade do povo. Assim surgiu o frevo em Recife. Há quem diga que o frevo nasceu dos desfiles cívicos, dos quais participavam grupos de capoeira. Em algumas cidades, como Salvador e Recife, esses grupos tinham um sentido de afronta aos portugueses, que ainda ocupavam os melhores empregos. Além disso, em Recife também participavam dos desfiles as bandas do Quarto Batalhão de Artilharia (ou o Quarto) e da Guarda Nacional (apelidada de Espanha devido ao seu maestro Pedro Garrido, que era espanhol). As duas eram importantes e acabaram dividindo até os capoeiras em dois partidos. Com a rivalidade, a coreografia foi se aperfeiçoando, cada qual complicando as balizas com bengalas ou bastões de duríssima madeira do quiri.

A partir de 1880, as fanfarras, constituídas por trabalhadores pobres, passaram a associar-se à música de rua, e um novo gênero começou a surgir: uma mistura de dobrado e ritmos populares, com instrumentos de metal acompanhados de uma multidão de dançarinos-capoeiras. Os desfiles transformavam-se em verdadeiro delírio coletivo, com a multidão improvisando passos frenéticos. Ela fervia, e foi a palavra fervura, ou frevura, como falavam os menos instruídos, que deu origem ao termo frevo.

O frevo-capoeira foi assimilado pela camada média da população: reelaborado por compositores, perdeu o sentido contestador de suas origens, tornando-se um dos gêneros musicais mais difíceis, que exige sólidos conhecimentos de composição.

Na ponta inversa da cultura popular está o circo, do qual pouca coisa mudou de sua origem para cá. O picadeiro circular e a presença de animais selvagens são heranças do circo romano. No Brasil ele serviu para difundir as formas de teatro musicado. Os palhaços vinham das camadas mais baixas da população. O primeiro de quem se tem notícia no Brasil foi Benjamim de Oliveira, um negro de Pará de Minas. Ainda menino, ele partiu com o Circo Sotero, e se tornou malabarista. Era tão espancado pelo patrão que fugiu para São Paulo, onde se uniu a um bando de ciganos, entre os quais começou a trabalhar como palhaço. Para as populações do interior, a chegada de um circo era uma grande oportunidade de lazer. Por meio dele, músicas e anedotas tipicamente urbanas acabaram passando para o folclore. Como o circo, o carnaval tem origem nas antigas Grécia e Roma, onde, por ocasião das colheitas, permitia-se liberdade aos escravos, e se comia, bebia e dançava à exaustão.

No Brasil imperial, no entanto, as brincadeiras de rua eram duramente reprimidas. Cansados do controle policial, os foliões cariocas organizaram cordões constituídos por negros, mestiços e brancos-pobres que saíam às ruas fantasiados, cantando e dançando ao som de instrumentos de percussão. Começava a surgir a autêntica música de carnaval.


A primeira da qual se tem notícia é Flor de São Lourenço (1885), produzida pelos cordões cariocas. A partir de então, as elites e a classe média deixavam suas casas para participar de animados bailes carnavalescos realizados nos teatros.


A polca, estritamente instrumental, animava a folia nos salões. A partir de 1880 começaram a aparecer os coros e as músicas com letras de carnaval, quando os frequentadores dos bailes já demonstravam interesse por outra novidade importada da Europa: os desfiles públicos de carros alegóricos. A classe média passou a integrar os cordões, numa mistura social restrita aos três dias de folia. Brasil 500 anos. São Paulo: Abril, 1999. p. 528-9.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Festas e tradições populares na época dos reis absolutistas

Os provérbios flamengos, Pieter Bruegel, o Velho

A agitação intelectual e artística que marcou a Europa nos séculos XVI e XVII foi, em grande parte, um movimento das elites. Nas camadas populares persistiam outras formas de manifestação cultural, várias delas baseadas em antigas tradições.

Embora essas tradições variassem de acordo com a região e o grupo social em que ocorriam, elas continham elementos comuns. Um deles é a importância dos lugares onde as pessoas pudessem se reunir. Isso tanto nas cidades quanto no campo. A igreja, por exemplo, era um importante ponto de encontro, e os sermões do padre atraíam grandes contingentes. Nas tabernas e estalagens também se realizavam jogos e espetáculos de música, dança, malabarismo.


Interior de taverna, David Teniers

Nas cidades, por sua vez, as praças serviam de palco para a apresentação de toda sorte de artistas itinerantes: bufões (palhaços), malabaristas, acrobatas, atores, menestréis, curandeiros e vendedores de remédios disputavam a atenção da multidão ao lado de pregadores religiosos.

As festas estavam entre as atividades que mais empolgavam a população. Comemoravam-se casamentos, batizados, datas cristãs (como a Páscoa e o Natal) e pagãs (como o solstício de verão). Os festejos do carnaval eram os mais esperados do ano, estendendo-se muitas vezes de janeiro até a quaresma. Eram dias de excesso, de muita comida e bebida, em que as ruas ficavam lotadas de homens e mulheres mascarados, entregues a brincadeiras, danças, "batalhas" estilizadas.

As antigas feiras medievais conservaram sua importância; além de centros de comércio, elas eram locais de diversão. Havia diversas competições - jogos de malha, corrida de cavalo, rinhas de galo, campeonatos de arco-e-flecha - e exibições artísticas com animais adestrados, acrobacias e pantomimas. Algumas feiras duravam dias ou semanas.

Outra característica da cultura popular eram as histórias, muitas das delas narradas por contadores profissionais, encenadas por atores em praça pública ou cantadas por poetas nos bares e tabernas. Os atores encenavam dramas amorosos, peças cômicas ou edificantes, como as sobre a vida dos santos ou passagens bíblicas. As canções e baladas cantadas pelos menestréis contavam lendas e aventuras de heróis ou satirizavam os poderosos da época. Muitas dessas histórias foram registradas por estudiosos nos séculos XVIII e XIX e, transformadas, chegaram até nós sob a forma dos "contos de fadas" que ouvimos na infância. Chapeuzinho Vermelho e João e Maria são dois exemplos dessas histórias.

Às vezes as histórias ou os poemas eram impressos em grandes folhas de papel e colados em muros ou paredes de locais públicos. Ao longo dos séculos XVI e XVII, observou-se um crescimento no número de pessoas alfabetizadas, o que corresponde a uma disseminação de folhetos e livros populares, vendidos em feiras e em praças por mascates.No século XVII surgiram panfletos de cunho político, sobretudo na Inglaterra e na França.

Muitas vezes entendidas como desafios à ordem pública, as festas e tradições populares sofreram constante repressão por parte das autoridades e da Igreja. 

PILETTI, Nelson e PILETTI, Claudino. História e vida integrada. São Paulo: Ática, 2007. p. 18.

Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural norte-americana

Cartaz mostrando Tio Sam na Primeira Guerra Mundial. Ilustração de James Flagg, 1917.

Tio Sam é a personificação nacional dos Estados Unidos da América e um dos símbolos nacionais mais famosos do mundo. O nome Tio Sam foi usado primeiramente durante a Guerra anglo-americana em 1812, mas só foi desenhado em  1852. Ele é geralmente representado como um senhor de fisionomia séria com cabelos brancos e barbicha. O Tio Sam é representado vestido com as cores e elementos da bandeira norte-americana - por exemplo, uma cartola com listras vermelhas e brancas e estrelas brancas num fundo azul, e calças vermelhas e azuis listradas.

A difusão de certos aspectos da cultura norte-americana é um fato inescapável de nosso tempo. Vivemos no Brasil cercados de videocassestes e vídeo games, comemos hot dogs, hambúrgueres e chips, tomamos soda e Coca-Cola, vestimos T-shirts e blue-jeans. Os filhos de famílias mais aquinhoadas possuem skates, pranchas de surf e apreciam o motocross. Ouvimos rocks e souls produzidos por bands intituladas Kiss, Village People e assemelhados. Fenômenos sociais ligados à juventude atravessaram fronteiras e aqui se estabeleceram com os nomes de origem, desde os beatniks, passando pelos hippies e chegando aos punks. Temos até a novidade patológica do momento: a Aids.

Na década de 50. as crianças brasileiras já brincavam de bandido e mocinho, reproduzindo o famoso camôni, boy! consagrado  nas telas do cinema. Àquela época, já dizíamos okay, morávamos num big país, líamos gibis e íamos ao cinema aos sábados ver filmes de far-west. Batman, capitão Marvel, Jesse James e o mito John Wayne povoavam a fantasia infantil brasileira naqueles anos.

Para sermos mais exatos, a chegada visível de Tio Sam ao Brasil aconteceu mesmo no início dos anos 40, em condições e com propósitos muito bem definidos.

Proclamava-se a ideia de uma política de boa vizinhança entre os Estados Unidos e os demais países americanos. Essa boa vizinhança significaria um convívio harmônico e respeitoso entre todos os países do continente. Significaria também uma política de troca generalizada de mercadorias, valores e bens culturais entre os Estados Unidos e o restante da América.

Foi nesse contexto que os brasileiros aprenderam a substituir os sucos de frutas tropicais por uma bebida de gosto estranho e artificial chamada Coca-Cola. Começaram também a trocar os sorvetes feitos em pequenas sorveterias pelo sorvete industrializado chamado Kibon. Aprenderam a mascar uma goma elástica chamada chiclet e começaram a usar palavras novas que foram se incorporando à sua língua falada e escrita. Passaram a ouvir o foxtrot, o jazz, o boggie-woo-gie, entre outros ritmos, a voar nas asas da Pan Am (Pan American), deixando para trás os "aeroplanos" da Lati e da Condor, e começaram a ver muito mais filmes produzidos em Hollywood.

A boa vizinhança apresentava-se como uma avenida larga, de mão dupla, isto é, um intercâmbio de valores culturais entre as duas sociedades. Na prática, a fantástica diferença de recursos de difusão cultural dos dois países produziu uma influência de direção praticamente única, de lá para cá. Nossos compositores populares perceberam e expressaram criticamente em suas músicas o fenômeno. Nos versos de Assis Valente, por exemplo:

O Tio Sam está querendo
conhecer a nossa batucada.
Anda dizendo que o molho da baiana 
melhorou o seu prato...
Eu quero ver, eu quero ver
eu quero ver o Tio Sam tocar
pandeiro para o mundo sambar...

A partir de 1941, o Brasil foi literalmente invadido por missões de boa vontade americanas, compostas de professores universitários, jornalistas, publicitários, artistas, militares, cientistas, diplomatas, empresários, etc. - todos empenhados em estreitar os laços de cooperação com brasileiros -, além das múltiplas iniciativas oficiais.

Devem-se reconhecer os aspectos positivos dessa difusão cultural norte-americana, porque ela contribuía de algum modo para o intercâmbio de ideias e aquisições reais de saber técnico e científico. De outro lado, porém, é preciso reconhecer o preconceito que orientava boa parte desse intercâmbio, como também o fato de que ele constituía um elemento-chave de uma construção imperialista durante a guerra e o pós-guerra. Adaptado de: MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil - a penetração cultural norte-americana. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 7-12. 

Os fascinantes anos 1920


Fascinantes! Fabulosos! Rumorosos!

Assim ficaram conhecidos os anos 20. Em 1918 termirara a I Guerra Mundial, começada em 1914, e o mundo, com exceção da Alemanha, derrotada, podia enfim respirar aliviado. Expandiu-se então por toda a parte uma euforia assinalada pelo desejo incontido de aproveitar a vida. Enquanto se comemorava a paz, ao mesmo tempo enterravam-se velhos preconceitos.

Eram os primeiros anos dourados do século. Os progressos da tecnologia certamente tiveram muito a ver com o fascínio daqueles anos. Inventado no começo do século, o cinema popularizava-se, tendo já astros famosos, ídolos, todos belos e extravagantes. Só lhes faltava falar...e, no final da década, falaram.

Surgiu depois o rádio, outra maravilha, que logo serviu à divulgação dos novos ritmos musicais, como o samba, o tango e o foxtrote, para alegria dos que ainda não possuíam gramofone, aparelho movido à corda, para ouvir discos.

A aviação, que provara ser eficiente arma de guerra, e não apenas um esporte perigoso, passava a ter utilidade prática também na paz, principalmente como correio, ligando cidades, países e até continentes. O automóvel passou a ser fabricado em série, ao alcance do bolso de um número maior de consumidores, e em modelos variados, especialmente o conversível, aqui chamado de baratinha. Definitivamente desapareciam os coches, as vitórias, os tílburis - veículos, alguns luxuosos, de tração animal.

No Brasil, precisamente em São Paulo, logo em 1922, tivemos uma revolução, não sangrenta, mas que marcou e modificou a vida da nação. Aconteceu em três noites alternadas, dentro do Teatro Municipal - a Semana de Arte Moderna. Uma batalha feroz na qual poetas, escritores, pintores, escultores, músicos e conferencistas foram alvos constantes de vaias, xingos, tomates e ovos podres. Apesar de tudo, saíram vitoriosos.

Houve, porém, outras revoluções, estas sangrentas. A dos 18 do Forte de Copacabana foi um massacre.

A de 1924 desenvolveu-se dentro da cidade de São Paulo, rua a rua, bairro a bairro. Seguiu-se a Coluna da Morte, que pôs em ação a tática das guerrilhas. E mais tarde, outra, a Coluna Prestes, mais numerosa e bem armada, que durante anos desafiaria o governo federal, tornando-se lendária e imortalizada em livros.

Nessa década, nem sempre feliz, a luta também se desenvolveu no terreno das ideias políticas. Além dos anarquistas, idealistas um tanto vagos, surgiram os comunistas, que já dominavam a Rússia desde 1917, e os fascistas, na Itália, liderados por Mussolini, que ameaçava o mundo com gestos e caretas. O povo brasileiro, que não contava com nenhuma proteção trabalhista, como férias, aposentadoria, assistência hospitalar, hesitava, confuso, entre as diversas tendências. Qual delas mais o beneficiaria?

Mas pelo menos nos fins de semana procurava divertir-se. O futebol já se tornara uma paixão nacional e ver Friedenreich jogar, talvez o maior atacante do mundo, era uma felicidade. O cinema firmava-se como grande diversão, embora as famílias mais conservadoras não aceitassem que artistas se beijassem. Que fosse na testa, sim, mas na boca... Frequentar a praia, antes condenado, já se fazia rotina nos anos 20. Passava a ser chique. Mas os almofadinhas e as melindrosas, os elegantes da década, certamente preferiam o footing, passeio na rua principal do bairro, e dançar nos clubes. Aliás, outro ritmo surgira, melhor que qualquer outro para dançar, o charleston...

O povo era no geral trabalhador e ordeiro. Porém recomendava-se o máximo cuidado com portas e janelas abertas. Gino Anleto Meneguetti, o ladrão,, ágil como um gato, podia estar próximo. Os jornais viviam se ocupando dele. Apenas o esqueceram um pouco quando estourou nas manchetes o apavorante Crime da Mala.

Eram anos de riso, extravagâncias, inventos, paixões e sangue. 

REY, Marcos. Os fascinantes anos 20. São Paulo: Ática, 1995. p. 2-3.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Ponto de encontro

Reação dos indígenas contra os frades e soldados depois do massacre de González de Ocampo em 1521, Theodor de Bry.

"Após setenta e um dias, cheguei às Índias, onde encontrei numerosas ilhas, das quais tomei posse em nome de Vossas Majestades, sem encontrar qualquer oposição. À primeira delas eu denominei São Salvador, em homenagem ao Todo Poderoso que tudo isto me possibilitou de maneira milagrosa. [...]

Os habitantes dessas ilhas vivem nus. Eles não conhecem o ferro e não possuem armas; são altos e bem feitos de corpo, mas extremamente tímidos. Mas, desde que vençam a timidez, eles se mostram simples e afáveis, de tal modo que não se poderia crer. Qualquer coisa que se lhes peça, jamais negam, e se mostram contentes com tudo aquilo que lhes oferecemos. [...]

Na Ilha Espanhola há ouro em abundância, e também especiarias e algodão; e escravos poderão ser aprisionados entre os idólatras; acredito que exista também ruibarbo e canela. [...] Tudo isto é verdadeiro. Deus Nosso Senhor me concedeu a vitória, como a todos aqueles que seguem Seu caminho, neste empreendimento que parecia impossível."

A carta escrita pelo navegador Cristóvão Colombo, em março de 1493, relatando sua chegada à América, no ano anterior, demonstra a alegria pelo acontecimento, e anuncia as vantagens que poderiam ser alcançadas. Os habitantes das novas terras - que foram chamados de índios, pois Colombo ainda julgava ter chegado às Índias - poderiam ser convertidos à religião cristã e também fornecer imensas riquezas aos Reis Católicos, Isabel de Castela e Fernão de Aragão, que tinham apoiado a expedição de Colombo.

Sete anos depois, o escrivão Pero Vaz de Caminha, que viajava na frota de Pedro Álvares cabral, escrevia ao Rei de Portugal Dom Manuel I informando que na Ilha de Vera Cruz, "até agora não podemos saber se haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro."

Embora não pudesse descrever riquezas idênticas às da Ilha Espanhola, o escrivão não deixaria de assinalar que "a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os dentre Douro e Minho, porque nesse tempo de agora assim os achamos como os de lá; as águas são muitas, infindas; em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem; porém o melhor fruto que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente, e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar."

Descrevendo as Antilhas ou o litoral brasileiro, os relatos dos últimos anos do século XV expressavam uma visão otimista das regiões alcançadas. Esta visão otimista contrastava com uma profecia maia, que dizia estar se aproximando a época em que "a terra queimará e haverá grandes círculos brancos no céu. A amargura surgirá e a abundância desaparecerá. A terra queimará e a guerra de opressão queimará. A época mergulhará em graves trabalhos. De qualquer modo, isso será visto. Será o tempo da dor, das lágrimas e da miséria. É o que está por vir."

À chegada das naus de Colombo ao novo continente os europeus chamariam, pouco tempo depois, de Descobrimento da América. Os índios poderiam denominar aquele fato histórico de Descobrimento?

O Descobrimento foi seguido pela Conquista. Os espanhóis passaram das Ilhas para o Continente - a "Tierra Firme" -, em busca de ouro, prata e pérolas, para capturar escravos índios, ou ainda para descobrir novas terras que pareciam esconder riquezas infindas.

A profecia maia parecia se cumprir. "Dios está en el cielo, el Rey está lejos, Y o mando aquí", parecia ser o lema dos conquistadores.

Quase na mesma época, os portugueses expandiam-se pelo litoral brasileiro, como se expandiriam pelo interior do território, anos depois, em busca das mesmas riquezas ambicionadas pelos espanhóis. Os nativos foram escravizados, dizimados ou expulsos para o "sertão". No poema Feitos de Men de Sá, cuja autoria é atribuída ao padre jesuíta José de Anchieta, cantava-se:

"Quem poderá cantar os gestos heróicos do Chefe
à frente dos soldados, na imensa mata: cento e sessenta
as aldeias incendiadas,
mil casas arruinadas
pela chama devoradora, assolados os campos,
com suas riquezas, passado tudo ao fio da espada."

Espanhóis e portugueses seriam seguidos de franceses, holandeses, ingleses e outros povos europeus, na conquista do território americano.

A Conquista abriu caminho à Colonização, ainda nas décadas iniciais do século XVI. Minas de metais preciosos foram exploradas. Nas propriedades agrícolas de grande extensão eram cultivados a cana-de-açúcar, o tabaco, o algodão e outros artigos que eram consumidos na Europa. Nas matas extraíam-se madeiras, como o pau-brasil, e caçavam-se animais cujas peles alcançavam altos preços nos mercados europeus. O Novo Mundo enriquecia o Velho Mundo.

Em muitas dessas atividades o indígena foi utilizado como mão-de-obra pelo colonizador europeu. Em outras, porém, a mão-de-obra empregada foi a do negro africano escravizado. O Descobrimento e a Conquista haviam colocado lado a lado o indígena e o europeu; a Colonização reunia a ambos um terceiro elemento: o negro africano, que chegava à América como escravo.

Reunidos no mesmo continente, o colonizador europeu e o índio e o negro colonizados, povoaram a terra, ergueram cidades, construíram novas nações: as nações americanas. Como colonizador, o branco europeu pôde estabelecer o dia 12 de outubro de 1492 - o dia em que pela primeira vez ele chegara às novas terras - como o dia do Descobrimento da América.

MATTOS, Ilmar Rohloff de et alli. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves/Edutel, 1977. p. 11-14.